10 discos essenciais: Dia da Consciência Negra
Por Sidney Falcão
O Dia da
Consciência Negra é um marco do calendário brasileiro dedicado a reconhecer a
força, a resistência e o legado do povo negro na construção do país. A data
nasceu como uma iniciativa de movimentos negros nos anos 1970, escolhendo 20 de
novembro por ser o dia da morte de Zumbi dos Palmares — símbolo maior da luta
pela liberdade e pela dignidade. Desde então, transformou-se em um momento de
reflexão, celebração e afirmação da identidade negra.
Sua
importância se espalha por todas as dimensões da vida brasileira.
Culturalmente, lembra que grande parte da arte, da música, da culinária e das
tradições que moldam o Brasil tem raízes africanas. Socialmente, reforça a
necessidade de combater o racismo estrutural e ampliar oportunidades. No campo
econômico, evidencia como a desigualdade ainda pesa de maneira desproporcional
sobre a população negra, exigindo políticas e práticas que promovam justiça e
mobilidade. Religiosamente, valoriza a presença viva das matrizes africanas e o
respeito às crenças que sustentam comunidades inteiras.
Para
celebrar esse dia especial — de memória, luta e beleza — o blog Discos
Essenciais convida você a conferir 10 álbuns essenciais de artistas negros da
música brasileira e internacional. Obras fundamentais que ajudam a entender,
pela arte, a grandeza e a diversidade desse legado.
CançõesPraieiras (Odeon, 1954), Dorival Caymmi. Este é daqueles discos que não apenas descrevem um território — eles o inauguram dentro de você. Ouvir Dorival Caymmi sozinho, voz e violão, é ser arrastado por uma maré que não admite pressa nem artifício. Tudo ali é essencial, bruto, límpido como uma manhã de vento fraco em Itapoã. Caymmi não romantiza o mar: ele o encara. Entende sua doçura, mas também seu luto. Por isso o álbum respira essa mistura de encanto e fatalismo que só quem cresceu à beira do mar é capaz de traduzir. As canções, regravadas com despojamento radical, ganham uma força quase ritual. “O Mar”, “É Doce Morrer no Mar”, “A Jangada Voltou Só” — todas parecem nascer de um mesmo horizonte onde trabalho, amor e tragédia coexistem sem estranhamento. Canções Praieiras é a primeira grande cartografia do mar na música brasileira. Um disco que ensina menos a ouvir e mais a permanecer.
Clubeda Esquina (Odeon, 1972), Milton Nascimento e Lô Borges. Milton Nascimento já era um artista famoso quando convidou o jovem Lô Borges, então com cerca de 19 anos, para dividir com ele o álbum duplo Clube da Esquina. Milton havia gravado anteriormente canções de Lô como “Para Lennon e McCartney”, “Alunar” e “Clube da Esquina” (esta, uma parceria de Milton, Lô e Márcio Borges), as três do álbum Milton (1970). Para a gravação do álbum duplo, Milton e Lô cercaram-se de companheiros da cena musical de Minas Gerais como Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta entre outros. Com uma musicalidade que mescla referências de Beatles (safra 1969), folk rock, rock progressivo com a música do interior de Minas Gerais, tudo emoldurando uma riqueza poética nas letras, Clube da Esquina foi muito além de apenas um álbum duplo brilhante: batizou com seu nome um movimento musical que se tornou um dos mais importantes da música popular brasileira. Dentre as suas 21 faixas, algumas se tornaram clássicos da música brasileira como “O Trem Azul”, “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “Paisagem da Janela” e “Nada Será Como Antes”.
SongsIn The Key Of Life (Motown, 1976), Stevie Wonder. A Motown havia apostado uma grana alta na renovação de contrato com Stevie Wonder, após uma sequência de álbuns muito bem avaliados pela crítica e com ótimos desempenhos comerciais. No entanto, a demora na produção do ambicioso Songs In The Key Of Life preocupou a Motown. Porém, a espera do lançamento do valeu à pena. Além de ser álbum duplo, Songs In The Key Of Life trazia de brinde uma EP com mais 4 faixas, um deleite total para os fãs. Abordando temas como amor, racismo, política, fé e conflitos sociais, Songs In The Key Of Life emplacou hits memoráveis como “Isn't She Lovely” e “Sir Duke”, conquistou quatro prêmios Grammy, e tornou-se um dos mais importantes álbuns da história da soul music e do R&B.
Refavela (Philips, 1977), Gilberto Gil. A ideia de gravar Refavela nasceu após Gilberto Gil ter participado do 2° Festival Mundial de Arte e Cultura Negra (FESTAC 77), em Lagos, na Nigéria, no começo de 1977. Gil voltou da Nigéria com a ideia de gravar um álbum com um conceito musical fundamentado na ancestralidade africana, e ao mesmo tempo, trazendo a reboque referências de música negra contemporânea daquele momento como o afrobeat, juju music, funk e reggae, e evidentemente, a música afro-baiana propagada pelos blocos carnavalescos de Salvador como Ilê Aiyê e Filhos de Gandhy. Destaques para as faixas “Ilê Ayê”, “Balafon”, “Babá Alapalá”, “Patuscada de Gandhi” e uma versão com inclinação samba-funk para “Samba do Avião”, de Tom Jobim.
OffThe Wall (Epic, 1979) Michael Jackson. Neste seu quinto álbum solo, Michael Jackson decide, enfim, respirar por conta própria. Um salto para longe das sombras familiares, um gesto de ruptura que encontra em Quincy Jones o parceiro ideal para transformar inquietação em linguagem. Naquele momento, Michael se mostra mais adulto, independente, sabendo o que quer. Off the Wall acende como cidade à noite: “Don’t Stop ’Til You Get Enough” abre as portas, febril e iluminada; “Rock With You” desliza com a elegância de quem sabe exatamente onde quer pousar; o restante do disco alterna suor e sutileza, com grooves impecáveis, arranjos que respiram e baladas que revelam vulnerabilidade real. Tudo ali soa milimetricamente vivo. Mais que um disco de sucesso, Off the Wall é a certidão de autonomia de um artista prestes a incendiar o mundo. Um anúncio — educado, brilhante, irresistível — de que nada seria como antes.
Kindala (Polygram, 1991), Margareth Menezes. Kindala é Margareth Menezes abrindo a porta com o pé e lembrando ao Brasil que a herança afro não é ornamento — é o pulso que sustenta a casa inteira. O terceiro álbum da baiana tem algo de manifesto rítmico: uma mistura feroz de samba-reggae, reggae, ijexá e afrobeat que não pede licença, apenas acontece, quente como rua em fevereiro de Carnaval. Margareth canta com aquela autoridade que só nasce quando a voz carrega história, terreiro, dança e cicatriz. O disco vibra em camadas: há espiritualidade (“Negro Nagô”), denúncia urbana com ironia afiada (“Jet Ski”), e uma força feminina que não precisa levantar muralha para ser imensa (“Menina Dandara”). Mesmo quando escorrega — como no excesso performático da releitura de “Mosca Na Sopa”, de Raul Seixas — Kindala se mantém firme naquilo que propõe: uma celebração da negritude em movimento, sem concessão e sem medo.
The Miseducation Of Lauryn Hill ( Ruffhouse / Columbia, 1998 ), Lauryn Hill. Mais do que seu primeiro álbum solo, este trabalho é o instante em que Lauryn Hill transforma caos pessoal, maternidade, espiritualidade e memória em manifesto sonoro. No estilo de rua que abraça soul, rap, reggae e gospel, Hill reaparece depois do auge dos Fugees com uma voz própria — íntima, urgente, luminosa. Grávida de Zion e revendo a própria trajetória, ela compôs dezenas de canções até destilar esse disco que soa como rito de passagem. Entre faixas explosivas como “Lost Ones”, baladas devastadas como “Ex-Factor” e hinos de afirmação feminina como “Doo Wop (That Thing)”, Lauryn tensiona vulnerabilidade e força em cada arranjo. Participações de Carlos Santana, Mary J. Blige e um jovem John Legend ampliam o arco emocional. Aclamado pela crítica, campeão de vendas e vencedor de cinco Grammys, o álbum elevou o hip-hop a novas fronteiras estéticas e abriu caminho para gerações de mulheres negras na música. É a educação sentimental de uma artista decidindo, enfim, quem ela quer ser.
Lado BLado A (Warner, 1999), O Rappa. Terceiro álbum d’O Rappa, Lado B Lado A consolidou a banda carioca como uma das mais importantes e politizadas de sua geração. O álbum representou também a consagração do baterista Marcelo Yuka como letrista, que faz uma análise mais profunda em temas como violência policial, o descaso do poder público nas comunidades carentes e o abismo social que separa ricos e pobres. Com mais de 500 mil cópias vendidas, Lado B Lado A é o álbum melhor sucedido da carreira d’O Rappa. A faixa “A Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)” se tornou o maior sucesso da carreira da banda. “Me Deixa”, “O Que Sobrou do Céu” e “Tribunal de Rua” foram outras faixas de Lado B Lado A que também alcançaram grande popularidade.
À Procura Da Batida Perfeita (Sony Music, 2003), Marcelo D2. O álbum é o momento em que Marcelo D2 transforma a busca pessoal por identidade sonora em manifesto estético. No seu estilo híbrido — metade asfalto, metade roda de samba — ele leva adiante a fusão entre rap e samba iniciada em seu primeiro álbum solo, Eu Tiro É Onda (1998), mas agora com ambição de linguagem. Produzido entre Los Angeles e o imaginário do subúrbio carioca, o disco costura samples de Paulinho da Viola, João Nogueira, Antônio Carlos & Jocafi e Luiz Bonfá como quem monta um mosaico da história musical brasileira para projetá-lo no futuro.
AMulher do Fim do Mundo (Circus / Natura Musical, 2015), Elza Soares. Com uma carreira iniciada ainda nos anos 1950, Elza Soares iniciou um incrível processo de renovação artística no começo dos anos 2000, ao associar o seu samba a seguimentos da música pop contemporânea como o rap e a música eletrônica. Isso ficou evidente no elogiado álbum Do Cóccix Até O Pescoço, de 2002. Com A Mulher do Fim do Mundo, Elza consolidou o seu processo de renovação, onde ela ampliou o seu experimentalismo. O álbum foi aclamado pela crítica e ainda fez Elza conquistar um público jovem e engajado, e isso aos 80 anos. A Mulher do Fim do Mundo é um álbum ácido, forte, e toca o dedo na ferida em assuntos delicados como a violência contra a mulher (“Maria da Vila Matilde”), a decadência social nas grandes cidades brasileiras (“Luz Vermelha”) e a vida barra pesada de um transexual negro na prostituição (“Benedita”). A conquista do Grammy Latino 2016 na categoria “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira” foi o reconhecimento do valor de uma das cantoras mais aguerridas da música brasileira.










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