“A Mulher do Fim do Mundo” (Circus / Natura Musical, 2015), Elza Soares



Por Sidney Falcão

Elza Soares é um dos raros casos na história da música popular brasileira de artista que conseguiu na velhice reinventar a sua arte, renovar e ampliar o seu público. Enquanto alguns artistas ao passar dos 60 anos, se mostram repetitivos, pouco afeitos a inovações, preferindo estacionar na zona de conforto proporcionada pelas glórias do passado, Elza preferiu ousar, trilhar outros caminhos.   

Desde o começo dos anos 2000, quando já havia chegado aos 70 anos de idade, Elza iniciava o seu processo de renovação criativa na sua carreira artística ao aproximar o samba e a MPB que praticava a estilos musicais mais contemporâneos como o rap, rock, reggae e música. O seu álbum Do Cóccix Até O Pescoço (2002) iniciou esse processo de transformação. Vivo Feliz (2003), o álbum seguinte, deu continuidade ao processo, porém explorando mais a fundo as batidas eletrônicas. A sintonia de Elza Soares com rap, rock e a música eletrônica, somadas á sua postura engajada a causas em defesa dos direitos da mulher, dos negros e homossexuais, somados à sua história de vida marcada por muito sofrimento e luta, atraíram o público jovem, boa parte formada por jovens com idade de serem seus netos. 

A Mulher do Fim do Mundo representou a consolidação do processo de reinvenção de Elza como artista. Para a gravar o álbum, Elza cercou-se de jovens músicos da cena paulistana contemporânea como Cacá Machado, Celso Sim, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Romulo Fróes. A produção do álbum ficou a cargo produtor Guilherme Kastrup, e as gravações ocorreram entre abril e maio de 2015, nos estúdios Red Bull Station, em São Paulo. O custos de gravação do álbum foram financiados pela Natural Musical, e o selo Circus, foi quem ficou responsável pelo lançamento. 

Em agosto de 2015, saiu o single de “Maria da Vila Matilde”, que impressionou o público e a crítica. No mês seguinte, foi lançado o segundo single, “Luz Vermelha”. Os dois lançamentos já davam uma ideia do que seria o álbum que estava porvir. 

Finalmente, em 3 de outubro de 2015, aos 85 anos, Elza Soares lançou o álbum A Mulher do Fim do Mundo. Nas suas onze faixas, o álbum traz uma fusão de estilos que envolve samba, rock, rap, música eletrônica, e até um tango um tanto quanto "torto". Neste álbum, Elza toca em temas sensíveis, dos quais ela conhece muito bem como a violência contra a mulher e o racismo. Mas o álbum também aborda a transexualidade, amizade, liberdade sexual feminina, solidão, drogas e morte. 

O álbum A Mulher do Fim do Mundo começa com Elza Soares cantando à capella “Coração do Mar”, canção que nasceu de um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik. Na faixa seguinte, o samba alternativo “A Mulher do Fim do Mundo”, Elza implora para deixa-la cantar até o fim, de uma forma como se o ofício de cantar fosse uma necessidade vital para a sua existência. A violência doméstica é o tema central de “Maria da Vila Matilde”, um samba de breque misturado com guitarras e efeitos eletrônicos, que traz um refrão que é uma resposta ameaçadora a homens que agridem mulheres: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. A estranha “Luz Vermelha” parece retratar um Rio de Janeiro pós-apocalítico em versos trágicos e pessimistas como “tudo vai terminar num poço cheio de merda”. 

"Maria da Vila Matilde" aborda a violência doméstica, um mal que vitima
milhares de mulheres brasileiras todos os anos. 

“Pra Fuder” é um samba cujo arranjo foi criado pelo Bixiga 70, um dos principais nomes da nova geração musical paulista que despontou em meados dos anos 2010. A letra versa sobre uma mulher decidida, que toma iniciativa, é dona do seu corpo e dos seus desejos. “Benedita”, dueto de Elza com o cantor Celso Sim, é a faixa mais diversificada do álbum, e traz uma mescla de samba, rock e rap, além de uma interessante alternância de andamentos. O título faz referência à personagem da música: um travesti traficante de drogas.   

Em “Firmeza?!”, Elza faz dueto com Rodrigo Campos, e juntos cantam sobre amizade como se estivessem se encontrado em alguma esquina. O destaque fica para a Elza cheia de malandragem na maneira de cantar. Na sequência, a sombria “Dança” e seus versos funéreos: “Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento a minha despedida / Debaixo dessa terra não me interessa o movimento / Debaixo do cimento não tenho pressa / Não há quem queira dançar”. 

“O Canal” é outra faixa lenta e experimental, que além do baixo, guitarra e bateria, traz violinos estridentes que criam uma textura sonora agressiva na reta final da música. A melancólica “Solto” parece tratar de solidão, mas também de perda. Fechando o álbum, “Comigo”, que começa com ruídos e distorções, mas que num dado momento, dão lugar ao canto solitário de Elza à capella em versos que misturam morte e nostalgia: “Levo minha mãe comigo / Embora já se tenha ido / Levo minha mãe comigo / Talvez por sermos tão parecidos”. 

No mesmo dia em que A Mulher do Fim do Mundo foi lançado, Elza Soares iniciou uma bem sucedida turnê do álbum, que percorreu as principais capitais brasileiras. Depois, houve uma etapa internacional da turnê, que incluiu apresentações em Barcelona (Espanha), Lisboa(Portugal) e Nova York (Estados Unidos). 

A Mulher do Fim do Mundo foi aclamadíssimo pela crítica na época. Baseado no conceito do álbum, o jornalista Luiz Fernando Vianna, do jornal Folha de S. Paulo, escreveu em seu artigo que “a favela (ou as 'quebradas') é o cenário do fim do mundo (ou do Brasil) e o lugar onde ele pode ser reconstruído”. O crítico musical Mauro Ferreira escreveu em seu site que Elza Soares é uma “sobrevivente de um mundo onde a tristeza não tem fim”. 

Segundo o jornalista Mauro Ferreira, Elza Soares é uma "sobrevivente de
um mundo onde a tristeza não tem fim".


No exterior, a recepção também foi positiva. O site Pitchfork afirmou que “o álbum funciona como um retrato do Brasil contemporâneo - um país assolado por crises, incluindo escândalos de corrupção, a pior recessão em mais de um século, uma onda de brutalidade policial e uma maré crescente de violência anti-gay”. O jornal New York Times elegeu A Mulher do Fim do Mundo um dos 10 melhores álbuns do ano, numa lista que figurava Beyoncé e David Bowie. 

A Mulher do Fim do Mundo foi contemplado com vários prêmios. Em 2015, ganhou o prêmio da ABPCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de “Melhor Álbum”; prêmio da revista Rolling Stone Brasil de “Melhor Álbum” e “Melhor Música” (por “Maria da Vila Matilde”). No ano seguinte, ainda conquistou o Prêmio da Música Brasileira (“Melhor Álbum”) e o Grammy Latino, na categoria de “Melhor Álbum de MPB”. No ano seguinte, em 2016, A Mulher do Fim do Mundo conquistou mais dois prêmios: Prêmio da Música Brasileira na categoria “Melhor Álbum”, e Grammy Latino, na categoria “Melhor Álbum de MPB”. 

Depois do bem avaliado e premiado A Mulher do Fim do Mundo e de uma turnê bem sucedida,  Elza manteve o ritmo criativo e em 2018, lançou Deus É Mulher, outro trabalho elogiado pela crítica, eleito o 2º melhor disco brasileiro de 2018 pela revista Rolling Stone Brasil. Em 2019, lançou Planeta Fome, onde ela mantém a lucidez e o senso crítico afiados. No mesmo ano, aos 89 anos, iniciou uma nova turnê se apresentando no Festival Rock in Rio, no Rio de Janeiro, no Palco Sunset, provando que ousadia e vitalidade, Elza tem em abundância.   

Participações Especiais: Celso Sim, Rodrigo Campos, Romulo Fróes 

Faixas

  1. “Coração do Mar” (poema de Oswald de Andrade; musicado por José Miguel Wisnik)
  2. “Mulher do Fim do Mundo” (Romulo Fróes - Alice Coutinho)
  3. “Maria da Vila Matilde (Porque Se a da Penha é Brava, Imagine a da Vila Matilde)” (Douglas Germano)
  4. “Luz Vermelha” (Kiko Dinucci e Clima)
  5. “Pra Fuder” (Kiko Dinucci)
  6. “Benedita” (música: Celso Sim - Pepê Mata Machado; letra: Celso Sim - Joana Barossi - Fernanda Diamant)
  7. “Firmeza?!” (Rodrigo Campos)
  8. “Dança” (Cacá Machado - Romulo Fróes)
  9. “O Canal” (Rodrigo Campos)
  10. “Solto” (Marcel Cabral - Clima)
  11. “Comigo” (Romulo Fróes - Alberto Tassinari)

Ouça na íntegra A Mulher do Fim do Mundo


"A Mulher do Fim do Mundo"
(videoclipe oficial)




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