10 discos essenciais: Raul Seixas
Por Sidney Falcão
“Eu sou a mosca que pousou na sua sopa.”
Raul não pediu licença. Invadiu. Subiu pelas beiradas da cultura brasileira como quem entra na sala errada de propósito. E ali ficou. Zombando das convenções, apontando o dedo em riste, cantando em volume alto, rindo como um profeta bêbado diante do apocalipse.
Raul Santos Seixas nasceu em Salvador, em 28 de junho de 1945, mas poderia muito bem ter vindo direto de um disco voador. Filho de um engenheiro ferroviário e de uma dona de casa, cresceu entre os livros da biblioteca do pai e os discos de vinil que chegavam como relíquias do além-mar. Elvis Presley (1935-1977) não era apenas um ídolo — era um evangelho. E Raul, seu discípulo tropical.
Ainda menino, preferia a literatura às lições escolares. Reprovado, expulso, deslocado — mas nunca calado. Enquanto os colegas copiavam lições de moral no quadro-negro, ele desenhava personagens, inventava mundos e sonhava em escrever o seu nome no firmamento do impossível. Já adolescente, fundou o "Elvis Rock Club" em Salvador, uma espécie de seita juvenil onde o rock era culto e a rebeldia, liturgia. Ao mesmo tempo que gostava do rock de Elvis, de Little Richard (1932-2020) e de Chuck Berry (1926-2017), Raul tinha também uma profunda admiração por Luiz Gonzaga (1912-1989), o “Rei do Baião”, que se tornará uma de suas maiores influências como artista.
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Raul Seixas na adolescência em Salvador. |
Em 1962, a estrada começa a se desenhar. Raul se junta à banda Os Panteras — o nome já lateja perigo, selvageria, ritmo e independência. Tocavam em programas de TV em Salvador, animavam bailes, aprendiam no palco o que a escola não ensinava: presença, carisma e ruído. Em 1968, sob a benção de Jerry Adriani (1947-2017), desembarcam no Rio para gravar seu primeiro disco. O Brasil, porém, ainda não estava pronto. Raulzito e Os Panteras foi um naufrágio comercial, mas uma odisseia estética.
De volta a Salvador, Raul reconfigura a rota. De guitarrista frustrado a produtor da CBS, passa a operar nos bastidores, compondo canções e produzindo discos de artistas da linha popular. Em 1970, produziu e participou ao lado de Sérgio Sampaio (1947-1994), Miriam Batucada (1946-1994) e Edy Star (1938-2025), do álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, um trabalho experimental que parecia o encontro de Frank Zappa (1940-1993) com Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. A ideia do disco era ousada e criativa, mas comercialmente foi um imenso fracasso.
Mas o palco o chamava de volta — com microfone, aplausos e caos. E foi no Festival Internacional da Canção, em 1972, que Raul voltou a brilhar. “Let Me Sing, Let Me Sing” era mais que uma música — era um manifesto de liberdade artística, um Elvis tropical cuspindo inglês com sotaque baiano.
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Raul Seixas no Festival Internacional da Canção, em 1972, cantando a canção “Let Me Sing, Let Me Sing”. |
Em 1972, Raul conhece Paulo Coelho, o escritor, o mago, o parceiro ideal para alimentar suas obsessões por ocultismo, anarquismo e transcendência. Juntos, criam a Sociedade Alternativa, inspirada nos delírios visionários de Aleister Crowley (1875-1947). “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”, dizia o mantra. No Brasil sob botas e censores, a frase era uma bomba sem pinos de segurança.
O primeiro álbum solo de Raul Seixas, Krig-ha, Bandolo!, é lançado em 1973, e emplaca nas paradas canções emblemáticas como “Ouro de Tolo” e “Metamorfose Ambulante”. No ano seguinte, Raul lança Gita, que mais do que um disco, é uma explosão mística de guitarras e profecias. Entre o “Tente Outra Vez” e o “Medo da Chuva”, Raul se firma como um xamã do rock nacional. Mas a liberdade tem preço. Raul e Paulo são presos, torturados e exilados. Fogem para os Estados Unidos, onde encontram silêncio, distância e uma perspectiva ainda mais ácida sobre o país que haviam deixado.
Ao voltar, em 1975, Raul lança Novo Aeon, seu disco mais hermético, mais denso, mais esotérico. Menos comercial, mas artisticamente ousado. É como se ele decidisse dar um passo além da música e tocar o oculto com as próprias mãos.
Nos anos seguintes, Raul ainda produziria obras fundamentais: Há Dez Mil Anos Atrás (1976), O Dia Em Que a Terra Parou (1977), Mata Virgem (1978) e Por Quem os Sinos Dobram (1979). Os títulos já dizem tudo — Raul pensava em escalas mitológicas, cósmicas, espirituais. Era um "Dylan de Feira de Santana", um "Lennon de Copacabana", um demiurgo errante entre a sanfona e a distorção elétrica.
Mas a máquina começava a engasgar. A indústria fonográfica exigia versões palatáveis. Os parceiros se distanciavam. O álcool se aproximava. Raul, o alquimista sonoro, ia perdendo o brilho entre goles e recaídas. Mas não desistia.
Em 1983, após uma sequência de shows desastrosos, surge a centelha de renascimento com “O Carimbador Maluco”. Um Raul infantil, televisivo, brincando de rebelde em horário nobre. Um disfarce? Uma provocação? Uma última tentativa de dialogar com o país que não o compreendia mais?
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Raul Seixas e Paulo Coelho durante passeata em 1973, no Rio de Janeiro. Parceria rendeu grandes sucessos como "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", "Sociedade Alternativa", "Tente Outra Vez" e "Gita". |
E então, o epílogo: A Panela do Diabo, em 1989, ao lado de Marcelo Nova. O disco é um testamento. Raul canta como quem já conhece o lado de lá. Suas letras são lúgubres, espirituais, ao mesmo tempo afiadas e resignadas. Dois dias após o lançamento, ele é encontrado morto, sozinho, em um apartamento de São Paulo. Morre como viveu: sem concessões, sem amarras, sem pedir desculpas.
Raul não vive. Raul sobrevive. Em adesivos, camisetas, tatuagens, pichações. Em festas universitárias, em barzinhos de rock, nas vozes embriagadas que ainda gritam “Toca Raul!” para qualquer banda cover. Porém, mais do que isso, Raul persiste como ideia viva. Uma recusa radical ao tédio, à submissão, à normatividade. Um chamado eterno à insubordinação estética.
Sua obra é um universo onde convivem o riso e o abismo, a guitarra e o livro de magia, o medo e a utopia. Raul é o trovador que empunhou o microfone como uma espada contra o senso comum. Que fez da contradição seu endereço permanente. Que misturou Nietzsche com baião, Crowley com baião de dois, e saiu impune.
Não se trata de santificá-lo. Raul errou muito, e errou feio. Mas cada tropeço seu era um lembrete: a liberdade é um bicho indomável. E ele foi um dos poucos que ousou montá-la sem sela.
Abaixo, confira dez álbuns para entender Raul Seixas.
Krig-ha, Bandolo! (Philips, 1973). Recém-parido do Festival da Canção e de uma vida de produtor, Raul Seixas surge em 1973 com esse disco como um monstro libertário. Krig-há, Bandolo! não é só o primeiro álbum solo de Raul: é grito de guerra, é cartão de visita cuspido com sangue e poesia por um baiano retado que conhecia o abecê do rock e a realidade do Brasil profundo. A capa já avisa: magro, medalhão no peito, olhar profético. A vinheta de infância abre as cortinas do mito. A sequência é bala: “Mosca na Sopa” buzina no ouvido dos reacionários, “Metamorfose Ambulante” ergue o hino dos inquietos, e “Ouro de Tolo” vomita contra o conformismo dourado da classe média. Produzido com a mão certeira de Marco Mazzola e embalado por arranjos que fundem berimbau, baixo pulsante e sopros insurgentes, o disco é ao mesmo tempo obra de arte e panfleto sagrado. É Tarzan de terno rasgado gritando no meio da floresta de concreto.
Novo Aeon (Philips, 1975). Novo Aeon é Raul Seixas com um olho no abismo e o outro no céu estrelado do ocultismo. O disco é ritual de passagem: sai o messias pop de Gita, entra o mago anárquico em transe filosófico. A produção de Mazzola é altar sonoro onde Raul canta em falsete, cospe verdades em inglês, samba como herege e louva o ego com a ferocidade de quem já queimou livros sagrados. “Tente Outra Vez” é oração profana. “A Maçã” morde a liberdade sem medo do pecado. E “Eu Sou Egoísta” transforma Nietzsche em rock básico. Raul se divide entre Marcelo Motta, Paulo Coelho e o espelho. O Brasil não entendeu, mas o tempo sim: Novo Aeon não era disco pra vender — era pra iniciar. E quem ouviu com ouvidos limpos, nunca mais voltou igual.
Há 10 Mil Anos Atrás (Philips, 1976). Último álbum de músicas inéditas de Raul Seixas pela gravadora Philips. A parceria com Paulo Coelho se despede sem lágrimas: só lucidez crua. O álbum Há 10 Mil Anos Atrás é Raul Seixas em modo absoluto: filósofo de botequim, cronista da alma humana e profeta de jeans rasgado. Em 1976, com a paciência curta e o coração no estúdio, ele entrega um disco que é menos místico e mais humano, onde cada faixa é um espelho rachado refletindo angústia, sarcasmo e ternura. “Canto para a Minha Morte” abre o vinil como testamento em tango. “Meu Amigo Pedro” dá rasteira no conformismo. “Ave Maria da Rua” junta Yemanjá com Maria da esquina. Entre forrós, rocks e canções de ninar, Raul canta sobre crescer pobre, reclamar da gravadora, rir da indústria e existir com poesia em tempos de concreto armado. Um álbum que, longe da fumaça esotérica, encara a vida de frente — sem maquiagem, sem piedade, mas com melodia.
O Dia Em Que A Terra Parou (Warner,1977). Raul Seixas em plena mutação: sem Paulo Coelho, sem misticismo, em gravadora nova, mas com os dois pés fincados na realidade e um microfone como arma. Em 1977, enquanto o Brasil acordava com gosto de chumbo na boca, Raul compunha com Cláudio Roberto um diário de bordo psicodélico e cotidiano. Funk, bolero, baião, guitarra e Black Rio na jugular — Raul se reinventa. “Maluco Beleza” nasce e vira tatuagem nacional. “Sapato 36” é tapa na cara da autoridade disfarçado de sapato apertado. “O Dia Em Que a Terra Parou” sonha o impossível: um planeta inteiro em greve de si mesmo. A produção de Marco Mazzola brilha, Gilberto Gil aparece como entidade, e Raul, sem barba, sorri no Fantástico com cara de quem já sabia: mesmo em queda, ainda era ele quem segurava a chave da máquina.
Mata Virgem (Warner,1978). Em 1978, Raul Seixas se exila no sertão baiano, não por vaidade bucólica, mas por necessidade vital. A pancreatite rasgava por dentro, a crítica rasgava por fora, e o álcool — fiel escudeiro e carrasco — cobrava a conta. Nasce então Mata Virgem, um disco em carne viva. Menos rock, mais terra: baião, country, viola e desassossego. A parceria com Paulo Coelho retorna de forma breve, Tânia Menna entra em cena como eu novo amor, e o LP vira arena de parceiros e fantasmas. “Judas” cospe veneno bíblico. “Conserve Seu Medo” sussurra filosofia entre galhos secos. “Pagando Brabo”, com Pepeu na guitarra, soa como faroeste nordestino. “Todo Mundo Explica” encerra com um riso torto de quem já cansou de ser lido errado. Esquecido à época, Mata Virgem é Raul revisitando a própria origem, soterrando o rock sob o pó da estrada — mas sem perder o brilho maluco que ainda dançava, mesmo doente, mesmo desacreditado.
Abre-te Sésamo (CBS,1980). Em 1980, Raul Seixas surge das cinzas com um grito: Abre-te Sésamo! — e a porta se escancara entre a sarjeta e o Olimpo. Expulso da WEA, doente, sem fé na indústria, mas ainda com fogo na língua, Raul assina com a CBS e entrega um disco que mistura rock, sertão e zombaria com elegância de malandro de blazer branco. “Aluga-se” é manifesto, “Rock das Aranhas” é deboche pubiano travestido de hit censurado. Cláudio Roberto assume o posto de parceiro principal, e a guitarra nervosa de Celso Blues Boy faz o resto. Raul reencontra o sarcasmo, o lirismo (“Angela”), a coragem de falar besteira com cara de gênio (“Baby”), e o dom raro de ser ridículo sem nunca ser bobo. Abre-te Sésamo é Raul dizendo: “tô vivo, porra”. E mesmo que ninguém mais comprasse o disco, ele sabia — a chave do baú ainda era dele.
Raul Seixas (Eldorado, 1983). Num Brasil em transição, Raul Seixas ressurgia em 1983 com um disco que era grito, brincadeira e feitiço – tudo ao mesmo tempo. O álbum Raul Seixas, carinhosamente apelidado Carimbador Maluco, marcou sua volta pelas portas laterais da música: saiu pela Eldorado, pequena, mas ousada. Com humor cáustico e espírito rebelde, Raul fez de "D.D.I." um telefonema cósmico onde Deus pede explicações, e de "Carimbador Maluco" uma ode infantil à liberdade, embalada em crítica social afiada. Entre baiões metafísicos e rocks de garagem transfigurados, brilham “Segredo da Luz” e “Quero Mais”, parceria tropical com Wanderléa. Raul costura o delírio e o protesto com a linha tênue do absurdo, lançando pérolas de um baú ora filosófico, ora kitsch. É um disco de retorno e sobrevivência, um patchwork sonoro onde a maluquice é método e a lucidez, desobediência civil.
(Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Raul_Seixas_(%C3%A1lbum) )
Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! (Copacabana, 1987). Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! é Raul Seixas no fio da navalha: corpo em ruína, mas mente afiada como sempre. Um disco que lateja entre a lucidez e o delírio, onde o country de “Cowboy Fora da Lei” veste Raul de Clint Eastwood tropical, justiceiro de guitarra e ideias perigosas. Há blues gospel em “Canceriano sem Lar”, com cheiro de éter e álcool barato. “Cambalache” reapresenta o velho mundo como um circo grotesco, com Raul no picadeiro do apocalipse. Em “Gente”, ele aponta o dedo pro espelho e pergunta: “que porra é essa de ser humano?”. E ainda sobra fôlego pra revisitar seu misticismo em inglês com “I Am (Gîtâ)”, como quem ri da censura e da morte. Esse disco é Raul olhando o abismo — e achando graça.
Referências:
Revista Bizz – novembro/1989 – Edição 52
Revista Bizz – dezembro/1989 – Edição 53
Marcelo Nova - O Galope do Tempo: Conversas Com André
Barcinski – André Barcinski, 2017, Editora Benvirá
Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida – Jotabê
Medeiros, 2019, Editora Todavia, São Paulo, Brasil.
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g1.globo.com
oinimigo.org
versoseprosas.com.br
wikipedia.org
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