"Gita" (Philips, 1974), Raul Seixas

Com o seu primeiro álbum solo Krig-ha, Bandolo!, de 1973, Raul Seixas havia conquistado o público e a crítica. As faixas "Ouro de Tolo", "Metamorfose Ambulante", "Al Capone" e "Mosca na Sopa", caíram no gosto popular e revelaram um novo astro do rock brasileiro que tinha a capacidade de compor canções debochadas, irreverentes, inteligentes e contestadoras.

Mas a prova de fogo mesmo viria com o álbum seguinte, Gita, que começou a ser gravado em janeiro de 1974. O sucesso de Krig-ha, Bandolo! fez a crítica e o público esperarem com grande expectativa o que Raul iria aprontar no álbum seguinte que contava com a produção de Marco Mazzola. Desde Krig-ha, Bandolo!, Raul já estava envolvido com assuntos místicos e filosóficos por conta da influência de Paulo Coelho, com o qual firmou parceria já naquele álbum, e isso se refletiria bastante em Gita, novo trabalho que contaria com sete músicas da parceria Raul Seixas-Paulo Coelho, e cinco de autoria apenas de Raul.

Em fevereiro de 1974, Raul, Paulo Coelho e suas respectivas esposas, embarcaram para uma viagem para os Estados Unidos. Lá, a dupla teria feito supostos contatos com Jerry Lee Lewis, John Lennon e Yoko Ono, e até uma visita a Graceland, a lendária mansão de Elvis Presley, em Memphis, no Tennessee. No final daquele mês, estavam de volta ao Brasil, e as gravações de Gita foram retomadas.

Raul Seixas e Paulo Coelho, parceria que rendeu alguns dos maiores clássicos da história do rock brasileiro
como "Gita" e "Sociedade Alternativa.

Ainda no rastro do sucesso do álbum Krig-ha, Bandolo!, os shows de Raul eram bastante concorridos, e neles, o roqueiro baiano já tocava algumas músicas do álbum que estava gravando, como por exemplo, "Sociedade Alternativa", que passou no teste de aceitação do público.

O primeiro single do novo álbum foi "Gita", a canção, que chegou às lojas em maio de 1974. A música fez um enorme sucesso no rádio e o single vendeu milhares de cópias. Foi produzido um vídeo clipe para o programa Fantástico, da Globo, que se tornou um marco por ser um dos primeiros vídeo clipes totalmente a cores da televisão brasileira.

Às vésperas do lançamento do álbum Gita, Raul Seixas e Paulo Coelho foram presos pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) por ordem do I Exército, no Rio de Janeiro. A dupla já havia sido presa no começo de maio de 1974 pelo mesmo DOPS por causa do gibi A Fundação de Krig-Ha, que vinha encartado no álbum Krig-ha, Bandolo!, acreditando ser material subversivo, mas foram liberados. No entanto, os militares pareciam não estar nada convencidos com aqueles dois malucos. Desconfiavam da tal Sociedade Alternativa tão propagada por Raul e Paulo desde o álbum Krig-ha, Bandolo!, acreditando que poderia se tratar de movimento revolucionário comunista. O movimento já contava com o apoio de uma comunidade esotérica secreta chamada A.A.(Astrum Argentum), e de um terreno em Minas Gerais para a construção da Cidade das Estrelas, onde residiriam os adeptos da Sociedade Alternativa.

Ao contrário da primeira prisão, Raul e Paulo foram expulsos do Brasil com suas respectivas esposas em julho de 1974, mesmo mês que o álbum Gita era lançado.

Raul Seixas em cena do vídeo clipe de "Gita".

A faixa que abre Gita é "Super-Heróis" que faz citações de pessoas famosas como Pelé, Emerson Fittipaldi, Marlon Brando, Sílvio Santos e o enxadrista brasileiro Mequinho, que se tornou um fenômeno mundial do xadrez.

"Medo da Chuva" é uma canção sobre o aprisionamento de um casamento infeliz. Provavelmente, a canção reflete o momento em que estava o casamento de Raul com Eith Wisner que passava por uma crise. A letra de "Medo da Chuva" refletia o pensamento de Raul sobre a sua insatisfação com o seu casamento, e o seu desejo em vivenciar outros amores, outras paixões. Com o fim do casamento em 1974, enquanto Raul seguiu com a sua carreira artistística, Edith, que era filha de pastor norte-americano, foi morar nos Estado Unidos com a filha do casal, Simone Andrea Wisner Seixas.

No repente "As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor", Raul usa e abusa das metáforas para dar a sua visão de como funciona os mecanismos do sistema: "Raul Seixas e Raulzito / Sempre foram o mesmo homem / Mas pra aprender o jogo dos ratos / Transou com Deus e com o lobisomem". A belíssima "Água Viva" é inspirada no poema "Embora Seja Noite", de São João da Cruz (1542-1590), frade espanhol que foi canonizado em 1926 pela Igreja Católica. "Moleque Maravilhoso" traz os seu versos vestidos apoiados sob arranjos jazzísticos estilosos, e com uma interpretação sensacional de Raulzito.

Fechando o lado A da versão em vinil de Gita, "Sessão das 10", gravada pela primeira vez em 1971 por Edy Star para o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, do qual participaram Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e o próprio Raul Seixas. A canção, que é um verdadeiro dramalhão cafona e irreverente, ganhou um novo arranjo no álbum Gita, trocou o samba-canção por um bolero bem brega, típico dos bordéis dos anos 1970. E os versos são impagáveis como refrão que diz: "Curtiu com meu corpo / Por mais de dez anos / E depois de tal engano / Foi você quem me deixou".

O lado B começa com a emblemática "Sociedade Alternativa", da parceria Raul Seixas - Paulo Coelho, inspirada na ideologia do ocultista inglês Aleister Crowley (1875-1945) que através do Livro da Lei, escrito por ele em 1904, pregou a Lei de Thelema, cujo lema principal era "Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei". A frase não só inspirou a canção como também motivou Raul e Paulo a criarem um novo tipo de sociedade, mais livre e sem regras. O nome dessa sociedade deu nome à música, e seus princípios estão presentes nos versos.

O ocultista inglês Aleister Crowley: inspiração para Raul Seixas e Paulo Coelho criarem a Sociedade Alternativa.

A faixa seguinte, "O Trem das 7", é outra música do álbum cheia de metáforas e que deu margens às mais diversas interpretações. Uma delas seria a de que a canção faz referência à passagem da humanidade para uma nova era, o chamado novo aeon, profetizado por Crowley, e que o trem nada mais seria do que o elemento que transportaria a todos para essa nova era, esse novo momento. A canção que começa com violas sertanejas, encerra de maneira apoteótica com corais e orquestra.

"S.O.S" é um country-rock feito por Raul, mas que melodicamente, é um plágio descarado de "Mr. Spaceman", sucesso da banda The Byrds, de 1966. Na letra, Raul se mostra inadaptado a este mundo e pede para que algum ET o leve daqui num disco voador. "Prelúdio" é curtinha, mas ficou famosa pelos versos "Sonho que se sonha só / É só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade". Os versos são inspirados nos versos finais da música "Now Or Never", de Yoko Ono, gravada por ela em 1973 para o seu álbum Approximately Infinite Universe.

"Loteria da Babilônia" é outra faixa de Gita com conteúdo conflituoso. Há quem afirme que a música se refere a alguém que acumula posses. No entanto, outros acreditam que se refere à vida de Aleister Crowley.

Encerrando com chave de ouro, "Gita", a música que dá nome ao álbum, e que foi baseada no Bhagavad Gita, texto sagrado do hinduísmo que faz parte do Mahabharata, poema épico indiano escrito há mais de 2500 anos que narra o conflito entre duas famílias importantes pelo poder, os Pandavas e os Karauvas. Bhagavad Gita trata do diálogo do príncipe Arjuna com o deus Krishna, andes da batalha de Kurukshetra, o ponto alto do conflito entre as duas famílias. Ao mesmo tempo, a letra seria uma referência à onipresença de Deus.

O encontro entre o deus Krishna e o príncipe Arjuna: referência hindu para a canção "Gita".

Para uma letra sensacional como a de "Gita", foi preparado um arranjo instrumental a altura, marcante, imponente, com direito a uma orquestra de 62 músicos (entre cordas e metais), um coral de vozes que mais parece que veio de alguma comunidade celestial, e tudo isso somado ao baixo, guitarra e bateria de rock incríveis.

Por ironia do destino, enquanto Raul estava no exílio nos Estados Unidos, o álbum Gita se tornava um sucesso tremendo no decorrer de 1974. Além da faixa-título que estourou nas rádios, as outras também caíram no gosto do público como "Sociedade Alternativa", "Medo da Chuva", "O Trem das 7" e "S.O.S", impulsionando as vendas do álbum que alcançou a marca de 600 mil cópias vendidas. O sucesso de Gita teria feito o governo ditatorial brasileiro liberar o retorno de Raul em definitivo ao Brasil em dezembro de 1974, assim se consagrando com grande astro do rock brasileiro.

Faixas

Lado A