“A Panela do Diabo” (Warner, 1989), Raul Seixas e Marcelo Nova



Por Sidney Falcão

Na segunda metade dos anos 1980, Raul Seixas (1945-1989) estava em completa decadência artística. Atravessava por uma situação financeira terrível e por problemas de saúde agravados pelo vício no álcool e drogas. Raul estava desacreditado por jornalista e empresários do meio artístico. A possibilidade de Raul morrer esquecido e na miséria era quase certa. No entanto, sua parceria com Marcelo Nova - baiano de Salvador como ele - evitou que o mais expressivo astro do rock brasileiro tivesse um final de vida engolido pelo esquecimento. Essa parceria havia rendido uma turnê de 50 shows e um álbum, o A Panela Do Diabo, lançado dois antes da morte de Raul, em agosto de 1989.

Mas para entender como se deu esse encontro de dois roqueiros provocadores e irreverentes, é necessário voltar no tempo, até o ano de 1984, quando Raul Seixas e Marcelo Nova se encontraram pela primeira vez. Naquele ano, Raul havia ido ao Circo Voador, no Rio de Janeiro, assistir ao show da banda baiana de rock Camisa de Vênus, da qual Marcelo era vocalista. Ao saber que Raul estava na plateia, Marcelo convidou Raul para subir ao palco, onde juntos, na base do improviso, cantaram clássicos do rock’n’roll como “Long Tall Sally”, “Be Bop A Lulla” e “Tutti-Frutti”. Marcelo já era um fã de Raul desde a adolescência, nos anos 1960, quando frequentava os shows do ídolo ainda em início de carreira em Salvador onde era vocal do Raulzito & Os Panteras.

Um novo encontro entre os dois ocorreu em 1985, desta vez Marcelo Nova indo assistir ao show de Raul Seixas na casa noturna Raio Laser, em São Paulo. Marcelo foi ao camarim cumprimentar Raul. Trocaram telefones e endereços, e a partir daí, começava a nascer uma grande amizade entre os dois.

Ainda em 1985, em dezembro, Raul fez o seu último show como cantor solo, para depois afastar-se dos palcos para tratar da pancreatite crônica causada pelo alcoolismo. A partir daí, iniciou-se sua fase de ostracismo.

Enquanto isso, no ano seguinte, o Camisa de Vênus regrava um grande sucesso de Raul Seixas, “Ouro de Tolo”, presente em Correndo O Risco, álbum que marcou a estreia da banda baiana numa grande gravadora, a Warner.

Ainda que estivesse longe dos palcos, Raul continuou lançando discos. Em março de 1987, Raul lançava pela gravadora Copacabana, o álbum Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum, que vendeu mais de 100 mil cópias, puxado pelo sucesso do country rock “Cowboy Fora Da Lei”.

No mesmo ano, em outubro, chegava às lojas, Duplo Sentido, o último trabalho do quinteto baiano que estava encerrando as suas atividades em pleno auge da carreira. O álbum duplo trazia a faixa “Muita Estrela, Pouca Constelação”, parceria de Marcelo Nova e Raul Seixas que se tornou a primeira música da dupla a ganhar popularidade.

Com o fim do Camisa de Vênus, Marcelo Nova montou uma banda para acompanhá-lo na sua carreira solo, a Envergadura Moral. Com ela, lançou em agosto de 1988 o seu primeiro álbum solo, Marcelo Nova E A Envergadura Moral.

Na mesma época, Raul Seixas lançava um novo álbum, A Pedra Do Gênesis, pela gravadora Copacabana. Contudo, o veterano roqueiro baiano continuava ausente dos palcos por causa da sua doença. O fato não de fazer shows há cerca de três anos, agravou a sua situação financeira, que por tabela, comprometia o tratamento da sua saúde.

A péssima condição financeira e o estado debilitado de Raul causado pela pancreatite, sensibilizaram Marcelo Nova. O ex-líder do Camisa de Vênus que estava prestes a iniciar os seus primeiros shows da carreira solo, abriu mão deles, e decidiu se apresentar ao lado de Raul Seixas, dividindo o palco e o cachê. Assim, Marcelo pretendia não só ajudar financeiramente Raul, mas também reerguer a carreira de um ídolo que estava caindo no esquecimento. Em 18 de setembro de 1988, o primeiro show de Marcelo e Raul foi nada menos do que na cidade natal dos dois, Salvador, na antológica Concha Acústica do Teatro Castro Alves. O show levou o público ao delírio. Era a volta de Raul a um palco após três anos de ausência.

Dois meses depois, Marcelo e Raul partiam para uma turnê de cinquenta shows pelo Brasil. Durante a turnê, a dupla compôs novas canções. Não demorou muito, e surgiu um convite de André Midani, na época presidente da gravadora Warner no Brasil, para que a dupla gravasse um disco. Raul e Marcelo aceitaram o convite, e com fim da turnê, em maio de 1989, entraram no estúdio Vice-Versa, em São Paulo, naquele mesmo mês, para gravar o álbum.


Marcelo Nova e Raul Seixas: rock'n'roll e irreverência.

Em junho, saiu o primeiro single, “Carpinteiro Do Universo”, um “aperitivo” do álbum que Raul Seixas e Marcelo Nova estavam gravando. Com o single no mercado e a música tocando no rádio, deram entrevistas em rádios e participaram de programas de TV como Jô Soares Onze e Meia e Domingão do Faustão. Ainda em junho, a dupla partiu para uma nova turnê, iniciando por São Paulo, no Olympia. Raul e Marcelo encerraram a nova turnê em 13 de agosto, no ginásio Nilson Nélson, em Brasília.

Finalmente, chegava às lojas em 19 de agosto, o tão aguardado álbum de Raul Seixas e Marcelo Nova: A Panela Do Diabo. O título chocou uma parcela do público, e também os mais conservadores. A ideia para um título tão polêmico surgiu durante a turnê em junho de 1989, num show em Santa Bárbara d’Oeste, quando um grupo de evangélicos distribuiu panfletos para fãs que se dirigiam ao local para assistir à apresentação dos dois roqueiros baianos. Os panfletos associavam Raul Seixas e Marcelo Nova ao diabo.

Musicalmente, o repertório de A Panela Do Diabo é calcado no rock’n’roll, country rock, rhythm and blues, rockabilly e baladas. A irreverência e sarcasmo que marcaram tanto a carreira de Raul Seixas como a de Marcelo Nova, e também, é claro, a do Camisa de Vênus, estão presentes nas letras de algumas faixas do álbum. Mas em outras, há um teor mais intimista, confessional, e até mesmo pessimista, que dizem um pouco da trajetória de vida dos dois.

A Panela Do Diabo começa em alto astral com uma versão a cappella de “Be Bop A Lulla”, sucesso de Gene Vincent. Na sequência, a divertida e autobiográfica “Rock’n’Roll”, que conta um pouco da vida de Raul Seixas e Marcelo Nova. A música faz referências ao início de carreira de Raul Seixas, em Salvador (quando se contorcia imitando Little Richard e apavorando o público) e a o Teatro Vila Velha, templo da bossa-nova na capital baiana, onde Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé iniciaram suas carreiras sob a influência de João Gilberto (1931-2019). Há também referências ao começo da carreira de Marcelo Nova com o Camisa de Vênus, também na capital baiana, onde o nome da banda era vetado pelos meios de comunicação por acharem que era um “palavrão”. Raul e Marcelo fazem uma citação de “Roll Over Beethoven”, de Chuck Berry, e afirmam que seguirão fieis ao rock’n’roll até o fim de suas vidas.

Salvador, cidade natal de Raul Seixas e Marcelo Nova, e onde ambos
começaram suas carreiras artísticas.

O clima esfria um pouco com “Carpinteiro Do Universo”, uma balada country que trata da busca em ajudar os outros para estar bem consigo mesmo. No entanto, a busca incessante em ajudar o próximo pode beirar o egoísmo, segundo a canção: “O meu egoísmo, é tão egoísta / Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”.

“Quando Eu Morri” é uma canção ainda mais intimista que a anterior, e diz respeito ao passado de Marcelo Nova. Nela, Marcelo exorciza os seus demônios ao abordar o seu envolvimento com o ácido lisérgico (LSD). Em 1972, aos 21 anos de idade, Marcelo teve uma terrível bad trip que quase o levou à loucura. A notícia de que iria ser pai, o fez abandonar o consumo de drogas.

A faixa seguinte,“Banquete De Lixo”, é também autobiográfica e se refere a Raul Seixas. O banquete do título faz referência à experiência curiosa que Raul passou em Nova York, nos anos 1970, quando um mendigo vestido de palhaço lhe serviu comida. Ele ainda canta sobre as suas internações em clínicas de reabilitação. Na canção, Raul faz uma espécie de mea culpa com suas ex-mulheres. Os versos finais parecem uma despedida de Raul deste mundo.


Raul Seixas e Marcelo juntos em  turnê de cinquenta shows pelo Brasil. .


O lado B, na versão LP do álbum, começa com a irreverente “Pastor João E A Igreja Invisível”, uma crítica bem-humorada às igrejas que exploram a fé alheira sem o mínimo de escrúpulos: “ Para os pobres e desesperados / E todas as almas sem lar / Vendo barato a minha nova água benta / Três prestações, qualquer um pode pagar”. O refrão é simplesmente impagável realçando de maneira sarcástica que a picaretagem dos pastores desonestos não tem limites: “Pois eu transformo água em vinho / Chão em céu, pau em pedra, cuspe em mel / Pra mim não existe impossível / Pastor João e a igreja invisível”.

Em “Século XXI”, Raul Seixas e Marcelo Nova fazem uma reflexão sobre a frustração: “Há muitos anos você anda em círculos / Já não lembra de onde foi que partiu / Tantos desejos soprados pelo vento / Se espatifaram quando o vento sumiu”. 

“Nuit”, canção em que Raul faz a voz principal, acompanhado por belos vocais de apoio, foi inspirada numa antiga entidade egípcia que representa a deusa do céu e dosa astros. Era tida também como a deus que acolhia os mortos. Na letra, Raul parece flertar o tempo todo com a morte, como se estivesse se despedindo. Raul se autodeclara “o mistério do sol”. É uma canção emocionante, apesar da voz debilitada e desafinada de Raul Seixas por causa da doença.

Logo após uma canção tão profunda, seguem o rock’n’roll “Beste Seller” que parece discutir o controle midiático num Brasil recém-saído de uma ditadura, e balada em estilo bem cafona “Você Roubou Meu Vídeo Cassete”, talvez a faixa mais fraca do álbum.

Encerrando o álbum, “Câimbra No Pé”, a música do álbum que mais lembra o Camisa de Vênus pelos arranjos. A letra demonstra uma desilusão com o Brasil pós-ditadura: “Saiba esperto ou burro / Você vai morrer aqui / Isso é um perigo eu sei / Mas esse é um país perigoso / Se você vacilar neguinho chupa / Sangue do pescoço”.

A Panela do Diabo teve uma recepção razoável por parte da crítica que destacou positivamente a simplicidade dos arranjos e a qualidade das letras. Porém, apontaram problemas de desafinação vocal da dupla, neste caso, provavelmente motivada pela doença de Raul, que deixou sua voz bastante debilitada.

Mas o que ninguém imaginava, é que dois dias após o lançamento do álbum, Raul Seixas morre na manhã de 21 de agosto, em seu apartamento, em São Paulo. Embora Raul estivesse enfrentando uma doença difícil, que o deixou inchado e fragilizado fisicamente, o público não esperava essa morte tão repentina, e logo dois dias depois do lançamento de um novo disco. O corpo de Raul Seixas foi velado no Palácio de Convenções do Anhembi, em São Paulo. Depois foi transladado para Salvador, onde também foi velado e sepultado no cemitério Jardim da Saudade no dia 22 de agosto, na presença de familiares, amigos e centenas de fãs que cantaram as canções do “Maluco Beleza”.

Sepultamento de Raul Seixas atraiu milhares de fãs ao
cemitério Jardim da Saudade, em Salvador. 

A morte de Raul Seixas gerou uma comoção no grande público, e isso contribuiu nas vendas do álbum A Panela do Diabo, que vendeu mais de 150 mil cópias, conquistando assim um Disco de Ouro. Marcelo foi contemplado com um Disco de Ouro, e o de Raul Seixas, foi entregue à sua família, pois quando foi contemplado, ele já havia falecido. “Rock ‘n’ Roll”, “Carpinteiro Do Universo”, “Quando Eu Morri” e “Pastor João E A Igreja Invisível” se tornaram as músicas mais conhecidas do álbum.

Embora não tenha a mesma magnitude de Krig-ha, Bandolo! (1973) ou Gita (1974), dois dos álbuns mais importantes de Raul Seixas, A Panela do Diabo teve o papel de pôr um ponto final com dignidade na carreira do roqueiro baiano, contando com uma boa produção e lançamento através de uma grande gravadora. Assim como as turnês ao lado de Marcelo Nova, o álbum recuperou o prestígio de Raul Seixas ainda em vida, evitando que o astro maior do rock brasileiro morresse no esquecimento, como ocorreu com Ronnie Cord (1943-1986) e Sérgio Murilo (1941-1992), dois dos pioneiros do rock no Brasil que alcançaram a fama, mas morreram esquecidos. Raul saia de cena, partia para algum outro mundo, enquanto que a sua obra aqui embaixo, passou a ser mais cultuada do quando era vivo. 

Faixas

Lado A
  1. “Be Bop A Lulla” (Vincent - Davis)
  2. “Rock ‘n’ Roll” (Marcelo Nova - Raul Seixas)
  3. “Carpinteiro Do Universo” (Raul Seixas - Marcelo Nova)
  4. “Quando Eu Morri” (Marcelo Nova)
  5. “Banquete De Lixo” (Marcelo Nova - Raul Seixas)

Lado B
  1. “Pastor João E A Igreja Invisível” (Raul Seixas - Marcelo Nova)
  2. “Século XXI” (Marcelo Nova - Raul Seixas)
  3. “Nuit” (Raul Seixas - Kika Seixas)
  4. “Best Seller” (Marcelo Nova - Raul Seixas)
  5. “Você Roubou Meu Vídeo Cassete” (Raul Seixas - Marcelo Nova)
  6. “Câimbra No Pé” (Raul Seixas - Marcelo Nova)


Raul Seixas (voz), Marcelo Nova (voz e guitarra)
Banda Envergadura Moral: Gustavo Mullem (guitarra elétrica), Johnny Chaves (teclados), Carlos Alberto Calazans (baixo elétrico) e Franklin Paolillo (bateria)

Músicos convidados:
André Cristovam (guitarra), Ricky Ferreira (guitarra e pedal steel),
Paulo Calazans (violão), Luiz Bueno de Carvalho (violão de aço),
Kris, Maria Eugênia e Fátima (vocais de apoio)

Referências:
Revista Bizz – novembro/1989 – Edição 52
Revista Bizz – dezembro/1989 – Edição 53
Marcelo Nova - O Galope do Tempo: Conversas Com André Barcinski – André Barcinski, 2017, Editora Benvirá
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“Be Bop A Lulla” 



“Rock ‘n’ Roll” 



“Carpinteiro Do Universo”



“Quando Eu Morri” 



“Banquete De Lixo”



“Pastor João E A Igreja Invisível”



“Século XXI”



“Nuit” 



“Best Seller” 



“Você Roubou Meu Vídeo Cassete” 



“Câimbra No Pé”





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