“Krig-ha, Bandolo!” (Philips, 1974), Raul Seixas

Por Sidney Falcão

Foi na sétima edição do Festival Internacional da Canção, em 1972, que um jovem magro, vestido ao estilo Elvis Presley anos 1950 (topete e jaqueta de couro), subiu ao palco e surpreendeu o público cantando a canção “Let Me Sing, Let Me Sing”, uma mistura inusitada de rock’n’roll com baião. O jovem artista era Raul Seixas (1945-1989), e a partir daquela apresentação, a sua vida não seria mais mesma... e nem a da música brasileira. 

Mas até chegar àquele palco, Raul percorreu um longo caminho de experiências e frustrações. Raul Santos Seixas nasceu em 28 de junho de 1945, em Salvador, Bahia, filho de pai engenheiro ferroviário e de mãe dona de casa. Raul descobriu o rock’n’roll aos 12 anos, quando ele e sua família mudaram-se para uma casa próxima ao consulado americano em Salvador. Através da amizade com os americanos do consulado, Raul teve contato com discos de Elvis Presley (1935-1977), Little Richard (1932-2020), Chuck Berry (1926-2017), Fats Domino (1928-2017), entre outras novidades que vinham da terra do “Tio Sam”. Com o amigo Waldir Serrão (1945-2018), Raul criou em 1959 o Elvis Rock Club, fã clube dedicado a Elvis Presley, que reunia outros jovens fãs de rock’n’roll, que além de outras tantas coisas que faziam, saíam aprontando arruaças juvenis, como quebrar vidraças de lojas. 

Em 1961, Raul forma a sua primeira banda de rock, Os Relâmpagos do Rock, que após várias formações foi rebatizada para The Panthers. Novos renomeações ocorreram: foi chamada de Os Panteras e finalmente Raulzito & Os Panteras, em 1963. Até 1967, era a banda de rock mais requisitada em Salvador, principalmente para servir como banda de apoio para cantores que vinham se apresentar na capital baiana. 

Raul Seixas (no centro), nos tempos em que integrava o Raulzito & Os Panteras.

Naquele mesmo ano, Raul casou-se com Edith Wisner, filha de um pastor protestante americano. Por causa disso, eqle teve que deixar de lado a música para se dedicar ao vestibular. Raul foi aprovado em três cursos, Direito, Psicologia e Filosofia. Mas logo Raul retomou a música quando surgiu um convite do cantor Jerry Adriani (1947-2017), de quem o baiano se tornou amigo, para que a banda Raulzito & Os Panteras gravassem um disco na gravadora EMI-Odeon, no Rio de Janeiro. O álbum foi lançado, mas as vendas foram pífias. Depois de amargar o fracasso comercial com o primeiro e único disco, e passar dificuldades financeiras no Rio, a banda voltou para Salvador. 

Não demorou muito e Jerry Adriani ajudou Raul mais uma vez. Adriani convenceu o diretor da gravadora CBS, Evandro Ribeiro, e conseguiu um emprego de produtor naquela companhia para Raul. O baiano e sua esposa retornaram para o Rio de Janeiro. Entre 1968 e 1972, Raul produziu discos de vários artistas do cast da linha popular da CBS. Raul produziu discos de Jerry Adriani, Renato & Seu Blue Caps, Diana, Trio Ternura e vários outros artistas. Além, de produzir discos, Raul compôs canções para esses artistas. Toda essa experiência como produtor se tornaria de uma grande valia mais tarde para Raul.  

Em 1971, Raul, Sérgio Sampaio (1947-1994), Míriam Batucada (1947-1994) e Edy Star gravaram o álbum Sociedade da Grã Ordem Kavernista Apresentação Sessão das Dez, um álbum totalmente experimental e anticomercial, que assim como o álbum dos Panteras, foi um fracasso em vendas. 

Em 1972, conforme referido, Raul participa do  Festival Internacional Canção com duas canções compostas por ele, “Let Me Sing, Let Me Sing”, interpretada por ele, e “Eu Sou Eu, Nicuri É O Diabo”, esta última defendida por Lena Rios & Os Lobos. Ambas as canções foram finalistas do festival. A repercussão positiva da participação de Raul no FIC rendeu a ele um contrato com a gravadora Philips, mas como artista. Com isso, Raul teve que abrir mão de seu emprego de executivo da CBS, de salário generoso, para iniciar para valer a sua tão sonhada carreira de cantor. E é nessa mesma época que Raul conhece Paulo Coelho, nascendo desse encontro uma grande parceria. 

Por volta de maio de 1973, chegou às lojas Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock, um álbum gravado por Raul Seixas pela Philips, e que reúne releituras de clássicos dos primórdios do rock. Contudo, para evitar que as vendas desse disco atrapalhassem o álbum que Raul estava finalizando, Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock foi creditado à Rock Generation, uma banda fictícia. Naquele mesmo mês era lançado o single da canção “Ouro de Tolo”, que fez um sucesso avassalador. 

Raul Seixas cantando "Let Me Sing, Let Me Sing" no 7º Festival Internacional
da Canção
, em 1972.

Dois meses depois, em julho, finalmente o tão esperado primeiro álbum solo de Raul Seixas era lançado. Intitulado Krig-há, Bandolo! impressiona já pela capa, que mostra Raul bem magro, sem camisa, com um medalhão estranho pendurado no pescoço.  

Produzido por Marco Mazzola e Raul Seixas, Krig-há, Bandolo! contou com um time de músicos de alto nível para as suas gravações. A começar pelo experiente maestro, músico e arranjador Miguel Cidras (1937-2008), responsável pelos arranjos de cordas e metais do disco, e que foi uma figura fundamental para que os arranjos instrumentais conseguissem estar em harmoniza com os versos das canções. Embora membro do Renato & Seus Blue Caps, banda do cast da CBS, o baixista Paulo Cézar Barros foi convocado por Raul Seixas, com quem ele já havia trabalhado quando era produtor daquela gravadora, e do qual gostava da sonoridade robusta do seu baixo. Dentre os outros músicos que participaram das gravações estavam Jay Vaquer (guitarra), José Menezes (banjo e viola de 12 cordas), Luiz Claudio Ramos (violão), Alexandre (baixo), Miguel Cidras (piano e órgão), Luis Paulo (sintetizador), Pedrinho (bateria), Bill French (bateria), Paulinho Batera (berimbau), e dois membros da banda Azymuth, José Roberto Bertrami (piano; 1946-2012) e Ivan Conti “Mamão” (bateria).

Em Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, Raul já havia mostrado a sua inclinação para o experimentalismo e a irreverência, características que estão presentes em Krig-há, Bandolo!. A diferença é que em Krig-há, Bandolo!, essas características estão associadas a uma musicalidade mais acessíveis, mais popular, mais radiofônica, e talvez aí esteja um dos segredos para que o álbum tenha feito sucesso. 

Em Krig-há, Bandolo! traz uma interessante fusão musical que mistura rock’n’roll, folk rock, baião, country rock, música de Candomblé no caldeirão sonora de Raul Seixas. As letras são carregadas de um humor inteligente e sarcástico para criticar de forma velada o regime ditatorial militar que governava o Brasil. Por outro lado, outras canções são mais sérias, dotadas de uma carga poética, sobretudo as canções que fazem uma reflexão sobre a vida. Krig-há, Bandolo! marca a estreia da parceria Raul Seixas-Paulo Coelho, que renderia boa parte das canções mais icônicas da carreira do cantor baiano. 

O curioso título do álbum seria o grito de guerra de Tarzan que Raul Seixas e Paulo Coelho teriam visto numa história-em-quadrinhos do herói das selvas. A expressão “Krig-há, bandolo!”, que no idioma mangani (língua fictícia falada por Tarzan e os macacos) significaria “Cuidado, lá vem o inimigo!”. 

O título do álbum é uma expressão usada por Tarzan no idioma mangani.

O álbum começa com uma curiosa vinheta curta, que nada mais é que uma antiga gravação caseira de Raul Seixas, aos nove anos de idade, cantando “Good Rockn’ Tonight”, de Roy Brown (1925-1981), seguido pelo seu irmão Plínio Seixas, também criança, anunciando Raul como grande atração. 

Na sequência à vinheta, uma canção que virou um clássico do repertório de Raul, “Mosca na Sopa”, que começa num ritmo rock’n’roll anos 1950. De repente, após uma breve pausa, a música toma um rumo completamente diferente com a entrada de um berimbau e da percussão conduzindo um ritmo de roda de capoeira. O baixo de Paulo Cézar Barros reproduz o ritmo característico tocado pelo berimbau nas rodas de capoeira, e segue nessa mesma linha rítmica ao longo da música, mas apenas nos trechos em que o ritmo retoma o som das rodas de capoeira. Na letra, a tal mosca seria a metáfora do próprio Raul, que estaria chegando como artista para provocar, para questionar o conservadorismo e a hipocrisia através das suas canções. 

“Metamorfose Ambulante” vem em seguida, mais uma canção do álbum que se tornou antológica. A canção possui dois violões, bateria e um baixo com uma sonoridade bem acentuada (neste caso, mais uma vez o destaque para o baixista Paulo Cézar Barros) e um vocal de apoio bem ao estilo gospel americano. A letra de “Metamorfose Ambulante” faz referência sobre a liberdade pensamento e à necessidade do ser humano em rever opiniões, não ficar preso apenas a uma forma de conceito.

Na provocativa “Dentadura Postiça”, Raul dialoga com os vocais de apoio, onde a cada verso cantado pelo roqueiro baiano, o coro responde com “vai cair, vai sair”, numa alusão bem sutil à ditadura militar que governava o Brasil naquela época. O próprio título da música “Dentadura Postiça”, seria um trocadilho com “ditadura postiça”. 

"Dentadura Postiça" era um trocadilho sutil e debochada para ditadura postiça, em que
 Raul Seixas insinua que o regime autoritário brasileiro estaria para cair. 

A faixa “As Minas do Rei Salomão”, teria sido inspirada no livro de mesmo nome escrito por H. Rider Haggard (1856-1925), e ainda faz uma citação a Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), o que ressalta a influência da literatura na formação de Raul como artista.

O lado 1 do álbum termina com “A Hora do Trem Parar” que trata sobre a brevidade da vida. O final da canção traz um coro que lembra o coro de “Hey Jude”, dos Beatles. 

Em “Al Capone”, faixa que abre o lado 2 de Krig-há, Bandolo!, Raul Seixas dá conselhos ao famoso mafioso que dá nome à música. Ao longo da faixa, Raul dá conselhos a outras personalidades históricas como Júlio César, Jesus Cristo, Jimi Hendrix e o brasileiro Lampião. Merece destaque os solos de guitarra de Jay Vaquer.

A balada folk “How Could I Know” é a única faixa em inglês do disco. Composta por Raul, a letra é um incentivo para que o indivíduo trace o seu caminho para alcançar os seus objetivos, e assim, quem sabe, como diz a canção no final, “quem sabe você não será o próximo a entrar para a história”. Originalmente, esta canção se chamava “How Could I Know (Loves Was To Go”), seus versos tinham o teor mais romântico e Raul tinha a pretensão de enviar para Elvis Presley gravar. Uma gravação demo dessa versão foi lançada no começo dos anos 1990 na compilação Baú do Raul.

Raul Seixas e Paulo Coelho numa passeata pelo centro do Rio de Janeiro
para promover o single de "Ouro de Tolo"

 Com um título que seria uma fusão de rock com maxixe, “Rockixe” é uma crítica à mediocridade na vida moderna. O que impressiona nesta faixa são os arranjos, sobretudo os do naipe de metais.

A faixa “Cachorro-Urubu” tem esse título inspirado em Leonard Crow Dog (1942-2021), liderança indígena americana que no começo dos aos 1970, liderou um movimento que buscou unificar os povos indígenas e reivindicar os direitos desses povos. Em “Cachorro-Urubu”, Raul faz um contraponto à desesperança com o fim do sonho hippie dos anos 1960 e o choque de realidade com a chegada dos anos 1970. Se John Lennon (1940-1980) dizia “The dream is over” (“o sonho acabou”), Raul pregava a reação, o enfrentamento, a provocação. Raul ainda faz um interessante jogo de trocadilhos como nos versos “Baby o que houve na trança / Vai mudar nossa dança...” (trocadilho de trança com França, uma referência aos protestos de estudantes em Paris, em maio de 1968). E em “Eu sou cachorro-urubu em guerra com Zeú” (Zeú neste caso seria em guerra com EU ou Estados Unidos, que ainda estavam em conflito na Guerra do Vietnã).

A autobiográfica “Ouro de Tolo” encerra o disco com “chave de ouro”. Nos versos, Raul expõe a sua gratidão a Deus pelo sucesso profissional, mas que ao mesmo tempo, demonstra a sua inquietude e inconformismo. “Ouro de Tolo” possui uma linha melódica que remete a “Sentado À Beira do Caminho”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (1941-2022). 

Depois de “Ouro de Tolo”, o álbum encerra de vez com uma vinheta com uma fala dita por Raul que acabou ficando de fora da versão CD de Krig-há, Bandolo!: “Meu Nome é Raul Santos Seixas, sou baiano de quenguenhem, 8 horas de mula e 12 de trem. Mas que o mel é doce é coisa de que me nego afirmar, mas que parece doce, eu afirmo plenamente. Deus é aquilo que me falta para compreender o que eu não compreendo".

O sucesso das faixas “Ouro de Tolo", "Metamorfose Ambulante", "Al Capone" e "Mosca na Sopa" nas paradas de rádio em todo o Brasil fez com que o álbum Krig-há, Bandolo! tivesse um bom desempenho comercial e deram visibilidade a Raul Seixas, que passou a ser uma figura com presença frequente nos programas de TV.

Apesar da fama alcançada com Krig-há, Bandolo!, Raul Seixas estava no “radar” dos setores de repressão da ditadura militar. Raul e seu parceiro Paulo Coelho haviam fundado a Sociedade Alternativa, e por causa disso, foram presos e torturados pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), por ordem do I Exército, no Rio de Janeiro, em julho de 1974. Os militares acreditavam que essa sociedade fosse algum tipo de movimento revolucionário comunista. Às vésperas do lançamento do álbum Gita, Raul, Paulo Coelho e suas respectivas esposas tiveram que deixar o Brasil e partiram para um curto exílio nos Estados Unidos. Enquanto os casais estavam no exílio americano, o recém lançado Gita era o novo grande sucesso comercial do roqueiro baiano. Isso motivou o regime ditatorial mudar de ideia e liberar o retorno deles ao Brasil em dezembro de 1974. 

Faixas

Lado 1

1) Introdução: “Good Rockin’ Tonight” (Roy Brown)

2) “Mosca na Sopa” (Raul Seixas)

3) “Metamorfose Ambulante” (Raul Seixas)

4) “Dentadura Postiça” (Raul Seixas)

5) “As Minas do Rei Salomão” (Raul Seixas - Paulo Coelho)

6) “A Hora do Trem Passar” (Raul Seixas - Paulo Coelho)


Lado 2

1) “Al Capone” (Raul Seixas - Paulo Coelho)

2) “How Could I Know” (Raul Seixas)

3) “Rockixe” (Raul Seixas - Paulo Coelho)

4) “Cachorro Urubu” (Raul Seixas - Paulo Coelho)

5) “Ouro de Tolo” (Raul Seixas)

 

Ouça na íntegra o álbum 
Krig-ha, Bandolo!

"Ouro de Tolo" (lyric video)



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