“Titanomaquia” (Warner, 1993), Titãs
Os anos 1990 começaram como uma fase de instabilidade para os Titãs. Após quase uma década de sucesso consolidado, marcada por álbuns icônicos como Cabeça Dinossauro (1986) e Õ Blésq Blom (1989), o grupo viu sua coesão interna ser desafiada. A saída de Arnaldo Antunes, um dos membros fundadores, não apenas abalou a dinâmica criativa da banda, mas também expôs fissuras latentes entre os integrantes. Essa mudança, ocorrida após o lançamento de Tudo ao Mesmo Tempo Agora (1991) — um disco experimental que dividiu opiniões e enfrentou severas críticas —, adicionou ainda mais pressão sobre o grupo.
Em meio ao
clima de insatisfação e tensão, a banda decidiu explorar um novo direcionamento
sonoro, mais agressivo e visceral. A escolha de Jack Endino, produtor conhecido
por seu trabalho com nomes de peso da cena grunge como Nirvana e Soundgarden,
foi estratégica e simbólica. Mais do que uma decisão técnica, foi um grito de
resistência em um momento em que o rock brasileiro dos anos 1980 enfrentava o
desafio de se manter relevante em uma década de transformações. O resultado
dessa combinação de fatores foi Titanomaquia (1993), um álbum que reflete tanto
as turbulências internas quanto a vontade de reinventar o próprio legado.
Jack
Endino e o laboratório de som de Titanomaquia
A chegada de Jack Endino como produtor foi um divisor de águas para os Titãs. Conhecido como uma das mentes por trás do grunge de Seattle, com trabalhos emblemáticos ao lado de Nirvana ( Bleach ), Soundgarden e Mudhoney, Endino trouxe uma abordagem crua e direta ao estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, onde o álbum foi gravado entre setembro de 1992 e março de 1993. Foi lá que os Titãs mergulharam em um processo criativo intenso, transformando as sessões de gravação em um verdadeiro laboratório de experimentação sonora.
Com a ideia de um possível lançamento internacional, algumas faixas foram gravadas também em inglês, ampliando o escopo do projeto. A ausência de Arnaldo Antunes, porém, era um fantasma constante no estúdio. Para uma banda tão marcada pela multiplicidade criativa, perder uma voz e uma presença tão icônica exigiu adaptações. Jack Endino percebeu o impacto dessa ausência, mas ajudou o grupo a canalizar suas energias em um som mais pesado, agressivo e coeso. Essa parceria resultou em um disco que abraçou a raiva como combustível, rompendo com as convenções do rock brasileiro até então.
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Jack Endino, produtor de Titanomaquia. |
O que define Titanomaquia é sua crueza visceral, tanto na sonoridade quanto nas letras. O álbum apresenta riffs de guitarra pesados e marcantes, fruto do trabalho afiado de Tony Bellotto e Marcelo Fromer, enquanto a cozinha formada por Charles Gavin e Nando Reis imprime um ritmo feroz, que impulsiona o peso do disco. As letras transitam entre a inquietação social e o existencialismo, refletindo o clima tenso dentro e fora da banda.
"Será Que É Isso Que Eu Necessito?" e "Nem Sempre Se Pode Ser Deus" são verdadeiros manifestos da nova fase dos Titãs. As faixas respondem às críticas e reafirmam a identidade de uma banda que abraçou a provocação como arte. Já "Disneylândia" é uma obra-prima da ironia: uma crítica visionária à globalização e à cultura de massas, que se tornou um dos destaques do disco.
Em “Hereditário”, os versos sugerem resistência e esperança diante dos desafios da efemeridade da existência. Como o próprio título da faixa seguinte sugere, “Estados Alterados da Mente” trata dos estados psicológicos extremos e das reações humanas fora do controle da consciência. Por outro lado, em “Agonizando”, expressa os limites da intensidade do sofrimento físico e emocional do ser humano.
Outras músicas reforçam o caráter experimental do álbum. "A Verdadeira Mary Poppins" exala influências grunge, conectando os Titãs ao espírito do rock alternativo dos anos 1990. “Tempo Pra Gastar” versa sobre a despreocupação com o tempo e o desejo de liberdade para viver sem pressão ou direção definida. Seria esta música um contraponto a “AAUU”, do álbum Cabeça Dinossauro?
Enquanto
isso, "Dissertação do Papa Sobre o Crime Seguida de Orgia" carrega
uma lírica provocativa inspirada no Marquês de Sade, amplificando o tom
desafiador do disco. “Taxidermia” fecha o álbum traçando uma crítica à obsessão
pela aparência, fama e superficialidade.
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Os Titãs na época de lançamento de Titanomaquia, em julho de 1993. |
Lançado em julho de 1993, num momento de transição para os Titãs, Titanomaquia enfrentou uma recepção mista. Enquanto veículos como Folha de S.Paulo e O Globo destacaram a ousadia sonora e lírica do disco, o público mostrou-se reticente em abraçar essa nova fase. As vendas ficaram aquém das expectativas, cerca de 125 mil cópias vendidas, o que refletiu a dificuldade de equilibrar inovação artística com apelo popular.
Se por um lado o álbum marcou o desejo dos Titãs de se reinventarem, abraçando influências grunge e uma postura mais agressiva, por outro não conseguiu replicar o impacto estrondoso de obras anteriores como Cabeça Dinossauro e Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. Muitos fãs ainda buscavam os Titãs mais acessíveis e radiofônicos dos anos 1980, deixando o disco em um limbo entre o aplauso e a indiferença.
Apesar
disso, Titanomaquia firmou-se como um trabalho divisor de águas, que redefiniu
os rumos da banda e do rock brasileiro, servindo como testemunho de uma era em
que a ousadia artística desafiava tanto o mercado quanto as expectativas.
Legado e
influência de Titanomaquia
Com o passar dos anos, Titanomaquia conquistou um lugar especial na discografia dos Titãs, consolidando-se como um marco de transição para um som mais pesado e experimental. Apesar de subestimado à época de seu lançamento, o álbum revelou-se um precursor do espírito que dominaria o rock brasileiro nos anos 1990, quando a agressividade e a autenticidade passaram a ter maior espaço no cenário musical.
A parceria com Jack Endino e o flerte com o grunge conectaram os Titãs a uma linguagem global, enquanto a criação do selo Banguela Records, fruto dessa mesma fase, ajudou a impulsionar uma nova geração de bandas como Raimundos, que levaram o rock nacional a novos públicos. As letras ácidas e o peso sonoro de Titanomaquia ecoaram em músicos que buscavam romper com o convencional, tornando-o uma referência silenciosa, mas influente.
Titanomaquia permanece como um dos capítulos mais intrigantes e injustiçados da trajetória
dos Titãs, uma prova de que, mesmo em meio às tensões e rupturas, a
criatividade pode florescer. É um álbum que desafia o tempo, mantendo-se
relevante como símbolo de reinvenção e resistência artística.
Faixas
Todas as
faixas escritas por Titãs, exceto "Disneylândia",
"Hereditário" e "De Olhos Fechados", coescritas por Arnaldo
Antunes.
- "Será que É Isso Que Eu Necessito?"
- "Nem Sempre se Pode Ser Deus"
- "Disneylândia"
- "Hereditário"
- "Estados Alterados da Mente"
- "Agonizando"
- "De Olhos Fechados"
- "Fazer o Quê?"
- "A Verdadeira Mary Poppins"
- "Felizes são os Peixes"
- "Tempo pra Gastar"
- "Dissertação do Papa Sobre o Crime Seguida de Orgia"
- "Taxidermia"
Titãs:
Branco
Mello: vocal de apoio e voz solo em “Nem Sempre Se Pode Ser Deus”, “Estados Alterados da Mente”, “Felizes São Os
Peixes” e “Dissertação do Papa Sobre o Crime Seguida de Orgia”
Marcelo
Fromer: guitarra base
Tony
Bellotto: guitarra solo
Sérgio
Britto: mini-moog, órgão, vocal de apoio e voz solo em “Será Que É Isso O Que Eu Necessito?”, “Agonizando”, “Fazer O Quê?”
e “Tempo Pra Gastar”
Paulo
Miklos: sampler, sintetizador, vocal de apoio e voz solo em “Disneylândia”, “De
Olhos Fechados”, “A Verdadeira Mary Poppins” e “Taxidermia”
Nando
Reis: baixo e voz solo em “Hereditário”
Charles Gavin: bateria e percussão
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