“Õ Blésq Blom” (Warner, 1989), Titãs
O ano era 1989, e o então octeto paulista Titãs estava no primeiro escalão do rock brasileiro. Naquele momento, disputavam acirradamente com Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso e Engenheiros do Hawaii, o posto de banda de rock mais importante do Brasil. Os Titãs desfrutavam de uma popularidade invejável conquistada através do sucesso de público e de crítica dos álbuns Cabeça Dinossauro (1986) e Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas (1987). A banda estava com um prestígio tão grande que em julho de 1988, se apresentaram no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A apresentação foi registrada e foi lançada naquele mesmo ano no álbum Go Back, o primeiro álbum gravado ao vivo dos Titãs.
Para o
próximo álbum de estúdio, os Titãs poderiam muito bem repetir a “fórmula” de Cabeça
Dinossauro ou de Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas,
álbuns de grande sucesso comercial, afinal, como diz o ditado, “em time que
está ganhando, não se mexe”. Mas os Titãs pareciam mesmo dispostos a arriscar e
contrariar o ditado popular.
Foi da
aposta em sair da “zona de conforto”, e lançar um novo e consistente trabalho
que nasceu Õ Blésq Blom, em 1989. O
álbum foi uma evolução natural de Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas,
onde os Titãs experimentaram pela primeira vez no seu trabalho musical,
baterias programadas e samplers. Mas
apesar da presença da eletrônica, Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas ainda
conservava alguma crueza de Cabeça Dinossauro.
Em Õ
Blésq
Blom, os Titãs trouxeram o experimentalismo eletrônico aliado ao pop
com “vernizes” de música brasileira, uma configuração musical completamente
ausente nos dois discos anteriores. Houve em Õ Blésq Blom um emprego
maior das programações eletrônicas e sintetizadores, em detrimento das
guitarras, algo que gerou uma certa insatisfação aos guitarristas Marcelo
Fromer (1961-2001) e Tony Bellotto.
A concepção
de Õ
Blésq
Blom nasceu a partir do reencontro dos Titãs com Mauro e Quitéria, um
casal de cantadores paupérrimos que ganhava a vida cantando na praia de Boa
Viagem, no Recife. O primeiro encontro ocorreu em 1987, e o reencontro dos
Titãs com o casal se deu por conta do show da turnê de Go Back. O casal tinha um
jeito bem peculiar de se apresentar: Mauro, um ex-estivador, tinha um grau de
deficiência visual, cantava sacudindo um ganzá improvisado, num idioma que
supostamente era uma mistura de espanhol, inglês, grego e italiano, cujo
resultado era quase incompreensível. Quitéria acompanhava o marido na cantoria
e ditava o ritmo. O primeiro encontro ocorreu em 1987, mas nesse segundo
encontro, a banda fez algo diferente: Paulo Miklos, um dos vocalistas da banda,
com um gravador caseiro, decidiu gravar em fita cassete cerca de uma hora de
cantoria exótica do casal pernambucano.
Mauro e Quitéria: de cantadores das ruas do Recife à participação especial no álbum Õ Blésq Blom. |
Em pouco
tempo, a fita com as músicas gravadas de Mauro e Quitéria acabou conquistando
todo o resto da banda, que ouvia constantemente no restante da turnê de Go
Back. Durante a pré-produção de Õ Blésq Blom, Paulo Miklos
teve a ideia de incluir a cantoria de Mauro e Quitéria em “Miséria”, uma das
músicas selecionadas para o repertório do álbum. Uma ideia foi puxando outra, e
motivados pela cantoria popular de Mauro e Quitéria, os Titãs levaram em
consideram a possibilidade de incluir referências de música brasileira na
sonoridade do novo álbum, mas sem cair no lugar-comum, buscando uma abordagem
mais contemporânea.
A
pré-produção de Õ Blésq Blom mostrou-se bastante profícua. O grupo chegou a
compor e gravar trinta músicas, o que deu margem para a possibilidade que o
novo trabalho fosse lançado no formato álbum duplo. No entanto, optaram por uma
quantidade mais “enxuta” e coesa de canções, e decidiram que Õ
Blésq
Blom seria um álbum simples.
Presente no
novo álbum, “Racio Símio”, o nome de uma das faixas, quase foi o título do
álbum. Mas o fato de lembrar muito “Homem Primata” e “Cabeça Dinossauro”, os
membros da banda procuraram um nome diferente. Foi então que Nando Reis sugeriu
“Õ Blésq Blom”, uma estranha expressão usada pelo repentista Mauro que segundo
ele, significava “Os primeiros habitantes da Terra”.
A produção
do álbum ficou sob o comando de Liminha, o mesmo que havia produzido os dois
álbuns anteriores. Liminha tentou convencer a Warner em bancar as gravações do
álbum nos Estados Unidos, por causa dos recursos técnicos mais avançados, como o
estúdio de Prince, em Minneapolis. Embora os Titãs fossem um dos artistas de
maior sucesso do seu cast, a Warner
não quis bancar a ideia. O máximo que Liminha conseguiu da companhia, foi
trazer o engenheiro de som norte-americano, Brad Gilderman, profissional que já
havia trabalhado com astros como Janet Jackson e Tom Petty, mais equipamentos
novos.
Como a ideia
de gravar nos Estados Unidos naufragou, as sessões de gravação do novo álbum
acabaram ocorrendo nos estúdios Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, entre os meses
de julho e setembro de 1989. Foram os mesmos estúdios onde os Titãs gravaram Cabeça
Dinossauro e Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas.
Brad Gilderman, engenheiro de som norte-americano que trabalho com os Titãs no álbum Õ Blésq Blom. |
A arte da
capa de Õ Blésq Blom foi concebida por Arnaldo Antunes, um dos letristas
e vocalistas dos Titãs, que fez um trabalho bastante artesanal e que consistiu
em colagens de letras recortadas, borrões de café no papel, manchas de caneta e
até cinzas de cigarros. O resultado estético fez jus ao conceito experimental
do álbum.
Õ Blésq Blom começa com uma vinheta
com o casal de cantadores de Recife, Mauro e Quitéria, cantando no seu
“idioma”. Um trecho da gravação da fita gravada por Miklos na praia da Boa
Viagem com o casal, foi adicionado à vinheta que não só abre o álbum como serve
de introdução à faixa “Miséria”, que trata sobre o abismo social que separa
pobres e ricos no Brasil. A música é um pop rock com várias camadas de teclados
e programações eletrônicas, enquanto as guitarras desempenham papel secundário.
Nesta faixa, Paulo Miklos e Sérgio Britto se revezam nos vocais.
“Racio
Símio”, faixa que a princípio daria nome ao álbum, faz um interessante jogo de
palavras e de sentido dos versos dando um caráter surrealista: “Os cavalheiros sabem jogar damas / Os
prisioneiros podem jogar xadrez”; “Só
os mortos não reclamam / Os brutos também mamam”. Os Titãs fazem uma citação ao samba “Moro Onde Não Mora Ninguém”,
sucesso de 1975 do sambista Agepê (1942-1995): “Eu não tenho onde morar / Moro onde não mora ninguém”.
O reggae “O
Camelo E O Dromedário” traça uma curiosa reflexão sobre a diferença entre o
camelo e o dromedário, enquanto que o pop rock rápido e certeiro “Palavras”,
aborda o emprego das palavras no nosso cotidiano.
“Medo” é
talvez o único momento do álbum que faz lembrar os Titãs da fase Cabeça
Dinossauro. Neste rock raivoso e cheio de vigor, Arnaldo Antunes canta
sobre os medos que afligem o ser humano no mundo contemporâneo. As guitarras de
Marcelo Fromer e de Tony Bellotto assumem maior protagonismo nesta faixa. “Natureza
Morta”, é uma dispensável vinheta presente apenas na versão CD de Õ
Blésq
Blom.
Na versão LP
de Õ
Blésq
Blom, quem abre o lado B é “Flores”, uma das principais faixas do álbum
e que traz Branco Mello no vocal principal. Bastante surreal e mórbida, a letra
parece descrever o eu lírico da canção vivenciando o seu próprio funeral de
dentro do caixão, após tentativas de suicídio. Destaque para os riffs certeiro de guitarra de Tony
Bellotto e para os solos fantásticos de saxofone de Paulo Miklos.
Com Arnaldo
Antunes no vocal principal, “O Pulso” guarda um grau de “parentesco” com “Nome
Aos Bois”, do álbum Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas. Diferente de “Nome
Aos Bois”, onde a banda cinta 34 nomes de personalidades do século XX do Brasil
e do mundo, entre ditadores, homicidas, políticos, líderes religiosos e figuras
polêmicas, em “O Pulso”, os Titãs enumera uma série de doenças capazes de
causar repulsa ao ouvinte. Apesar da lista extensa de enfermidades, o refrão
ressalta que apesar de tudo, a vida insiste em resistir: “O pulso ainda pulsa”.
Em “32
Dentes”, Branco Mello canta o velho conflito entre gerações, onde os jovens não
confiam nos adultos. O pop funk “Faculdade” é uma das faixas menos
interessantes de Õ Blésq Blom, e que cairiam bem melhor no segundo álbum da banda,
Televisão
(1985).
Paulo Mikos
e Sérgio Britto voltam a se revezar nos vocais em Õ Blésq Blom na faixa “Deus
E O Diabo”, um funk eletrônico dançante em que a banda deu grande ênfase aos
sintetizadores e programações eletrônicas. A letra da música foge do
lugar-comum do embate com viés religioso entre “bem X mal”. Ao invés disso, os
Titãs retratam Deus e o Diabo convivendo num mesmo espaço, dividindo as
atividades banais do cotidiano.
Assim como iniciou, o casal Mauro e Quitéria encerra o álbum numa vinheta com sua cantoria.
Titãs em 1989. |
Lançado em 16 de outubro de 1989, Õ Blésq Blom teve uma recepção moderada por parte da crítica. Na semana de lançamento, a “Folha de S. Paulo” deu destaque de página inteira no seu caderno cultural “Ilustrada”. O jornalista Jimi Joe, no seu artigo para o jornal “O Estado de S. Paulo”, não foi nada simpático já no título: “Oito timoneiros no barco sem rumo”. Sônia Mara, do jornal “Folha da Tarde” foi irônica com os Titãs e mostrou-se pouco amistosa com a proposta musical de Õ Blésq Blom: “Eles são os picaretas mais refinados que o rock tupiniquim já produziu (...) Faltou neste LP material coeso e menos dispersivo”. Já o jornalista José Augusto Lemos, na sua resenha sobre o álbum para a edição de dezembro de 1989, da revista Bizz, destacou a produção de Õ Blésq Blom: “o vinil mais bem produzido que este país já viu”.
Em novembro
de 1989, os Titãs deram início à turnê de Õ Blésq Blom que percorreu
todo o Brasil e que durou até 1991, totalizando cerca de 500 shows. As
apresentações em São Paulo e na região Nordeste, contaram com a abertura do
casal Mauro e Quitéria.
Comercialmente,
Õ
Blésq
Blom foi bem-sucedido, alcançando a marca de pouco mais de 400 mil
cópias vendidas. Nada mal para uma obra onde os Titãs ousaram não repetir a
fórmula consagrada dos dois álbuns anteriores. O álbum gerou cinco singles: “Flores” (1989), “Miséria”
(1989), “Medo” (1989), “Deus E O Diabo” (1990) e “O Pulso” (1990).
Se as
críticas na semana de lançamento não foram nada generosas, o reconhecimento de Õ
Blésq
Blom veio quando o público, e mesmo a crítica, foram assimilando e
entendendo o álbum. Õ Blésq Blom venceu em seis categorias do Prêmio Bizz/1989:
“Melhor Disco”; “Melhor Música”, por “Flores” (eleita pelos leitores) e
“Miséria” (pela crítica); “Melhor Capa”; “Melhor Grupo” (eleito pela crítica);
“Melhor Show” e “Melhor Baterista”. No ano seguinte, em 1990, os Titãs
conquistaram o prêmio MTV Video Music Awards na categoria “Escolha da
Audiência/ Brasil”, pelo videoclipe de “Flores”.
Branco Mello em cena do videoclipe de "Flores". |
Õ Blésq Blom encerrou a década de 1980
para os Titãs com chave de ouro. Em 1991, começo de uma nova década, os Titãs
redirecionam novamente a sua música. Talvez influenciados pelos ventos do
movimento grunge que tomaram conta do cenário do rock mundial, os Titãs
abandonaram a sonoridade eletrônica, e passam a focar no rock mais cru e
agressivo. Com essa nova reorientação musical, os Titãs lançaram naquele ano o
álbum
Tudo Ao Mesmo Tempo Agora, o último da banda com Arnaldo Antunes, que
depois desse trabalho, deixou os Titãs para seguir carreira solo.
Alguns
críticos musicais apontam que o legado do álbum, já no final da década de 1980,
antecipava o que o seria perfil do rock brasileiro dos anos 1990, calcado na
fusão com ritmos brasileiros e o emprego tecnologia eletrônica. Para uma
parcela desses críticos, Õ Blésq Blom teria
influenciado nada menos que o Mangue Beat, movimento cultural liderado por
Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S.A, e que pôs Recife no mapa do
cenário pop brasileiro.
Em 2007, a
edição brasileira da revista Rolling
Stone elegeu Õ Blésq Blom o 74º melhor disco da música brasileira.
Faixas
Lado A
1. “Introdução
por Mauro e Quitéria” (Mauro – Quitéria)
2. “Miséria
“ (Arnaldo Antunes - Paulo Miklos - Sérgio Britto)
3. “Racio
Símio” (Arnaldo Antunes - Marcelo Fromer - Nando Reis)
4. “O Camelo
E O Dromedário” (Marcelo Fromer - Nando Reis - Paulo Miklos - Tony Bellotto)
5. “Palavras”
(Marcelo Fromer - Sérgio Britto)
6. “Medo” (Arnaldo
Antunes - Marcelo Fromer - Tony Bellotto)
7. “Natureza
Morta” (Arnaldo Antunes – Liminha - Branco Mello - Marcelo Fromer - Paulo
Miklos - Sérgio Britto)
Lado B
8. “Flores”
(Charles Gavin - Paulo Miklos - Sérgio Britto - Tony Bellotto)
9. “O Pulso”
(Arnaldo Antunes - Marcelo Fromer - Tony Bellotto)
10. “32
Dentes” (Branco Mello - Marcelo Fromer - Sérgio Britto)
11. “Faculdade”
( Arnaldo Antunes - Branco Mello - Marcelo Fromer - Nando Reis -Paulo Miklos)
12. “Deus E
O Diabo” (Nando Reis - Paulo Miklos - Sérgio Britto)
13. “Vinheta
Final por Mauro e Quitéria” (Mauro – Quitéria)
Titãs: Arnaldo
Antunes (vocal), Branco Mello (vocal), Charles Gavin (bateria e percussão),
Marcelo Fromer (guitarra e violão (em "Medo" e "32 Dentes")),
Nando Reis (baixo e vocal), Paulo Miklos (saxofone (em "Flores") e
vocal), Sérgio Britto (teclado e vocal), Tony Bellotto (guitarra, violão (em
"Flores") e violão de 12 cordas (em "32 Dentes")).
Referências:
Revista Bizz –
dezembro/1989 – Edição 53
Revista Bizz –
janeiro/1990 – Edição 54
A vida até parece uma festa: toda a história dos Titãs – Luiz André Alzer e Hérica Marmo,
2003, Editora Record
Wikipedia
“Introdução por Mauro e Quitéria”
“Miséria “
“Racio Símio
“O Camelo E O Dromedário”
“Palavras”
“Medo”
“Natureza Morta”
“Flores”
“O Pulso”
“32 Dentes”
“Faculdade”
“Deus E O Diabo”
“Vinheta Final por Mauro e Quitéria”
Comentários
Postar um comentário