“Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” (Warner, 1987), Titãs
Por Sidney Falcão
Em 1986, CabeçaDinossauro fez com que os Titãs saíssem da condição de uma banda mediana para a linha de frente do rock nacional. Combinando letras corrosivas, que atacavam o conformismo e a repressão, com uma sonoridade crua e direta, a banda paulista conseguiu um raro feito: agradar tanto à crítica quanto ao público em uma época de efervescência cultural. O sucesso desse álbum, marcado por hits instantâneos como “Polícia”, “O Que”, “Homem Primata”, “Família”, “AA UU” e “Bichos Escrotos”, trouxe uma nova responsabilidade para a banda: o que fazer a seguir? Em meio à alta expectativa, os Titãs abraçaram o desafio de continuar inovando, e o resultado foi Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, o quarto álbum de estúdio da banda. Se Cabeça Dinossauro foi uma revolução, Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas representou a consolidação dessa revolta criativa, expandindo os horizontes da banda sem perder o vigor que a consagrou.
Os Titãs entraram em estúdio para as gravações do novo álbum quando ainda estava fazendo a turnê de Cabeça Dinossauro. As gravações do novo álbum ocorreram no estúdio Nas Nuvens, entre agosto e outubro de 1987, tendo Liminha à frente da produção. Era o segundo álbum dos Titãs que Liminha produzia, sendo Cabeça Dinossauro o primeiro.
As gravações foram marcadas por experimentalismo, desde novidades tecnológicas como a bateria eletrônica e o sample. Mas o experimentalismo titânico foi também marcado por improvisos, como o uso de utensílio de cozinha assadeira, para fazer a percussão da faixa “Diversão”.
No final de outubro de 1987, a mixagem do álbum estava concluída, e o material gravado foi enviado para Londres para realizar os cortes no Town House. Algumas faixas, sobretudo as que são “grudadas” nas outras, precisavam cortes entre elas que no Brasil não foi possível por não haver no país tecnologia possível para realizar os cortes como a banda e produtor queriam.
Ainda sob os efeitos do impacto causado por Cabeça Dinossauro, a Warner começou a divulgar nas rádios de todo o Brasil a música “Lugar Nenhum”, faixa do novo álbum que estava por vir.
Os Titãs na época do álbum Cabeça Dinossauro. |
Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas é uma evolução natural de Cabeça Dinossauro. O álbum mantém o discurso contestador do seu antecessor, mas musicalmente, vai além ao propor o experimentalismo ao fazer uso dos recursos eletrônicos para a criação como bateria eletrônica e o sample. Nesse aspecto, os Titãs já acenavam para essa possibilidade com “O Que”, última faixa do álbum Cabeça Dinossauro, um funk onde a banda utilizou bases rítmicas eletrônicas e que foi o ponto de partida para o experimentalismo eletrônico empregado em Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas.
O curioso título do disco vem do título de uma das faixas do álbum. Esse título tão incomum veio de uma frase dita pela esposa de Nando Reis, ao afirmar que o Brasil era “o país de banguelas” ao se referir à pobreza no país. A dificuldade das camadas mais pobres da população brasileira ter acesso a tratamento dentário, acabava levando essas pessoas a perderem seus dentes. A partir da frase dita pela esposa, Nando Reis teve a ideia de compor com Marcelo Frommer (1961-2001) a música “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” e que daria nome ao álbum.
A capa do disco é uma foto que mostra colunas de um templo grego antigo, num total de oito colunas, contadas com a contracapa, cada uma delas representando cada membro dos Titãs. Ao mesmo, as colunas e os espaços vazios entre elas representariam simbolicamente uma arcada dentária desdentada, fazendo uma alusão do título do álbum.
O outro dado
interessante é que as colunas do templo grego antigo na capa do álbum fazem
referência ao nome da banda, que evoca os titãs da mitologia grega. As fotos
das colunas foram tiradas por um tio do vocalista Branco Mello durante uma
viagem à Grécia, e o conceito artístico foi criado por Sérgio Britto.
O escritor Paulo Leminski escreveu o release de lançamento do álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. |
O álbum abre com “Todo Mundo Quer Amor”, faixa curta, com uma base eletrônica e cheia de colagens sonoras. A letra escrita por Arnaldo Antunes versa sobre o amor como um sentimento vivenciado por todo tipo de gente, independente de caráter e condição social.
Logo na sequência, “Comida”, uma canção que traz nos seus versos a mensagem do inconformismo e da insatisfação. A letra discute a busca por mais do que necessidades básicas, enfatizando que as pessoas desejam também prazer, arte, diversão e uma vida plena, além de comida e dinheiro, afinal de contas, viver não se resume a trabalhar para pagar contas.
“O Inimigo” é uma repetição de dois versos, quase um “mantra”: “O inimigo sou eu, O inimigo é você”, que finaliza com “O inimigo sou eu / Às vezes você tem razão”. É daquelas faixas que não acrescentam grande coisa ao disco.
“Corações e Mentes” é um pop rock radiofônico que explora o conflito entre o amor e ódio. Reflete sobre as contradições emocionais e as dificuldades de encontrar paz em meio a esses sentimentos intensos. Em “Diversão”, os Titãs tratam da busca por prazer e distrações superficiais como uma forma de aliviar a dor e a solidão, apesar de muitas vezes serem soluções temporárias e fúteis.
“Infelizmente” encerra o lado A do álbum. A faixa aborda a alienação e a miséria humana, retratando a via de alguém preso em uma existência degradante e sem perspectiva de mudança.
Arnaldo Antunes em cena do videoclipe de "Comida". |
“Desordem” é outro pop rock radiofônico presente no disco, que abordam o caos social e a falta de justiça em uma sociedade marcada pela violência e corrupção. “Lugar Nenhum” remete aos tempos de Cabeça Dinossauro, e expressa a sensação do indivíduo em não pertencer a lugar algum, a rejeição de identidade e nacionalidade, e a sua busca por uma existência fora de qualquer categorização.
“Armas Pra Lutar” é de longe a faixa mais pesada e agressiva do álbum, e se mostra como um “filhote” da linha evolutiva de Cabeça Dinossauro. Veloz e pesado, o ritmo desta faixa traz como destaque a bateria executada por Charles Gavin, que alguns momentos têm a sua sonoridade sofrendo alternados tipos de efeito. As guitarras e o baixo garantem o peso necessário para o som agressivo desta faixa que versa sobre a ideia de viver sem a necessidade de recorrer a armas ou ferramentas de combate, defendendo uma abordagem mais pacífica e desarmada frente aos desafios da vida.
“Nome Aos Bois” encerra o álbum fazendo uma crítica através de uma lista com nomes de figuras históricas e contemporâneas negativas, incluindo ditadores e líderes polêmicos como Josef Stalin (1878–1953), Adolf Hitler (1889–1945), Richard Nixon (1913–1994) entre outros.
Adolf Hitler, Josef Stalin e Emílio Garrastazu Médici são citados na letra de "Nome Aos Bois". |
A recepção do álbum por parte da imprensa foi satisfatória. O jornalista do jornal Folha e S. Paulo, André Singer, achou o álbum “clichê e pouco poético”, mas afirmou que as letras “primitivas” faziam um “contraste satisfatório” com a criatividade dos arranjos detalhistas e bem elaborados das canções do disco. Para Luiz Carlos Mansur, do Jornal do Brasil, foi o “melhor disco produzido no Brasil” até então.
O público reagiu bem, afinal, mais 250 mil cópias do álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas foram vendidas, e foram gerados quatro singles, “Lugar Nenhum”, “Comida”, “Desordem” e “Diversão”.
Embora tenha lançado o álbum no final de novembro de 1987, os Titãs só partiram para apresentação em público do álbum a partir de janeiro de 1988, quando se apresentaram na primeira edição do festival Hollywood Rock, ocorrido na Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro, e no estádio do Morumbi, em São Paulo. O evento contou com a participação de bandas e cantores nacionais e internacionais. No entanto, o Jornal do Brasil afirmou que a performance dos Titãs foi a melhor de todo o festival.
Em fevereiro de 1988, os Titãs deram início à turnê nacional do álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. Mas, em junho, o então octeto paulista embarcou para a Suíça, onde se apresentou no Festival de Jazz de Montreux. O show foi gravado e o material resultou no primeiro álbum gravado ao vivo dos Titãs, Go Back, lançado em outubro de 1988.
Com Jesus
Não Tem Dentes no País dos Banguelas, os Titãs demonstraram que o
sucesso de Cabeça Dinossauro não foi um golpe de sorte, mas o
resultado de uma trajetória marcada pela ousadia e pela vontade de desafiar as convenções.
Ao misturar crítica social com inovação musical, o álbum consolidou a
identidade da banda e deixou um legado duradouro na música brasileira. As
faixas deste trabalho, que continuam a ecoar em shows e influenciar novas
bandas, são a prova de que os Titãs souberam traduzir o espírito do seu tempo
em arte, mantendo-se relevantes e à frente de seu tempo.
Faixas
Lado A
- “Todo Mundo Quer Amor” (Arnaldo Antunes) Arnaldo Antunes
- “Comida” (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Britto) Antunes
- “O Inimigo” (Branco Mello, Marcelo Fromer, Tony Bellotto) Branco Mello
- “Corações e Mentes” (Marcelo Fromer, Sérgio Britto) Sérgio Britto
- “Diversão” (Nando Reis, Sérgio Britto) Paulo Miklos
- “Infelizmente” (Sérgio Britto) Britto
Lado B
- “Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas” (Marcelo Fromer, Nando Reis) Nando Reis
- “Mentiras” (Marcelo Fromer, Sérgio Britto, Tony Bellotto) Miklos
- “Desordem” (Charles Gavin, Marcelo Fromer, Sérgio Britto) Britto
- “Lugar Nenhum” (Arnaldo Antunes, Charles Gavin, Marcelo Fromer, Sérgio Britto, Tony Bellotto) Antunes
- “Armas pra Lutar” (Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Tony Bellotto) Mello
- “Nome aos Bois” (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Nando Reis, Tony Bellotto) Reis
Titãs: Arnaldo Antunes (voz e vocais de
apoio), Branco Mello (voz e vocais de apoio), Paulo Miklos (voz e vocais de
apoio), Marcelo Fromer (guitarra base), Tony Bellotto (guitarra solo), Nando
Reis (baixo, voz e vocais de apoio), Sérgio Britto (teclados, voz e vocais de
apoio) e Charles Gavin (bateria e percussão).
Músico
convidado: Liminha (percussão em “Diversão”, baixo, sintetizadores e guitarra
em “Comida”; violão em “Desordem”; além de produtor do álbum).
Referências:
Dias de
Luta – o rock e o Brasil dos anos 80 – Ricardo Alexandre Luiz, 2013, Arquipélago Editorial, Porto
Alegre, Brasil.
Comentários
Postar um comentário