“Cabeça Dinossauro” (Warner, 1986), Titãs


A vida dos Titãs não estava nada fácil entre o final de 1985 e começo de 1986. O octeto paulistano vivenciava o momento mais difícil da sua carreira. Alguns fatores contribuíram para que os Titãs passassem por aquela situação tão complicada.

Para começar, o segundo álbum dos Titãs, Televisão, lançado em junho de 1985, apesar da razoável recepção da crítica e de ter duas faixas com boa execução em rádio como a faixa-título e “Incessível”, não ia bem nas vendas. Televisão havia alcançado a marca das modestíssimas 25 mil cópias. O primeiro e autointitulado álbum da banda, lançado um ano antes, também teve vendagens baixíssimas, ainda que a faixa “Sonífera Ilha” tivesse feito sucesso no rádio e na TV.

Enquanto os Titãs amargavam vendas baixíssimas, seus colegas de gravadora e conterrâneos do Ultraje A Rigor haviam conquistado a glória do rock brasileiro com Nós Vamos Invadir Sua Praia, álbum de estreia lançado em 1985 e que emplacou nove das suas onze as faixas e vendeu mais de 500 mil cópias.

Os Titãs também vivenciavam outro problema. A formação da banda, um octeto, mais a música que praticavam, pareciam não ser muito bem compreensíveis para o grande público. Curiosamente, os Titãs ao vivo eram mais pesados e agressivos, mas nos discos, o som da banda parecia “inofensivo”, não mostrava a garra que a banda tinha em cima do palco. Daí começou a despertar uma necessidade nos Titãs em buscar uma sonoridade mais coesa e que fosse ao mesmo tempo a marca da banda.

Detalhe da capa de Televisão, segundo álbum de estúdio dos Titãs.

Mas o maior problema e o mais grave foram as prisões de dois membros dos Titãs, o guitarrista Tony Bellotto e de um dos vocalistas, Arnaldo Antunes. Os dois foram presos em novembro de 1985 por porte de heroína. Bellotto foi acusado de porte, pagou fiança e foi liberado. Arnaldo foi preso acusado de porte e tráfico, e ficou na cadeia por 26 dias. Os dois responderam processo em liberdade.

O fato virou em notícias em toda a imprensa brasileira, e afetou em cheio a imagem da banda. Os Titãs viram alguns shows já agendados serem cancelados, assim como participações em programas de TV. Uma das pouquíssimas exceções foi o Perdidos na Noite, de Fausto Silva, na época exibido pela TV Record, de São Paulo.

Naquele momento tão difícil, os membros da banda mantiveram-se bem unidos não só por causa dos companheiros que respondiam a processos, mas pela própria existência dos Titãs. A banda contou com o apoio da gravadora e se presidente da época, André Midani, mesmo os Titãs com o contrato por um fio. Um próximo disco seria o último previsto no contrato, e daí em diante, o octeto paulistano ficaria sem gravadora. Ou seja, o novo disco poderia significar a salvação ou a depender dos resultados, o fracasso por completo da banda.

Em abril de 1986, já com repertório pronto, com “sangue nos olhos” e ansiosos para virar o jogo, os Titãs começaram o processo de gravação do novo álbum no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro. A produção ficou a cargo do renomado produtor Liminha, que contou com o apoio do também produtor Pena Schimidt e do engenheiro de som Vítor Farias.

Por ironia do destino, os Titãs teriam seu novo álbum produzido por alguém que eles tanto criticavam. Numa entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, em 1985, Branco Mello, um dos vocalistas dos Titãs, chegou a dizer que os discos produzidos por Liminha soavam iguais. E num momento em que os Titãs estavam buscando dar mais identidade própria à música que praticavam, o produtor escalado para conduzir a gravação do novo trabalho era a figura que eles tanto criticavam aos quatro cantos. O que eles não imaginavam é que seria justamente Liminha quem ajudaria à banda paulista a encontrar a sonoridade que tanto buscavam.

Nos primeiros dias de gravação, a convivência entre os Titãs e Liminha foi tensa. Mas no decorrer do processo de gravação do novo álbum, o clima se tornou ameno. Os Titãs baixaram a guarda e Liminha pôde passar toda a sua experiência, o que no resultado final, fez a banda aprender muito no que se refere à produção de um álbum.

Os Titãs durante as sessões de gravação do álbum Cabeça Dinossauro, em 1986.

Intitulado Cabeça Dinossauro, o terceiro álbum dos Titãs chegou às lojas em junho de 1986, sem muito alarde, trazendo na sua bela capa dupla, um desenho de Leonardo da Vinci (1452-1519), intitulado Um Homem Urrando, e na contracapa, outro desenho de Da Vinci, Cabeça Grotesca. O que se percebeu no álbum foi que os Titãs haviam conseguido no novo trabalho a tão sonhada identidade sonora da sua música, e ao mesmo tempo, um trabalho que era “nitroglicerina pura”. Do começo ao fim de Cabeça Dinossauro, os Titãs fizeram questão de expor toda a sua revolta, toda sua fúria, sem estar preocupado com as consequências. Ainda que a banda passeasse no álbum por estilos que iam do rock ao funk, passando pelo reggae, a atmosfera punk estava presente. A rebeldia do punk serviu de referência, de munição para que os Titãs disparassem toda a sua fúria para todos os lados, sem deixar pedra sobre pedra. Família, política, religião e polícia foram alvos dos questionamentos implacáveis do octeto paulistano.

A faixa que abre o álbum é a mesma que dá nome a ele. “Cabeça Dinossauro” possui um ritmo tribal que teria sido inspirado numa cerimônia indígena de uma tribo do Xingu, mesclado com rock. A percussão foi executada por Liminha.

Primeiro single de Cabeça Dinossauro, “AA UU” possui Sérgio Britto no vocal principal, e parece tratar sobre rotina e a vida estressante nos grandes centros urbanos, uma vida programada: “Está na hora de acordar / Está na hora de deitar / Está na hora de almoçar / Está na hora de jantar / Está na hora de acordar / Está na hora de deitar...”.

A faixa seguinte, “Igreja”, é provavelmente a mais polêmica de Cabeça Dinossauro. Foi composta por Nando Reis quando o filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard, foi proibido de ser exibido nos cinemas do Brasil pela Censura. O cantor Roberto Carlos, chegou a promover um boicote ao filme, o que ajudou a contribuir na proibição do filme em terras brasileiras. A letra é um verdadeiro ataque duro e direto à Igreja Católica e ao Cristianismo: “Eu não gosto do Papa / Eu não creio na graça / Do milagre de Deus”. De tão polêmica, Arnaldo Antunes era o único membro dos Titãs a se ausentar do palco nos shows da banda quando “Igreja” era executada.

Detalhe do cartaz do filme Je Vous Salue Marie, de Jean-luc Godard, 

“Polícia” mantém a metralhadora giratória dos Titãs em atividade e certeira. A música é um punk rock cru e direto, composto por Tony Belloto como uma resposta à sua prisão por porte de heroína no final de 1985. Belloto teria composto “Polícia” pensando em Paulo Miklos cantar, mas acabou ficando para Sérgio Britto que soube empregar na música toda uma fúria vocal compatível à raiva exposta na letra de Bellotto.   
  
A visita a Arnaldo Antunes na cadeia, preso por porte de heroína, mexeu tanto o baterista Charles Gavin, que ele compôs a “Estado Violência”.  A música é basicamente antiga, ainda dos tempos em que era baterista do Ira! e o título original era se chamava “Homem Palestino”. O fato ocorrido com Arnaldo, fez Gavin desengavetá-la e criar uma nova letra passando a se chamar “A Lei Que Eu Não Queria”. Para o novo álbum, música um novo título: “Estado Violência”. É uma crítica ao Estado e Justiça, e uma defesa da liberdade de pensar, de se expressar, de viver, numa época em que o Brasil já estivesse livre do tacão da Ditadura Militar.    

O hardcore “A Face do Destruidor” é praticamente uma vinheta. Paulo Miklos canta de maneira rápida e desesperadora em cima de uma base instrumental que curiosamente está numa rotação invertida. A ideia partiu de ninguém menos que Liminha, que sugeriu que a banda gravasse uma base instrumental normal, mas que os vocais fossem inseridos numa rotação ao contrário. O resultado final foi uma música veloz e caótica.

Com vocal principal de Arnaldo Antunes, “Porrada” é um punk rock que dá o recado direto às autoridades mais preocupadas em se promover do que cumprir com suas obrigações.

“Tô Cansado”, Branco Mello canta sobre rotina, tédio e mesmice. A letra traz uma sequência de versos que começam com a expressão “tô cansado”: “Tô cansado de me dar mal / Tô cansado de ser igual / Tô cansado de moralismo / Tô cansado de bacanal...”

“Bichos Escrotos” é uma das músicas mais antigas dos Titãs. A banda tocava desde 1982, quando fazia o circuito alternativo roqueiro de São Paulo, mas que só foi gravada após o fim da ditadura militar acreditando que ela passaria pela Censura. Ledo engano, a Censura proibiu a execução em rádio e TV por causa da expressão “vão se foder”. A letra seria uma crítica direta a uma parcela reacionária da sociedade pós-ditadura militar, moralista e cafona. De maneira raivosa, o vocalista Paulo Miklos conclama os ratos a invadirem os sapatos do “cidadão civilizado”. Seriam os ratos na letra da música, uma metáfora dos marginalizados pela sociedade? Musicalmente, “Bichos Escrotos” é uma misto de funk e rock, com uma linha de baixo bastante suingada e executada por Nando Reis.

Titãs em 1982, no início de carreira, quando ainda se chamavam Titãs do Iê-Iê-Iê e já tocavam "Bichos Escrotos" que
só seria gravada quatro anos depois para o álbum Cabeça Dinossauro.

E para quebrar uma sequência de rocks tensos e agressivos, o reggae “Família” para relaxar. Composta Arnaldo Antunes e Tony Belotto, a música traz Nando Reis no vocal principal que canta o cotidiano de uma família tradicional. O reggae é um ritmo que sempre esteve presente no repertório dos Titãs desde o primeiro álbum. Para o álbum, o produtor Liminha sugeriu que os Titãs dessem uma levada mais lenta para “Família”, o que dá a entender a versão dos ensaios, o ritmo da música seria mais rápido, talvez com uma pegada mais próxima ao ska.

“Homem Primata” é uma crítica ao capitalismo e à ambição destruidora do homem. O refrão (“Homem primata / Capitalismo selvagem...”) associa ambição humana desenfreada com a mentalidade de um ser que não evoluiu, e o capitalismo voraz com a irracionalidade e a selvageria. A música foi composta por Ciro Pessoa, Marcelo Fromer, Nando Reis e Sérgio Britto, o que leva a crer que “Homem Primata” é mais uma música antiga dos Titãs presente em Cabeça Dinossauro, já que Ciro deixou os Titãs em 1983 antes mesmo da banda gravar o seu primeiro e homônimo álbum em 1984.

“Dívidas” é mais um reggae presente em Cabeça Dinossauro. A música reflete bem a época de um Brasil com economia bastante instável, que havia apostado no Plano Cruzado lançado pelo governo do presidente José Sarney, mas que em poucos meses fracassou. Salário desvalorizado, juros abusivos e credores no encalço do devedor fazem parte do conteúdo da letra de “Dívidas”.

Um supermercado durante a época em que o Brasil viveu a euforia do Plano Cruzado, plano econômico lançado
no começo de 1986 pelo presidente José Sarney , mas que no final daquele mesmo ano fracassou.

Fechando o álbum, a faixa “O Que”, a faixa mais longa do álbum (pouco mais de cinco minutos) e a que deu mais trabalho para gravar. “O Que” foi composta por Arnaldo, e possui uma letra que apresenta uma grande influência da poesia concreta. A música é um funk com uma linha de baixo vigorosa e muito bem articulada com a bateria eletrônica programada por Liminha. Esses recursos eletrônicos programados empregados em “O Que” acabaram definindo os caminhos musicais que os Titãs seguiriam nos álbuns seguintes como Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987) e Õ Blésq Blom (1989).

O lançamento de Cabeça Dinossauro causou uma estranheza positiva na crítica musical. O álbum surpreendeu a imprensa que parecia perplexa diante do repertório bombástico de Cabeça Dinossauro que absolutamente em nada lembrava os dois álbuns anteriores. Em seu artigo no jornal O Estado de S. Paulo, o jornalista Alberto Villas escreveu: “Os Titãs ousaram: Cabeça Dinossauro é um disco de rock veneno, nervoso e forte”.

Ao contrário dos dois primeiros álbuns da banda, Cabeça Dinossauro nem se quer possuía uma canção romântica como “Insensível”, do álbum Televisão. Dos dois álbuns anteriores, a única coisa mais próxima do que há em Cabeça Dinossauro é “Massacre”, música que encerra Televisão e que talvez sem que os próprios titãs imaginassem, foi uma espécie de “premonição” do que seria o futuro da música da banda.

Em agosto de 1986, os Titãs começaram a turnê promocional de Cabeça Dinossauro, o que se revelou um teste para se analisar qual impacto que o novo álbum havia causado no público. O resultado não poderia ter sido melhor. Além das canções começarem a ganhar as rádios de todo o Brasil como “AA UU”, “Polícia”, “O Que”, “Homem Primata” e “Família”, o público cantava a plenos pulmões todas as faixas de Cabeça Dinossauro nos shows turnê, sempre com plateia lotada.

Os Titãs em 1986: apresentações incendiárias para plateias lotadas nos shows da turnê de Cabeça Dinossauro.

As apresentações dos Titãs que já eram bastante impactantes, tonaram-se demolidoras por conta do repertório demolidor e radical de Cabeça Dinossauro. Para se ter uma ideia, até mesmo no Rio de Janeiro, onde o público parecia demonstrar uma rejeição à banda desde o primeiro disco, durante a turnê de Cabeça Dinossauro a resposta foi inversa. O show da banda paulista no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, em março de 1986, foi literalmente devastador: o público ensandecido destruiu as cadeiras tomado pelo poder avassalador das canções de Cabeça Dinossauro.

Assim como os shows da turnê foram sucesso de público, as vendas do Cabeça Dinossauro surpreenderam até mesmo a banda. O álbum vendeu mais de 300 mil cópias, superando com folga as vendas dos dois primeiros álbuns dos Titãs juntos. A crítica por sua vez, se rendeu ao álbum. A revista Bizz elegeu Cabeça Dinossauro melhor álbum de 1986.

O sucesso incontestável de Cabeça Dinossauro não só tornou os Titãs mais maduros, como também elevou a banda paulista ao primeiro escalão do rock brasileiro. E mais do que isso, Cabeça Dinossauro ajudou a amadurecer aquela geração do rock brasileiro no que se refere às letras. Se até meados dos anos 1980, os temas abordados nas canções das bandas em boa parte tinham um caráter juvenil (comum nas bandas new wave cariocas), a partir de 1985/86, nota-se uma nova orientação nas abordagens nas letras mais contestadoras e existencialistas, lançando os holofotes naquela nova geração de compositores do rock brasileiro que começava a despontar como Renato Russo (Legião Urbana), Humerto Gessinger (Engenheiros do Hawaii) e Cazuza, por exemplo. Dentro dos Titãs, Arnaldo Antunes começava a despontar como um dos melhores compositores de sua geração, e o ponto de partida foi Cabeça Dinossauro, assim como Nando Reis. 

Ao longo dos anos, a importância de Cabeça Dinossauro só aumento, e nas diversas enquetes sobre os melhores discos da música brasileira de todos os tempos, o álbum é presença garantida. Em 2007, Cabeça Dinossauro figurou em 19º lugar na lista de melhores álbuns da música brasileira promovida pela edição brasileira da revista Rolling Stone.

Em 2012, em comemoração aos 30 anos dos Titãs, Cabeça Dinossauro ganhou uma edição especial que além de trazer as faixas originais, incluiu também faixas-bônus e versões demo das faixas do álbum. Naquele mesmo ano, os Titãs fizeram uma grande turnê pelo Brasil tocando na íntegra o álbum Cabeça Dinossauro, o que resultou depois no lançamento de Cabeça Dinossauro Ao Vivo – 2012, lançado em CD, DVD e Blu-ray. Aquela turnê motivou os Titãs a gravar um disco de inéditas com o mesmo espirito contestador e rebelde de Cabeça Dinossauro, o álbum Nheengatu, lançado em 2014.

Faixas
  1. Cabeça Dinossauro" (Arnaldo Antunes - Branco Mello - Paulo Miklos)
  2. "AA UU" (Marcelo Fromer - Sérgio Britto)
  3. "Igreja" (Nando Reis)
  4. "Polícia" (Tony Bellotto)
  5. "Estado Violência" (Charles Gavin)
  6. "A Face do Destruidor" (Arnaldo Antunes - Paulo Miklos)
  7. "Porrada" (Arnaldo Antunes- Sérgio Britto)
  8. "Tô Cansado" (Branco Mello - Arnaldo Antunes)
  9. "Bichos Escrotos" (Nando Reis - (Arnaldo Antunes- Sérgio Britto)
  10. "Família" (Tony Bellotto - Arnaldo Antunes)
  11. "Homem Primata" (Marcelo Fromer - Ciro Pessoa - Nando Reis - Sérgio Britto)
  12. "Dívidas" (Branco Mello - Arnaldo Antunes)
  13. "O Quê?" (Arnaldo Antunes) 


Titãs: Arnaldo Antunes (voz em 7 e 13, coros), Branco Mello (voz em 1, 8 e 12, coros), Marcelo Fromer (guitarra base, guitarra solo em 3 e 10), Tony Bellotto (guitarra solo, guitarra base em 3 e 10), Nando Reis (baixo, exceto em 3, voz em 3 e 10, coros), Paulo Miklos (voz em 5, 6 e 9, coros, baixo em 3), Sérgio Britto (teclados, voz em 2, 4 e 11, coros) e Charles Gavin (bateria e percussão).

Convidados: Liminha (guitarra base em 10 e 13, percussão em 1, Oberheim DMX em 13) e Repolho (castanholas em 11)



Ouça o álbum Cabeça Dinossauro na íntegra



"Cabeça Dinossauro" (videoclipe original)



"AA UU" (videoclipe original)



"O Que" (videoclipe original)



"Homem Primata" (videoclipe original)

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