“O Papa É Pop” (BMG/RCA), Engenheiros do Hawaii
Por Sidney Falcão
Na virada da
década de 1980 para a década de 1990, os Engenheiros do Hawaii estavam com o
prestígio em alta. Desde o segundo álbum de estúdio, A Revolta dos Dândis
(1987), a popularidade do trio gaúcho estava em franco crescimento. A banda
emplacava um sucesso atrás do outro, as vendagens de discos aumentaram e as
apresentações passaram a ter plateias cada vez maiores. A fase estava tão boa
que em setembro de 1989, a banda fez quatro apresentações em Moscou, ainda na
então União Soviética. No mesmo ano, em outubro, os Engenheiros do Hawaii
lançaram o primeiro álbum gravado ao vivo do trio, Alívio Imediato.
Com o
prestígio tão em alta, os Engenheiros no Hawaii figuravam-se naquele momento
entre as quatro maiores bandas do rock brasileiro. As outras três eram a Legião
Urbana, Titãs e Paralamas do Sucesso. Contudo, o sucesso dos gaúchos parecia
não convencer uma parcela da crítica musical, principalmente a do eixo Rio-São
Paulo. Alguns analistas pareciam ter implicância com o trio, e isso ficava
evidente em algumas resenhas e matérias a respeito da banda, o que em alguns
momentos, acabou gerando atritos e troca de farpas entre alguns críticos e a
banda. Ainda, os Engenheiros do Hawaii procuravam, ao lado dos seus fãs, dar de
ombros a esses críticos, afinal a o sucesso da banda era uma realidade.
O ápice da
fama dos Engenheiros aconteceu em 1990, através do seu quarto álbum de estúdio,
O
Papa É Pop. Lançado em outubro daquele ano, O Papa É Pop foi um
divisor de águas na carreira do trio gaúcho, tanto do ponto de vista comercial
como artístico. Foi o álbum mais vendido dos Engenheiros do Hawaii, e
artisticamente, promoveu um redirecionamento musical do grupo. O fã mais atento
deve ter percebido que essa reorientação estava por vir já no álbum Alívio
Imediato, que embora gravado ao vivo, trazia duas faixas inéditas
gravadas em estúdio que davam sinais de um processo mudança musical: “Nau À
Deriva” e “Alívio Imediato”. Essas duas músicas já davam pistas
de que o som da banda se distanciaria do folk rock que predominou nos álbuns A Revolta dos Dândis e Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém (1988) e se
direcionaria para o rock progressivo.
O Papa É Pop marcou o distanciamento dos Engenheiros do Hawaii do som folk rock de A Revolta dos Dândis e de Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém. |
A capa apresenta os membros e uma fotografia do papa João Paulo II (1920-2005) tomando chimarrão. Essa fotografia do papa foi cedida pelo ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola (1922-2004) e pelo fotógrafo Carlos Contursi, tirada em 1980, quando o Papa João Paulo II visitou o Brasil pela primeira vez, passou pelas principais capitais brasileiras, entre elas Porto Alegre, onde foi fotografado tomando chimarrão com chapéu de gaúcho na cabeça.
Foi a partir
de O
Papa É Pop que os Engenheiros do Hawaii passaram a fazer uso com maior
frequência de sintetizadores, piano elétrico e bateria eletrônica, recursos que
só aumentaram as evidências do direcionamento musical da banda para uma
sonoridade mais elaborada, como é tão peculiar no rock progressivo. Tal
direcionamento contrastava com as tendências roqueiras em voga na época como o
grunge, o funk rock e a onda Madchester, liderada pelos ingleses dos Stone
Roses.
Apesar de
não ser necessariamente um disco de rock progressivo, O Papa É Pop é um
trabalho que está próximo disso, entre o progressivo e o pop rock. O baixista e
vocalista do trio, Humberto Gessinger, nunca escondeu a sua admiração pelo rock
progressivo. O ex-baixista do Pink Floyd, Roger Waters, foi uma das principais
referências na formação musical de Gessinger, seja na maneira de tocar como no
processo criativo. Essa influência “wateriana” parece ter pairado sobre
Humberto Gessinger, sobretudo nas três primeiras faixas de O Papa É Pop que têm como
mote a guerra, o que nos faz lembrar de The Wall (1979) ou The
Final Cut (1983), ambos álbuns do Pink Floyd cujos conceitos foram
desenvolvidos por Roger Waters. No entanto, é possível também notar influências
de Rush neste quarto álbum de estúdio dos gaúchos.
O ex-Pink Floyd Roger Waters: referência na formação musical de Humberto Gessinger. |
Na versão LP
do álbum, cada lado foi batizado com um nome. O lado A foi chamado de “Lado
Papa”, e o lado B de “Lado Pop”.
O chamado
“Lado Papa” (o lado A) começa com “O Exército de Um Homem Só I”, música cujo
título foi inspirado no livro O Exército
de Um Homem Só, do escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011), lançado em
1973. A música é dedicada ao piloto alemão Mathias Rust, que em maio de 1987,
com apenas, 18 anos de idade, invade o espaço aéreo da União Soviética com um
avião Cessna 172, e pousou em plena Praça Vermelha, em Moscou.
Em seguida
vem “Era Um Garoto Que Como Eu Amava Os Beatles e Os Rolling Stones”, gravada
pela primeira vez pela banda Os Incríveis, em 1967. A canção é uma versão em
português da italiana “C'era Un Ragazzo Che Come Me Amava I Beatles E I Rolling
Stones”, composta por Franco Migliacci e Mauro Lusini, e gravada originalmente
por Gianni Morandi em 1966. A letra trata sobre um jovem que foi mandado para a
Guerra do Vietnã, deixando para trás sua família, amigos e sonhos para encarar
uma guerra que não era sua. Voltou de lá morto, enfiado num caixão e com duas
medalhas no peito. A música era tocada pelos Engenheiros dos shows da campanha
para presidente da república de Leonel Brizola, em 1989. Empolgados pela boa
recepção do público nos shows dos comícios, decidiram gravá-la.
A versão dos
Engenheiros para “Era Um Garoto Que Como Eu Amava Os Beatles e Os Rolling
Stones” é mais robusta, mais elaborada que a dos Incríveis, recheada de
teclados, loops e efeitos de gravação. Existem exageros como um solo de guitarra
tocando o Hino da Independência do Brasil e uma voz de um locutor berrando
“Brasil!, Brasil!”, descaracterizando a proposta original da canção que faz
referência a um conflito que envolveu os Estados Unidos e o Vietnã. A
regravação da música em si soa anacrônica para a época, já que a Guerra do
Vietnã já havia acabado há mais de 15 anos, e as questões geopolíticas eram
outras como a recém queda do Muro de Berlim, a reunificação das Alemanhas e a
Guerra do Golfo, que havia começado em agosto de 1990, dois meses antes do
lançamento de O Papa É Pop.
Ainda sobre
a relação Engenheiros do Hawaii e os Incríveis, um dado curioso sobre
a capa de O Papa É Pop é que o seu projeto gráfico foi inspirado na capa
de um single dos Incríveis, lançado, em 1971. Da faixa preta na parte superior
da capa até a disposição foto e das letras, percebe-se uma grande semelhança
entre as capas.
Single dos Incríveis de 1971 e O Papa É Pop: semelhanças estéticas. |
Assim que
acaba “Era Um Garoto...”, entram a bateria de Carlos Maltz em ritmo marcial,
seguida por um som de soldados marchando, dando início a “O Exército De Um
Homem Só II”, a segunda parte da música que abre o álbum, também dedicada ao
piloto Mathias Rust. Desta vez, por um envolvimento do piloto numa tentativa de
homicídio, que tentou esfaquear uma enfermeira por quem se apaixonou, mas não
era correspondido: foi preso e condenado a quatro anos de prisão.
“Nunca Mais
Poder” possui um título de duplo sentido: ora uma negação a ter poder, ora
poder ter ou fazer alguma coisa. Inspirada no poema “Eterno”, de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), “Nunca Mais Poder” trata sobre o passado e o
presente, o eterno e o moderno, o ontem e o hoje. A música termina com uma
linha melódica bastante conhecida como se fosse uma “senha” para a faixa seguinte.
“Pra Ser Sincero”
começa com um solo de piano citando o final da faixa anterior. Esta é uma das
mais famosas canções dos Engenheiros do Hawaii, uma balada romântica e
melancólica sobre um relacionamento acabou.
A letra de "Nunca Mais Poder" foi inspirada no poema "Eterno", de Carlos Drummond de Andrade (foto). |
O “Lado
Papa” (o lado A), se encerra com o rock balada “Olhos Iguais Aos Seus”, que
começa com a voz de Humberto Gessinger acompanhado por um piano elétrico, para
mais adiante ter o acompanhamento dos outros instrumentos. Ao final, a canção
termina com a voz de Gessinger num efeito “metálico” perguntando “o que fazem as pessoas para serem tão
iguais?”.
O “Lado Pop”
(o lado B) começa com “O Papa É Pop”, a faixa que dá nome ao álbum, um dos
maiores sucessos da carreira dos Engenheiros do Hawaii. A música trata sobre
consumismo e o imediatismo do mundo moderno, onde qualquer coisa pode virar
produto de consumo ou elemento promocional, desde uma camiseta com frases de
efeito a um atentado contra personalidades, como a que ocorreu contra o Papa
João Paulo II, em 1981. Tudo vira marketing, tudo vira produto, tudo é capaz de
vender qualquer coisa, e esse é o mote da canção. Em “O Papa É Pop”, os
Engenheiros do Hawaii contam com participação especial dos veteranos do Golden
Boys, grupo vocal que fez muito sucesso na Jovem Guarda, e que também era muito
solicitado para fazer vocais de apoio nas gravações de discos de diversos
artistas.
As duas
próximas faixas, “A Violência Travestida Faz Seu Trottoir” e “Aconteceu Em
Porto Alegre”, apesar de não terem sido sucessos radiofônicos, sãos duas das
mais interessantes faixas do álbum O Papa É Pop. São também as mais longas do disco e as que mais deixam evidentes
o direcionamento da banda para o rock progressivo.
Em “A Violência Travestida Faz Seu Trottoir” o trio gaúcho
aborda as várias facetas e sutilezas da violência em nossas vidas, algumas até
quase imperceptíveis. A música é dividida em vários andamentos, ora mais
rápido, ora mais lento. No meio da canção, Humberto narra uma história
inusitada de um homem apaixonado por uma apresentadora de programa infantil da
TV, que se suicidou por não ter o seu amor correspondido. Na área instrumental
da música, o destaque fica para o ritmo cavalgado da linha de baixo executada
por Humberto Gessinger. Uma curiosidade: a voz feminina que participa da canção
é a da cantora Patrícia Marx, que na época tinha apenas 16 anos.
A então cantora adolescente Patrícia Marx e Humberto Gessinger no intervalo de gravação de O Papa É Pop. |
“Anoiteceu Em Porto Alegre” é uma espécie de crônica em forma
de música que retrata os fatos que acontecem nas ruas e becos da cidade de
Porto Alegre durante a noite e madrugada de um dia qualquer. A letra faz
citações de Beatles e Pink Floyd. Em meio aos versos, há várias colagens
sonoras como as do programa A Voz do
Brasil e de uma narração de um locutor esportivo narrando a vitória do
Grêmio (time do qual Humberto Gessinger é torcedor) campeão da Taça
Libertadores e campeão mundial de clubes em 1983.
“Ilusão De Ótica” é a faixa que encerra o álbum, e brinca com
as frases subliminares. Na época que o álbum foi lançado, “Ilusão De Ótica”
causou uma certa polêmica. Num determinado trecho final da música, Humberto
Gessinger parece falar em russo, mas na verdade, a rotação de sua voz está em
sentido inverso. Executando o disco ao contrário, pode-se ouvir o que realmente
quis dizer: "Por quê que cê tá
ouvindo isso ao contrário? O quê que 'cê tá procurando? Hein?" e aí, mais
adiante, volta ao normal, quando o final da música é marcado por mais coisas da
"linguagem alienígena" do vocalista, encerrando a música, os versos
ao contrário eram "mal entendido,bem intencionado/mal informado, bem
aventurado/Jesus salva, salve as baleias,leia livros/safe sex, relax/o papa é
pop, o país é pobre, o PIB é pouco/meu pipi no seu popô, seu popô no meu
pipi/poesia é um porre/o futebol brasileiro são várias camisetas com a mesma
propaganda de refrigerantes/a juventude brasileira.../sem bandeiras, sem
fronteiras pra defender". Ou seja, tudo não passa de uma brincadeira,
uma “pegadinha” para surpreender aqueles que veem teoria da conspiração em tudo.
Da esquerda para a direita: Augusto Licks, Humberto Gessinger e Carlos Maltz. |
Nas versões CD e fita cassete, foi incluída uma faixa bônus,
“Perfeita Simetria”, que é uma “irmã” da faixa “O Papa É Pop”, por possuir uma
base instrumental semelhante, mas uma letra diferente.
Como era de se esperar quando se tratava de um novo disco dos
Engenheiros do Hawaii, a recepção de O Papa É Pop por parte da imprensa
não foi das mais amistosas. Numa resenha sobre o álbum para a revista Bizz, o crítico musical Celso Masson
afirmou que as canções do disco eram “tudo
que a juventude desinformada e ingênua gosta”, e foi muito sarcástico na
conclusão: “como todo disco dos
Engenheiros, este também é só para enganar otário”. Fernando de Barros, do
jornal Folha de S. Paulo, em sua
análise sobre o álbum O Papa É Pop, diz que a banda
transformou de novo em hit uma “canção capenga” (referindo-se à regravação de
“Era Um Garoto...”) e classificou o álbum como uma “choradeira contracultural”
para “alimentar a indústria da diversão”.
Num sentido completamente inverso, O Papa É Pop caiu nas
graças do público. Puxado pelas faixas “O Exército De Um Homem Só I”, “Era Um
Garoto...”, “Pra Ser Sincero” e a faixa-título, o álbum chegou à casa das 400
mil cópias vendidas, e isso numa época em que o Brasil passava por uma crise
econômica, onde alguns artistas tiveram baixas nas vendas de seus discos.
O sucesso de O Papa É Pop e a ascensão que os
Engenheiros já vinham desde A Revolta Dos Dândis, credenciaram a
banda a participar do Rock In Rio II, em janeiro de 1991, no estádio do Maracanã,
no Rio de Janeiro. O trio gaúcho fez uma das melhores apresentações daquela edição
do festival, segundo o jornal The New
York Times, enquanto que o jornal Folha
de S.Paulo desqualificou a apresentação da banda.
Apesar das críticas duras de uma parcela da imprensa, os Engenheiros do Hawaii não se abalaram com os ataques. Depois da turnê de O Papa É Pop, o trio entrou de férias, mas que não duraram muito. Logo estavam de volta ao trabalho para preparação de repertório para o disco seguinte, Várias Variáveis, de 1991, trabalho em que banda deu prosseguimento ao seu direcionamento musical para o rock progressivo.
Faixas
Todas as
músicas escritas por Humberto Gessinger , exceto onde indicado.
Lado A ("Lado
Papa")
- "O Exército de um Homem Só I" (Augusto Licks - Humberto Gessinger)
- " Era um Garoto que, como Eu, Amava os Beatles e os Rolling Stones (‘C'era un Ragazzo Che Come me Amava i Beatles e i Rolling Stones’)" (Franco Migliacci - Mauro Lusini; versão em português: Brancato Júnior)
- "O Exército de um Homem Só II" (Augusto Licks - Humberto Gessinger)
- "Nunca Mais Poder" (Augusto Licks - Humberto Gessinger)
- "Pra Ser Sincero" (Augusto Licks - Humberto Gessinger)
- "Olhos Iguais aos Seus"
Lado B ("Lado Pop")
- "O Papa é Pop"
- "A Violência Travestida Faz Seu Trottoir"
- “Anoiteceu em Porto Alegre
- "Ilusão de Ótica"
- "Perfeita Simetria" (faixa bônus exclusiva do CD)
Engenheiros do Hawaii: Humberto Gessinger (vocal, baixo, piano Rhodes e midi pedalboard), Augusto Licks (guitarra, violão, teclados e midi pedalboard) e Carlos Maltz (bateria).
Referências:
Revista Bizz –
outubro/1990 – Edição 63, Editora Azul
Revista Bizz –
janeiro/1991 – Edição 66, Editora Azul
Infinita Highway - Uma Carona Com Os Engenheiros do Hawaii –
Alexandre Lucchese, 2016, Editora Belas Letras
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