10 discos essenciais: Punk rock brasileiro



Por Sidney Falcão

Após consolidar-se nos Estados Unidos e Inglaterra em meados dos anos 1970, o punkrock espalhou-se pelo mundo. No Brasil, a imprensa musical já sabia da revolução que o punk estava causando no cenário roqueiro britânico. Revistas brasileiras publicavam matérias a respeito daquele movimento radical criado por aquela gente esquisita de cabelos espetados e vestida em trajes rasgados e cheios de alfinetes.

Quando “aterrissou” no Brasil, o punk encontrou um “terreno fértil”: um país governado por uma ditadura militar, censura aos meios de comunicação e às artes, desigualdade social, inflação em ascensão, dívida externa galopante... Havia muita coisa contra o que o punk deveria protestar em terras brasileiras. Por causa disso, muito mais do que nos Estados Unidos ou na Inglaterra, o movimento punk no Brasil ganharia um posicionamento mais politizado e aguerrido.

Em 1977, pouco meses após os Sex Pistols lançarem no Reino Unido o seu Never MindThe Bollocks, aqui no Brasil, a gravadora Philips e a revista Pop, da Editora Abril, lançaram juntas o disco A Revista Pop Apresenta O Punk Rock, uma coletânea com músicas dos Sex Pistols, Ramones, The Jam, Eddie and The Hot Rods, Ultravox, The Runaways e Stink Toys. A coletânea serviu como uma “porta de entrada” para a milhares de jovens brasileiros conhecerem o punk rock, principalmente aqueles que não tinham condições de comprar discos importados de bandas punks estrangeiras.

No final da década de 1970, o punk se espalhava aos poucos nas principais metrópoles brasileiras. Por volta de 1977, surgiram os primeiros punks da cidade de São Paulo, integrando gangues na periferia. A maioria desses punks eram jovens pobres na faixa de 18 a 27 anos, boa parte trabalhava como office-boy, comerciário, balconista, feirante ou operário. Das gangues punks se formaram a partir de 1979 as primeiras bandas punks paulistas como a Condutores de Cadáver, Restos de Nada e AI-5. O primeiro disco do punk rock brasileiro veio em abril de 1982, Grito Suburbano, uma coletânea lançada pelo selo independente Punk Rock Discos com músicas das bandas paulistas Inocentes, Cólera e Olho Seco.

Entre os dias 27 e 28 de novembro de 1982, foi realizado no SESC-Pompeia, em São Paulo, o I Festival Punk de São Paulo, mas que ficou conhecido como O Começo do Fim do Mundo. O evento promoveu exposição de fotos, exibição de vídeos, lançamento do livro O Que É Punk, de Antônio Bivar (1939-2020), e shows de 20 bandas punks dentre elas Cólera, Ratos de Porão, Olho Seco, Lixomania e Inocentes. Cerca de três mil pessoas compareceram ao festival. O festival terminou com o confronto envolvendo punks e a tropa de choque da Polícia Militar, que invadiu o local após a vizinhança denunciar assustada, a presença de punks armados com canivetes. A saldo foi de 25 jovens presos. Apesar dos pesares, a cena punk paulista havia se consolidado.

O ensolarado Rio de Janeiro também teve a sua cena punk, que começou a se formar por volta de 1981, em Campo Grande, subúrbio da capital fluminense, e teve na Coquetel Molotov a banda pioneira do punk rock carioca. No seu rastro vieram a Eutanásia, Desespero e Descarga Suburbana.

Em Brasília, centro do poder brasileiro, o punk rock começou a germinar naquela cidade em 1977, quando os primeiros punks começaram a circular por lá. A primeira banda punk brasiliense foi a Aborto Elétrico, que sacudiu o movimento em Brasília, abrindo espaço para o surgimento de outras bandas como a Metralhaz, e Dado & O Reino Animal. Essas e outras bandas punks dariam origem a bandas que mais tarde ganhariam projeção nacional e marcariam seus nomes na história do rock brasileiro: Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude.

Em Salvador, a banda Camisa de Vênus, formada em 1980, incendiava os palcos alternativos com seu rock desbocado e provocador, pondo a capital baiana no mapa do punk rock brasileiro. Outras bandas como a Gonorreia, 14º Andar e Trem Fantasma também contribuíram para o punk rock soteropolitano.

Curitiba já tinha punk rock desde meados dos anos 1970 através da banda Carne Podre, mas a cena local ganhou força a partir de 1979 com a Contrabanda. De Porto Alegre despontavam as bandas Os Replicantes e Pupilas Delatadas.

No avançar dos anos 1980, as bandas punks brasileiras foram lançando seus discos através de selos independentes, enquanto as bandas de apelo comercial maior, eram as preferidas das grandes gravadoras. Com a popularidade do rock brasileiro em alta, graças ao sucesso das bandas new waves, as grandes gravadoras se arriscaram a apostar nas bandas punks a partir de meados da década de 1980. A Warner contratou os Inocentes, enquanto que a RCA investiu nos gaúchos dos Replicantes. Porém, o retorno financeiro não foi bem o que elas esperavam. No final dos anos 1980, a cena punk brasileira perdeu fôlego.

Em meados dos anos 1990, o rock brasileiro começa a se reerguer através de uma nova geração de bandas apostando na diversidade musical. Dessa nova geração que surgia, destacou-se o quarteto brasiliense Raimundos, trazendo uma inusitada mistura do punk rock dos Ramones com o forró de duplo sentido de Zenilton. Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, despontavam bandas de hardcore melódico como CPM 22, Dead Fish e Garage Fuzz, que difundiram o estilo no Brasil e que tinham como referências bandas americanas como Bad Religion, NOFX e Pennywise. 

Abaixo, confira 10 discos essenciais para entender o punk rock brasileiro.


Grito Suburbano (Punk Rock Discos, 1982), vários. Gravado num estúdio de oito canais em São Paulo frequentado na época apenas por duplas de música sertaneja, Grito Suburbano foi o primeiro disco do punk rock brasileiro, uma compilação com 12 faixas com as bandas paulistas Inocentes, Cólera e Olho Seco. As gravações ocorreram ao vivo no estúdio num espaço de oito horas. Apesar da precariedade da produção, o disco mostra a garra e o empenho das três bandas. Em 2016, Grito Suburbano foi eleito o 4º melhor disco do punk rock brasileiro pela edição brasileira da revista Rolling Stone.


Camisa de Vênus (Som Livre, 1983), Camisa de Vênus. Em seu álbum de estreia, o Camisa de Vênus já mostrava todo o sarcasmo que se tornaria uma das principais marcas da banda baiana. O álbum traz clássicos do quinteto como “Beth Morreu”, “O Adventista”, “Meu Primo Zé” e “Passatempo”. Após o disco ser lançado, a Som Livre bem que tentou “domesticar” o quinteto ao propor a mudança de nome da banda por achar “indecente” e difícil de divulgar nas rádios, TV’s e jornais. Mostrando personalidade, os baianos recusaram a mudança. A gravadora não pensou duas vezes: cancelou o contrato com a banda e recolheu das lojas todas as cópias do álbum. Em 1984, o Camisa foi contratado pela gravadora RGE, que ao lançar o álbum Batalhões de Estranhos, em 1985, relançou na mesma época o álbum Camisa de Vênus.

Crucificados Pelo Sistema (Punk Rock Discos, 1984), Ratos de Porão. Este não é apenas o primeiro álbum da carreira dos Ratos de Porão, mas também o primeiro álbum lançado por uma banda de punk rock da América Latina. O álbum Crucificados Pelo Sistema traz elementos que caracterizariam o som dos Ratos de Porão ao longo da carreira da banda: crueza, peso, velocidade e agressividade. Neste disco, os Ratos já exploravam com maestria o hardcore. O álbum traz temas como violência policial (“Agressão e Repressão”), poluição (“Poluição Atômica”), dívida externa brasileira (“FMI”) e a violência nas comunidades pobres (“Periferia”). Em 2016, Crucificados Pelo Sistema foi eleito o melhor disco do punk rock brasileiro pela edição brasileira da revista Rolling Stone.

MaisPodres do que Nunca (Rocker, 1985), Garotos Podres. Ninguém se iluda com a imagem do bebê lindo e fofo da capa. O conteúdo de Mais Podres do que Nunca é nitroglicerina pura, podre e tosca. Produzido pelo guitarrista e líder da banda Cólera, Redson Pozzi (1962-2011), Mais Podres do que Nunca foi gravado às pressas e com muitas limitações técnicas. No entanto, o disco compensa as deficiências técnicas com punk rocks  de versos ácidos, arranjos simples e crus como “Johnny”, “Maldita Preguiça” e “Vou Fazer Cocô” (uma crítica aos políticos que fazem mil promessas nas eleições). Mas a faixa mais famosa é sem dúvidas a hilária “Papai Noel Velho Batuta”, uma “canção natalina” sobre a diferença abissal entre ricos e pobres no Natal.

Pela Paz Em Todo Mundo (Ataque Frontal, 1986), Cólera. Desde o início de sua carreira, o Cólera se mostrou uma das bandas mais articuladas e politizadas do punk rock brasileiro. Liderada pelo seu fundador, o vocalista e guitarrista Redson Pozzi (1962-2011), a banda paulista desde o início mantinha uma narrativa crítica, mas sem abrir mão da esperança, diferente da maioria das bandas punks que enxergava o futuro da humanidade com muito pessimismo. Esse fio de esperança do grupo se revela no punk rock pacifista “Pela Paz”. O Cólera ainda traça críticas à política belicista em tempos de Guerra Fria em “Guerrear” e ao alto custo de vida no Brasil em “Não Fome”. Pela Paz Em Todo Mundo vendeu na época 85 mil cópias, uma marca surpreendente para um disco de punk rock brasileiro lançado por um selo independente.

Cadê As Armas? (WEA/Baratos Afins, 1986), As Mercenárias. Formada apenas por mulheres, As Mercenárias tiveram um papel fundamental ao se inserir num universo dominado pelos homens que é o rock’n’roll. Além de mostrar a capacidade de tocar, a banda paulista mostrou que as mulheres também têm senso crítico apurado tanto quanto os homens no campo do punk rock. Em Cadê As Armas? as Mercenárias trafegam musicalmente entre o punk rock convencional e o pós-punk. O álbum traz críticas à segurança pública (“Polícia”), ao Catolicismo (“Santa Igreja”), e mostram sensibilidade ao abordar os conflitos nos relacionamentos conjugais (“Amor Inimigo” e “Loucos Sentimentos”).   


Pânico em SP (WEA, 1986), Inocentes. Produzido por Pena Schimidt e Branco Mello (um dos vocalistas dos Titãs), Pânico em SP marca a estreia dos Inocentes numa grande gravadora. O álbum foi bem recebido pela crítica, mas execrado pelos punks mais “ortodoxos” que acusaram a banda de ter se “vendido”. Embora muito bem produzido, a essência punk dos Inocentes foi preservada. Os destaques ficam para as faixas “(Salvem) El Salvador”, “Rotina”, “Não Acordem A Cidade” e a faixa-título.



O Concreto Já Rachou (EMI, 1986), Plebe Rude. O álbum de estreia da Plebe Rude foi lançado como “mini-LP”, um formato de 12 polegadas trazendo sete faixas. Produzido por Herbert Vianna (guitarrista e vocalista dos Paralamas do Sucesso, e responsável por indicar a Plebe Rude para a EMI), O Concreto Já Rachou apresenta canções com letras muito bem construídas e arranjos que aliam simplicidade e sofisticação. O violoncelista Jaques Morelenbaum faz uma participação especial tocando violoncelo na abertura de “Até Quando Esperar”, uma das introduções mais marcantes numa canção do rock brasileiro. Além de “Até Quando Esperar”, as faixas “Proteção” e “Johnny Vai À Guerra (Outra Vez)” viraram sucessos radiofônicos, uma prova de que punk rock também pode ser popular. 


O Futuro É Vortex (RCA, 1986), Os Replicantes. A partir de meados dos anos 1980, o rock gaúcho invadiu as paradas radiofônicas de todo o Brasil, através de bandas como Engenheiros do Hawaii, De Falla, Garotos da Rua, TNT e Nenhum de Nós. A banda Os Replicantes também fez parte dessa interessante geração do rock gaúcho com seu punk rock veloz, furioso e juvenil. Diferente das bandas punks paulistas, oriundas das camadas sociais mais baixas e que tinham um discurso político-social afiado nas canções, Os Replicantes vieram da classe média porto-alegrense. O Futuro É Vortex traz algumas faixas que se tornaram clássicos do punk rock brasileiro como “Surfista Calhorda”, “A Verdadeira Corrida Espacial” e “Boy Subterrâneo”.


Raimundos (Banguela Records, 1994), Raimundos. Quem poderia imaginar que a mistura improvável do punk rock dos Ramones com o forró de duplo sentido de Zenilton poderia dar certo? Até o surgimento do primeiro e homônimo álbum dos Raimundos, muita gente duvidaria. O álbum de estreia dos Raimundos provou que isso era possível. Som pesado e veloz, as letras toscas de uma profundidade pornográfica imensa, fizeram com que o álbum chegasse causando impacto e dando um novo sopro de vida ao rock brasileiro. “Puteiro em João Pessoa”, “Selim”, “Nega Jurema”, “Palhas do Coqueiro” e “Rapante” conquistaram o público, que comprou as 200 mil cópias do álbum.


Referências:

O Que é Punk / Coleção Primeiros Passos – Antônio Bivar, Editora Brasiliense, 1982

Revista Ídolos do Rock, edição especial de Bizz – novembro/1987 – Edição 27-I, Editora Azul

Coleção História do Rock Brasileiro volume 3 – novembro/2004 – Editora Azul

Dias de Luta: o rock e o Brasil dos anos 80 – Ricardo Alexandre, Arquipélago Editorial, 2013

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