Horses (Arista Records, 1975), Patti Smith


Por Sidney Falcão

Lançado em 10 de novembro de 1975, Horses não é apenas um álbum de estreia — é um manifesto. Patti Smith emergia da efervescente cena underground nova-iorquina como uma poeta rebelde, que enxergava o rock não apenas como entretenimento, mas como expressão artística visceral. O disco, com sua fusão de poesia beat, proto-punk e um espírito libertário, não apenas antecipou o punk, mas redefiniu os limites do que a música poderia ser. 

A metade da década de 1970 testemunhava um rock grandioso, dominado por excessos progressivos e o brilho polido da disco music. Paralelamente, nas ruas de Nova York e Londres, crescia um movimento insurgente, que pregava a simplicidade, a urgência e a subversão: o punk. Horses não soava como os futuros clássicos do gênero, mas já continha sua atitude e sua fúria crua. 

Antes de gravar o álbum, Patti Smith já era um nome respeitado no meio artístico, transitando entre poesia, teatro e música. Seus recitais no CBGB, epicentro da contracultura local, a tornaram uma figura central da cena. Ao lado do produtor John Cale, ex-Velvet Underground, ela canalizou suas influências e sua verve lírica em um álbum icônico, que desafiaria convenções e se tornaria um marco do rock alternativo. 

Entre o caos e a precisão: a criação de Horses

Quando Horses começou a ganhar forma, Patti Smith já havia consolidado sua reputação na cena artística nova-iorquina. O Patti Smith Group surgiu dessa efervescência, com músicos como Lenny Kaye e Richard Sohl, que compartilhavam sua visão de um rock despojado, poético e visceral. Esse espírito chamou a atenção da Arista Records, que, em meio ao declínio do rock progressivo e à ascensão de novas sonoridades, enxergou na banda uma aposta ousada. 

Para a produção do álbum, Smith escolheu John Cale, ex-Velvet Underground, cujo experimentalismo e abordagem meticulosa contrastavam com a espontaneidade da cantora. O embate entre a energia crua da banda e o perfeccionismo de Cale resultou em momentos de tensão, mas também em um equilíbrio singular entre o espontâneo e o estruturalmente elaborado. 

As gravações ocorreram em Nova York, no Electric Lady Studios, lendário espaço fundado por Jimi Hendrix (1942-1970), que oferecia um ambiente propício para inovação. O estúdio contribuiu para a atmosfera peculiar do disco, capturando a intensidade das performances ao vivo da banda sem comprometer a clareza sonora. O resultado foi um álbum que, sem abrir mão da urgência punk emergente, explorava nuances e dinâmicas que o diferenciavam do que viria a ser a sonoridade padrão do gênero. 

Patti Smith e sua banda, em 1975. Da esquerda para direita:Ivan Kral,
Lenny Kaye, Patti Smith, Jay Dee Daugherty e
Richard Sohl (deitado).

Versos, gritos e transcendência: a essência do álbum

Muito mais que um álbum de estreia, Horses é uma afirmação artística. Patti Smith, misturando a urgência do punk com a cadência da poesia falada, expandiu os limites do rock ao incorporar elementos de free jazz e influências literárias profundas. O álbum não se limita a explosões de energia; há um ritmo próprio, uma alternância entre agressividade e contemplação que reforça seu impacto. 

A faixa de abertura, “Gloria”, começa com um recitativo hipnótico – “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus” – antes de explodir em uma releitura feroz do clássico de Van Morrison. Aqui, Smith subverte o rock’n’roll tradicional, imprimindo sua identidade em cada verso. Sua versão funde poesia beat com energia punk, enquanto a instrumentação cresce gradativamente, culminando em uma explosão catártica. 

"Redondo Beach" possui uma base rítmica inspirada no reggae que contrasta com a tragédia narrada na letra: um suicídio após uma briga amorosa. O tom quase despreocupado da melodia amplifica a melancolia latente, criando uma experiência que oscila entre o desespero e a indiferença. 

“Birdland” segue um caminho mais experimental, inspirado no livro A Book of Dreams, de Peter Reich. A estrutura livre, os vocais que oscilam entre o sussurro e o grito, e os instrumentais que beiram o caos fazem da faixa um exercício de improvisação quase jazzístico. Os versos se desenrolam como um fluxo de consciência, enquanto a banda acompanha sua entrega vocal errática e visceral. 

Encerrando o lado 1 de Horses, "Free Money", faixa onde Smith canaliza os sonhos de sua mãe sobre escapar da pobreza. A canção se inicia com um piano delicado antes de evoluir para um rock pulsante e explosivo. A dinâmica reflete o anseio por liberdade e ascensão social, com Smith cuspindo versos como quem deseja romper com as amarras da realidade. 

O lado 2 do álbum começa com "Kimberly", uma ode à irmandade e à memória em que a música revisita um episódio de infância (possivelmente de Patti Smith), sob uma perspectiva quase apocalíptica. A canção equilibra ternura e urgência, com guitarras vibrantes e um vocal que transita entre o carinho e o delírio poético. 

Fruto da parceria de Patti Smith e Tom Verlaine (1949-2023), "Break It Up" traz uma sonoridade mais melódica, mas não menos intensa. Inspirada por um sonho com Jim Morrison, a canção se constrói em torno da ideia de libertação, com guitarras etéreas e uma performance vocal carregada de emoção e mistério. 

"Land" é a peça é a peça central de Horses. É uma suíte de três partes que combina narrativas fragmentadas com energia bruta. A primeira parte, "Horses", apresenta Johnny, personagem recorrente na obra de Smith, em uma trama que mistura violência, erotismo e transcêndência. "Land of a Thousand Dances" é a segunda parte, e interpreta a canção de Chris Kenner em um frenesi caótico. "La Mer(de)" finaliza com uma atmosfera de colapso e renascimento, fechando uma das experiências mais intensas do álbum. 

O disco se encerra com "Elegie", um tributo aos ícones do rock perdidos precocemente. Gravada no quinto aniversário da morte de Jimi Hendrix, "Elegie" é uma despedida melancólica, embalada por uma melodia delicada e versos reflexivos sobre o tempo e a perda. 

Patti Smith em sessão de fotos para a capa de Horses.

Recepção, impacto e legado

Quando Horses chegou às lojas em novembro de 1975, não houve consenso imediato sobre sua grandiosidade. A crítica especializada, em grande parte, reconheceu a ousadia da abordagem de Patti Smith, elogiando a fusão entre poesia e rock de vanguarda. No entanto, para um público acostumado a estruturas mais convencionais, o álbum soou desafiador, quase hermético. Ainda assim, a cena alternativa de Nova York abraçou a novidade, e Horses logo se consolidou como um manifesto da contracultura emergente. 

Lançado no mesmo ano de trabalhos como Born to Run, de Bruce Springsteen, e Wish You Were Here, do Pink Floyd, o disco de Patti Smith destoava radicalmente da sofisticação sonora e da grandiloquência de seus contemporâneos. Enquanto Springsteen narrava o sonho americano e o Pink Floyd explorava atmosferas etéreas, Smith oferecia uma estética crua, uma performance visceral que antecipava a energia do punk e a liberdade experimental do new wave. 

O impacto de Horses transcendeu sua época. A cena punk, que tomaria forma nos anos seguintes, bebeu diretamente de sua intensidade, e artistas como Siouxsie Sioux, R.E.M. e PJ Harvey carregaram sua influência nas décadas posteriores. Mais do que um disco, Horses foi um catalisador de mudanças, redefinindo o que era possível dentro do rock. 

Longe de ser apenas um álbum de estreia, Horses se consolidou como um dos pilares do rock alternativo. Sua fusão entre poesia e música abriu caminhos para novas formas de expressão, influenciando gerações de artistas que encontraram em Patti Smith um modelo de autenticidade e transgressão. Mais de quatro décadas após seu lançamento, o disco segue relevante, ressoando tanto na atitude do punk quanto na sofisticação do indie rock. 

Horses redefiniu os limites do rock ao incorporar referências literárias, performances teatrais e uma abordagem visceral, transformando Patti Smith em um ícone da contracultura. Sua obra continua a desafiar convenções e inspirar artistas a explorarem sua própria verdade criativa. Em um cenário musical em constante transformação, Horses permanece um marco atemporal, lembrando que a arte mais poderosa nasce da liberdade e da expressão sem concessões.

 

Faixas

Lado 1

  1. "Gloria: In Excelsis Deo / Gloria (version)" (Patti Smith, Van Morrison)
  2. "Redondo Beach" (Smith, Richard Sohl, Lenny Kaye)
  3. "Birdland" (Smith, Sohl, Kaye, Ivan Kral)
  4. "Free Money" (Smith, Kaye)

Lado 2

  1. "Kimberly" (Smith, Allen Lanier, Kral)
  2. "Break It Up" (Smith, Tom Verlaine)
  3. "Land: Horses / Land of a Thousand Dances / La Mer (De)" (Smith, Chris Kenner)
  4. "Elegie" (Smith, Lanier) 

 

Referências:

Revista Bizz – edição 28, novembro /1987, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

bestclassicbands.com

getintothis.co.uk

rollingstone.com.br

ultimateclassicrock.com

wepluggoodmusic.com 


Ouça na íntegra o álbum Horses

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