“Qualquer Coisa” (Philips, 1975), Caetano Veloso

Por Sidney Falcão

Em 1975, Caetano Veloso vivia um momento de transição em sua carreira, consolidando-se como uma das vozes mais inventivas da música brasileira. Após o experimental Araçá Azul (1973) – um álbum que dividiu opiniões e enfrentou um fracasso comercial retumbante –, Caetano decidiu explorar caminhos distintos em sua produção musical. Esse período de busca culminou em dois lançamentos simultâneos: Joia e Qualquer Coisa. Enquanto o primeiro apresentava uma abordagem minimalista e introspectiva, o segundo se destacava como um contraponto vibrante, repleto de diversidade estilística e abertura a referências externas. 

O Brasil vivia intensamente os anos de chumbo da ditadura militar, e a música popular carregava tanto reflexões políticas quanto experimentações artísticas. Nesse cenário, Qualquer Coisa surge como um álbum de contraste: uma variedade sonora, marcada por regravações de clássicos dos Beatles e diálogos musicais com a tradição brasileira e hispano-americana. A capa, com fotos sobrepostas de Caetano, ecoava o álbum Let It Be, explicitando essa conexão internacional. 

A concepção de Qualquer Coisa nasceu de um momento de reorganização artística de Caetano Veloso. Após o experimentalismo radical de Araçá Azul, o cantor acumulou um vasto repertório de ideias suficiente para preencher um álbum duplo. No entanto, optou-se por dois discos separados e com propostas diferentes. Caetano reconhecia que sua produção era multifacetada demais para caber em um único projeto. 

O que emergiu foi uma separação clara: Joia, com seu “trabalho limpo”, seria o espaço para um Caetano mais contido, lírico e minimalista; já Qualquer Coisa funcionaria pela variedade musical, onde a espontaneidade e o acaso moldariam o disco. Joia seguia uma linha de simplicidade e introspecção, enquanto Qualquer Coisa abraçava o improviso, sem perder o rigor artístico. O resultado foi um disco que flerta com a desconstrução, mas mantém um eixo central: a celebração da liberdade criativa. 

Do ponto de vista instrumental, Qualquer Coisa é um contraste direto com a simplicidade despojada de Joia. Os arranjos incorporam bateria, baixo, teclados e até elementos inusitados, criando uma paleta sonora rica e variada. Essa diversidade reflete a liberdade de Caetano em experimentar, sem se prender a fórmulas ou expectativas comerciais. Qualquer Coisa é como um caleidoscópio sonoro que reflete a multiplicidade de referências de Caetano Veloso, combinando elementos da música pop internacional com a riqueza das tradições brasileiras. O disco transita livremente entre regravações de canções dos Beatles e composições autorais, criando um universo musical que desafia definições rígidas. 

As capas de Let It Be, dos Beatles, e Qualquer Coisa: conexão internacional.


O álbum começa com a faixa-título, que atraiu a atenção de Roberto Carlos, impressionado pela fluidez e leveza da canção. A letra de "Qualquer Coisa", a canção, explora lirismo livre e associações abstratas, refletindo sensações, diálogos desconexos e o impacto emocional de relações, com referências culturais e jogo inventivo de palavras. "Qualquer Coisa" é um exemplo de como Caetano transforma simplicidade em profundidade, sugerindo múltiplas leituras. 

"Da Maior Importância" reflete sobre a fragilidade das conexões humanas, destacando como pequenos gestos ou momentos podem romper vínculos e transformar grandes possibilidades em perda. Composta por Chico Buarque, “Samba e Amor” celebra a serenidade de uma vida simples e íntima, onde a criação musical e o amor transcendem as pressões da rotina urbana. “Madrugada de Amor” traduz o desejo de eternizar um instante de intimidade e plenitude amorosa, resistindo à passagem do tempo e ao inevitável amanhecer que interrompe o momento perfeito: “Eu só queria / Que não amanhecesse o dia / Que não chegasse a madrugada / Eu só queria amor / Amor e mais nada”. 

“A Tua Presença Morena e Da Maior Importância” já havia sido gravada por Maria Bethânia em 1971. Quatro anos depois, Caetano gravou a sua própria canção para o álbum Qualquer Coisa. A letra desta canção é uma ode visceral à força transformadora do amor e do desejo. Exaltando a presença feminina como algo onipresente e avassalador, Caetano transcende a fisicalidade, conectando o humano ao divino, a natureza e à promessa de redenção. 

“Drume Neguinha” combina ternura e devoção em um canto de ninar que transcende o afeto. Com lirismo delicado, Caetano evoca proteção, cultura baiana e promessas de prazer e beleza, enaltecendo a conexão entre amor e ancestralidade afro-brasileira. Em “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben, Caetano Veloso celebra a fé, resiliência e a busca por invulnerabilidade frente às adversidades e inimigos. Na prática, a letra de “Jorge de Capadócia” é uma oração de proteção e força, inspirada no sincretismo entre São Jorge e elementos afro-brasileiros. 

As próximas três faixas são releituras bem pessoais de Caetano para canções dos Beatles. O cantor baiano se apropria dessas canções emblemáticas e as filtra por sua sensibilidade tropicalista. Caetano oferece uma interpretação profundamente pessoal para “Eleanor Rigby”, revelando sua assinatura estética. Acompanhado apenas por sua voz e um violão com harmonias bossanovistas, a base ganha nuances sutis. Um segundo violão se encarrega do solo, enquanto baixo e percussão, em perfeita sincronia, acrescentam pontuações precisas, conferindo à faixa uma sofisticação contida e elegante. 

O fim de um relacionamento marcado por frieza emocional e indiferença crescente é o tema dos versos de “For No One”, e que através da versão de Caetano Veloso, ganhou uma sedutora levada de bossa-nova. Na releitura de "Lady Madonna", Caetano troca o ritmo vibrante dos Beatles por uma interpretação melódica e introspectiva, misturando bossa nova e balada pop com delicadeza. O resultado é uma versão surpreendente, pessoal e envolvente, marcada por leveza e sutileza. 

No álbum Qualquer Coisa, além de fazer releituras de canções dos Beatles, Caetano
revê Chico Buarque, Jorge Ben e peruana Chabuca Granda. 

A canção “La Flor De La Canela”, da cantora e compositora peruana Chabuca Granda (1920-1983), celebra a alma de Lima e sua riqueza cultural. Através da figura poética da mulher graciosa, símbolo da cidade, evoca memórias, tradições e a beleza histórica do bairro de Rímac. Caetano, ao gravá-la, reitera sua conexão com a latinidade e a força dessa identidade. Encerrando álbum, “Nicinha” reflete a gratidão de Caetano Veloso à irmã Nicinha, a homenageada nesta canção. Nicinha simboliza a música perdida, a alegria da vida e o elo entre canto, silêncio e medos. 

Apesar de ter nascido como um projeto complementar a Joia, Qualquer Coisa surpreendeu no mercado, superando seu “irmão gêmeo” em vendas. Enquanto Joia vendeu cerca de 30 mil cópias, Qualquer Coisa alcançou a marca de 60 mil cópias. Essa diferença reflete não apenas a curiosidade do público pela diversidade do repertório, mas também o apelo das regravações dos Beatles, que trouxeram uma camada extra de atratividade para o disco. 

A recepção crítica, no entanto, foi mista. Na época, muitos críticos interpretaram o álbum como disperso ou até mesmo indeciso, em contraste com a coesão minimalista de Joia. As regravações de clássicos dos Beatles, embora inovadoras e bem pessoais, geraram reações divergentes: alguns as viam como uma homenagem criativa, enquanto outros as encaravam como um desvio desnecessário da música brasileira. 

Com o passar do tempo, no entanto, Qualquer Coisa foi reinterpretado como uma obra de transição. Hoje, ele é reconhecido como uma peça fundamental na discografia de Caetano, capturando um artista que se equilibrava entre o experimental e o acessível, entre a tradição e a modernidade. 

Qualquer Coisa é como um quadro impressionista: à primeira vista, pode parecer disperso, mas quando observado em detalhe, revela um todo harmônico de cores e formas. Esse álbum, com sua espontaneidade e diversidade, não apenas reflete a alma inquieta de Caetano Veloso, mas também ecoa como uma declaração de amor à música em todas as suas possibilidades – brasileiras e universais.


Faixas

Lado 1

  1. "Qualquer Coisa" (Caetano Veloso)
  2. "Da Maior Importância" (Caetano Veloso)
  3. "Samba e Amor" (Chico Buarque)
  4. "Madrugada e Amor" (José Messias)
  5. "A tua presença morena" (Caetano Veloso)
  6. "Drume Negrinha" (Drume negrita) (Ernesto Grenet) 

Lado 2

  1. "Jorge de Capadócia" (Jorge Ben)
  2. "Eleanor Rigby" (McCartney, Lennon)
  3. "For No One" (McCartney, Lennon)
  4. "Lady Madonna" (McCartney, Lennon)
  5. "La flor de la canela" (Chabuca Granda)
  6. "Nicinha" (Caetano Veloso) 
"Qualquer Coisa"

"Da Maior Importância"

"Samba e Amor"

"Madrugada e Amor"

"A tua presença morena"

"Drume Negrinha"

"Jorge de Capadócia"

"Eleanor Rigby"

"For No One"

"Lady Madonna"

"La flor de la canela"

"Nicinha"

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