"Tropicália 2" (Polygram, 1993), Caetano Veloso e Gilberto Gil

Por Sidney Falcão

O ano de 1992 marcou o cinquentenário de Caetano Veloso e de Gilberto, e os 25 anos do Tropicalismo, movimento que sacudiu os alicerces da música brasileira e da cultura como um todo e do qual os dois foram as grandes lideranças. Para comemorar esse momento tão especial, Caetano teve a ideia de lançar um disco em parceria com o amigo Gilberto Gil. Mas devido à incompatibilidade das agendas de compromissos dos dois, não foi possível concretizar o projeto naquele ano. No entanto, o adiamento do projeto não foi tão ruim assim, pois, em 1993, o álbum Tropicalia Ou Panis Et Circencis, disco-manifesto tropicalista que iria completar 25 anos de lançamento. 

O projeto do disco comemorativo finalmente foi posto em prática em 1993, e para essa empreitada especial, Caetano e Gil convocaram um time de músicos ilustres. Entre os convidados, estavam os violonistas Celso Fonseca e Raphael Rabello (1962-1995), o saxofonista Léo Gandelman, os baixistas Dadi Carvalho e Arthur Maia (1962-2018), os percussionistas Carlinhos Brown e Ramiro Musotto (1963-2009), o trompetista Marcio Montarroyos (1948-2007) e o trombonista Serginho Trombone (1949-2020).

As gravações do disco ocorreram entre março e maio de 1993 no estúdio Nas Nuvens e no estúdio da Polygram, ambos no Rio de Janeiro, e no estúdio WR, em Salvador. Toda a produção do álbum foi conduzida por Caetano, Gil e o consagrado produtor Liminha. 

As gravações e a produção do disco especial transcorreram com tranquilidade e, ao mesmo tempo, mantidas em sigilo, criando uma grande expectativa para a imprensa e para o público que esperavam algo arrebatador, talvez tão impactante quanto o mitológico Tropicália Ou Panis Et Circencis.

Intitulado Tropicália 2, o álbum representa não apenas uma celebração nostálgica do passado tropicalista, ratificando a vitalidade artística contínua e o poder de influência que o legado do Tropicalismo exerceu sobre as gerações de artistas que vieram após a eclosão do movimento no final dos anos 1960, mas também uma conexão desse legado tropicalista com as novas linguagens artísticas como o rap, axé music e o samba-reggae, e os novos recursos tecnológicos na área musical como os sintetizadores, os samples e o sistema digital de gravação. 

Caetano Veloso e gilberto Gil na época do álbum Tropicália 2.


Lançado em agosto de 1993, talvez a grande expectativa gerada na opinião pública tenha frustrado uma parcela do público que esperavam um disco tão arrebatador quanto Tropicália Ou Panis Et Circencis. E provavelmente essa expectativa excessiva tenha prejudicado, até porque não foi a pretensão de Caetano e Gil gravar um disco literalmente vanguardista e transgressor como Tropicália Ou Panis Et Circencis foi.

 Tropicália 2 tinha a função de ser um disco comemorativo, de celebrar a amizade de dois grandes artistas e de um movimento que foi muito importante para a cultura brasileira. Tropicália Ou Panis Et Circencis foi impactante porque a realidade de sua época, em 1968, exigia: o Brasil vivia sob o tacão de uma ditadura militar, o mundo lá fora estava em plena ebulição com a revolução dos Beatles na música, os movimentos estudantis em Paris e a Guerra do Vietnã. Tropicália 2 chegou ao mundo numa outra realidade, num Brasil que, apesar da crise econômica, já estava redemocratizado: a ditadura havia acabado e o povo reconquistado o direito a votar para presidente. Enquanto Tropicália Ou Panis Et Circencis é um disco coletivo, combativo, revolucionário e transgressor, Tropicália 2 é um disco festivo, reflexivo, gravado por dois amigos que chegam à maturidade e com uma obra consagrada. 

Mas, embora seja um disco da celebração, isso não significa que a contestação e o senso crítico tenham ficado de fora de Tropicália 2. Já na abertura do disco, com "Haiti", Caetano e Gil tratam sobre o racismo na sociedade brasileira e fazem uma conexão com o sofrimento interminável do povo do Haiti. A dupla expressa toda a sua insatisfação e descontentamento através do canto falado do rap em versos desconsertantes: "Quando você for convidado pra subir no adro da fundação / Casa de Jorge Amado / Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados". Caetano e Gil expõem os seus questionamentos em cima de uma base rítmica arrastada, executada por programações eletrônicas, e que, na reta final, cede lugar ao ritmo percussivo do samba-reggae baiano. 

As mazelas no Haiti (foto) são o ponto de partida para a crítica político-social
da canção "Haiti", que mostra que o Brasil também tem os seus "haitis". 

Composta em forma de samba-enredo, A faixa "Cinema Novo" homenageia o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e o movimento cinematográfico que dá nome à canção. Os versos trazem citações a filmes marcantes do cinema brasileiro. Na sequência, "Nossa Gente (Avisa Lá)", gravada originalmente pelo Olodum, em 1992, e aparece em Tropicália 2 numa versão estilizada de samba-reggae. 

Faixa mais criticada pela imprensa na época de lançamento de Tropicália 2, "Rap Popcreto" é uma colagem de fragmentos sampleados de canções contendo apenas a palavra "quem", talvez a faixa que mais remete ao experimentalismo tropicalista presente no disco. Gil e Caetano promovem o encontro entre a psicodelia londrina de Jimi Hendrix (1942-1970) com o samba-reggae soteropolitano na releitura de "Wait Until Tomorrow", canção de Hendrix, e que nesta versão conta com participação especial de Nara Gil, filha de Gilberto Gil. 

O samba "Tradição" é uma canção antiga de Gil gravada por ele em 1979 para o disco Realce, na qual relembra a sua juventude em Salvador no começo dos anos 1960. Caetano nutria um velho desejo de gravá-la, o que acabou ocorrendo em Tropicália 2. 

"As Coisas" é a única faixa com inclinação para rock presente em Tropicália 2. Composta por Gil e Arnaldo Antunes, foi gravada originalmente em 2006 por Arnaldo para o disco Qualquer, lançado naquele ano. Em "Aboio", Caetano e Gil cantam acompanhados de um violão delicado, mas que tem o seu som agradável repentinamente invadido por um som de pandeiro. 

"Dada" é outra faixa que remete diretamente ao experimentalismo tropicalista. Trata-se de um poema concreto que faz um interessante jogo de palavras, criando combinações e possibilidades fonéticas e gráficas. O título da música parece fazer uma alusão ao Dadaísmo (também conhecido como Dada), movimento artístico de vanguarda do início do século XX. 

Caetano e Gil revisitam o samba baiano com a animada "Cada Macaco No Seu Galho (Chô, Chuá)", de Riachão (1921-2020), que foi "turbinada" com uma poderosa percussão samba-reggae. 

Em Tropicália 2, Riachão foi revisitado por Caetano Vesolo e Gilberto Gil através
de "Cada Macado no Seu Galho", canção do sambista baiano. 

"Baião Atemporal" trata sobre o retirante nordestino, que deixa ambiente pobre e seco onde vive para tentar uma vida melhor na cidade grande. A família Santana, citada na letra, é uma homenagem a Tom Zé e sua família, cujo sobrenome é Santana e é natural da cidade de Irará, interior da Bahia. 

O álbum termina em grande estilo com "Desde Que O Samba É Samba". Embora composta por Caetano para Tropicália 2, "Desde Que O Samba É Samba" parece que já nasceu um clássico. Um desavisado imagina que é um samba antigo, composto por Cartola (1908-1980) ou Vinícius de Moraes (1913-1980). A canção carrega uma aura melancólica, porém sem cair na tristeza profunda. Os versos celebram o samba e a sua relevância para cultura brasileira. 

Tropicália 2 teve uma recepção razoável por parte do jornalismo musical da época. Em sua resenha sobre o álbum na edição 98 da revista Bizz, de setembro de 1993, a jornalista Bia Abramo classificou Tropicália 2 como um disco irregular, apesar dos elogios às faixas "Nossa Gente", "Cinema Novo", "Baião Temporal" e "Tradição". Para a revista Veja, Tropicália 2 foi um dos melhores lançamentos do ano, mas apontou como ponto negativo do álbum a faixa "Rap Popcreto", questionando quem teria paciência de "ouvir mais de uma vez uma lista telefônica de trinados". Caetano reagiu aos críticos de "Rap Popcreto", chamando-os de "reacionários, bobos e medíocres". 

Apesar de se tratar de um trabalho comemorativo, não houve uma grande turnê para promover Tropicália 2, apenas apresentações no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. 

Tropicália 2 é uma celebração da música, da amizade e do legado do movimento tropicalista liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Embora não busque replicar a revolução de seu antecessor, o álbum representa a evolução musical brasileira ao longo das décadas. É um tributo genuíno que ressalta a capacidade contínua dos artistas em surpreender e inspirar, mostrando que a música pode se adaptar e crescer com o tempo. Mais do que tudo, o disco nos lembra que a celebração da cultura e da amizade pode ser uma forma poderosa de resistência e que a verdadeira revolução está em manter a chama da criatividade viva, mesmo com o passar dos anos.

Faixas

  1. "Haiti" (Caetano Veloso - Gilberto Gil)
  2. "Cinema Novo" (Caetano Veloso - Gilberto Gil)
  3. "Nossa Gente" (Roque Carvalho)
  4. "Rap Popcreto" (Caetano Veloso)
  5. "Wait Until Tomorrow" (Jimi Hendrix)
  6. "Tradição" (Gilberto Gil)
  7. "As Coisas" (Arnaldo Antunes - Gilberto Gil)
  8. "Aboio" (Caetano Veloso)
  9. "Dada" (Caetano Veloso - Gilberto Gil)
  10. "Cada Macaco No Seu Galho" (Chô Chuá) (Riachão)
  11. "Baião Atemporal" (Gilberto Gil)
  12. "Desde Que O Samba É Samba" (Caetano Veloso)


Referências:

Jornal O Globo - edição de 21 de setembro de 1993.

Revista Veja – nº 33 - edição 1301, 18 de agosto de 1993 -  Editora Abril, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 98, setembro/1993, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

gilbertogil.com.br





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