“Talking Book” (Motown Records, 1972), Stevie Wonder


Por Sidney Falcão

Até o início dos anos 1970, as músicas gravadas pelos artistas da Motown Records seguiam um padrão rígido imposto pelo “todo poderoso” fundador da companhia, Berry Gordy: as canções teriam que durar no máximo três minutos, e os temas abordados deveriam ser sobre amor e assuntos banais do cotidiano. Teriam que ser canções agradáveis, inofensivas, bem ao gosto do público mais comportado. E foi baseado nesse padrão musical comportado e muito bem produzido, que a Motown fez história na música pop. Ganhou fama e focou especificamente o mercado da música pop negra norte-americana durante toda a década de 1960. Aquele padrão para Gordy representava sucesso e, claro, lucros, muitos lucros.

Mas naquele começo de anos 1970, os tempos eram outros. Cantores negros como Isaac Hayes (1942-2008) e Sly Stone, por exemplo, estavam praticando um tipo de R&B mais maduro, mais engajado e contestador, rompendo com os formatos impostos pelas gravadoras. O movimento black power, as campanhas anti-guerra do Vietnã, a luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, eram temas que começavam a ser abordados nas canções de artistas de R&B, funk e soul. O engajamento político-social era algo inevitável para os artistas negros.

Na Motown, o primeiro artista a romper com o tal padrão da companhia e abraçar os temas mais questionadores foi Marvin Gaye (1939-1984), através do consagrado álbum What’sGoing On, de 1971, um disco que trazia canções sobre o racismo, política e ecologia, temas até então impensáveis nos discos lançados pela companhia. O sucesso de público e crítica de What’s Going On começou a mexer com os rígidos cânones temáticos da Motown defendidos a mão de ferro por Berry Gordy.

Ruptura de padrão: o álbum What's Going On, de Marvin Gaye, rompeu com os
rígidos cânones temáticos da gravadora Motown.

Um outro artista dentro da Motown que decidiu seguir a trilha aberta por Gaye foi o jovem Stevie Wonder. Cego desde muito criança, Wonder começou a carreira muito cedo, aos 11 anos, em 1961, quando o seu talento fenomenal chamou a atenção de Ronnie White (1939-1995), membro do grupo vocal The Miracles, que o levou para a gravadora Motown. Não demorou muito e o garoto já estava assinando contrato com a Motown. Ao longo de toda a década de 1960, o menino Stevie Wonder – que na época era conhecido como Little Stevie - lançou vários álbuns e singles que fizeram grande sucesso comercial.

No final daquela década, já saindo da adolescência e chegando à vida adulta, Wonder mostrava que não era apenas um artista talentosíssimo, mas também um artista que tinha consciência de como queria conduzir a sua produção musical. Isso de alguma forma pode ter refletido no travamento no processo de renovação de contrato do cantor com a Motown, em 1971, quando Wonder completou 21 anos. Stevie Wonder gravou de forma independente, o material de um novo disco, enquanto não se resolvia o processo de renovação do contrato. No começo de 1972, o contrato com a Motown foi renovado, e como era um artista que rendia muitos lucros para a companhia e tinha material pronto para um novo disco, Wonder pôde fazer exigências que a companhia não teve como não atender. O contrato não só foi mais lucrativo financeiramente para o cantor do ponto de vista financeiro, como também dava a Stevie Wonder um maior controle na sua produção musical, tanto na abordagem das letras das canções como nos direitos autorais delas.

Em março de 1972, saiu o álbum Music Of My Life, o primeiro após o novo contrato de Wonder com a Motown. Music Of My Life, marca o início de uma nova fase na carreira de Wonder, que alguns chamam de “período clássico” do cantor, quando ele lançou uma sequência de cinco álbuns fantásticos, entre 1972 e 1976. Em Music Of My Life, Wonder começava a apresentar uma maior maturidade nos arranjos, e sobretudo, nas letras, quando o cantor acena para temas sociais, políticos e místicos, e que norteariam os álbuns seguintes.

Em 28 de outubro de 1972, Wonder lança o magnífico Talking Book, disco em que o artista expôs toda a sua liberdade criativa que ele tanto almejava. Apesar de muito jovem, tinha apenas 22 anos de idade quando gravou Talking Book, Wonder mostra toda uma maturidade artística. Para a produção deste álbum, Stevie Wonder prosseguiu com a parceria com Robert Margouleff e Malcolm Cecil (1937-2021), músicos e produtores pioneiros da música eletrônica. Os dois haviam produzido junto com Wonder o álbum anterior Music Of My Life.

Em Talking Book, foi utilizado o sintetizador TONTO (The Original New Timbral Orchestra), um gigantesco sintetizador analógico polifônico multitimbral, projetado e construído por Malcolm Cecil a partir de 1968. Era formado por vários sintetizadores modulados que juntos, formavam um semicírculo de armários de madeira curvos, medindo 6,1 m de diâmetro e 1,8 m de altura, e cerca de uma tonelada de peso. Ao lado de Robert Margouleff, Cecil formou a Tonto's Expanding Head Band, uma dupla especializada em música eletrônica. A dupla lançou apenas dois álbuns, Zero Time (1971) e It's About Time (1974).

Malcolm Cecil (á direita) e o produtor americano Robert Margouleff dupla criado do
sintetizador TONTO (The Original New Timbral Orchestra), que aparece ao fundo.

E foi o trabalho de Margouleff e Cecil com sintetizadores que atraiu a atenção de Wonder, e com os quais passou a trabalhar a partir de Music Of My Life. A dupla ajudou Wonder a incorporar os sintetizadores no seu som, o que deu um novo rumo na sonoridade do artista. Outro instrumento que se tornou frequente nos discos de Wonder desde então foi o clavinete Hohner, um instrumento de teclados capaz de simular sons de guitarra. Graças a Stevie Wonder, o instrumento alcançou uma popularidade tão grande que acabou sendo associado à imagem do cantor, muito por conta do sucesso da canção “Superstition”, a faixa mais conhecida de Talking Book.

Se a vida profissional de Stevie Wonder estava indo muito bem, da vida pessoal do cantor não se podia dizer o mesmo. O casamento de Wonder com a compositora e ex-secretária da gravadora Motown, Syreeta Wright, estava chegando ao fim após dois anos de matrimônio. Ainda assim, os dois chegaram a compor juntos duas canções para Talking Book, que refletia de uma certa maneira, a convivência que os dois vivenciavam quando essas canções foram compostas.

Décimo quinto álbum de estúdio de Stevie Wonder, Talking Book traz alguns músicos convidados como os guitarristas Jeff Beck e Ray Parker Jr., e o saxofonista David Sanborn. Talking Book é o segundo de cinco álbuns do chamado “período clássico” de Wonder, iniciado com Music Of My Mind e se encerra com o sensacional álbum duplo Songs In The KeyOf Life (1976). Tematicamente, Talking Book aborda temas como amor, política e racismo.

Talking Book começa com “You Are The Sunshine Of My Life”, cujos primeiros versos não são cantados por Wonder, mas pelos cantores dos vocais de apoio, Jim Gilstrap, que canta os dois primeiros versos, seguido depois por Lani Groves. Só a partir do sexto verso é que Wonder começa a cantar. Composta por Stevie Wonder, “You Are The Sunshine Of My Life” é uma canção que teria surgido a partir do romance de Wonder com a cantora Gloria Barley, que participou desta canção nos vocais de apoio. 

“Maybe Your Baby” é uma das canções do álbum que tratam da relação desgastada de Stevie Wonder e Syreeta Wright. Os versos se referem ao ciúme e a solidão que Wonder passava quando compôs Maybe Your Baby”. A canção tem uma inclinação funky, porém num andamento mais “arrastado”. Wonder toca todos os instrumentos, exceto a guitarra elétrica, que fica por conta de Ray Parker Jr.

Stevie Wonder e Syreeta Wright, recém casados em 1970. Dois anos depois,
a crise do casamento dos dois seria tema de canções presentes em Talking Book.

A faixa seguinte, “You and I (We Can Conquer The World)”, é uma balada romântica em que Wonder parece expressar a sua satisfação em vivenciar um novo amor, em sentir-se grato por ter conhecido a pessoa amada e da qual sente uma reciprocidade nesse sentimento. O piano e o sintetizador criam toda uma beleza melódica que valoriza os versos tão confessionais do cantor. “Tuesday Heartbreak” trata sobre o fim de uma relação amorosa, sobre um homem apaixonado que perdeu a mulher que ama para outra pessoa. Ainda assim, ele luta inutilmente para ficar ao lado dessa mulher, seja de dia ou à noite.

O lado 1 do álbum termina com “You've Got It Bad Girl”, parceria de Stevie Wonder e Yvonne Wright, uma canção relaxante com arranjos muito bem elaborados. Um detalhe curioso nesta faixa é que entre os vocais de apoio está Deniece Williams, cantora que ficaria famosa nos anos 1980 através das músicas “Let’s Hear It For The Boy” e “It’s Gonna Take A Miracle”.

Abrindo lado 2, um dos maiores sucessos da carreira de Stevie Wonder, “Superstition”. Essa música possui um riff hipnótico executado pelo clavinte Hohner modelo C, tocado por Wonder. O cantor ainda tocou nesta faixa bateria e baixo Moog. Juntamente com o saxofonista Trevor Lawrence e o trompetista Steve Madaio, Wonder cria uma base instrumental irresistivelmente dançante. A princípio, “Superstition”, embora composta por Stevie Wonder, teria sido destinada para o guitarrista Jeff Beck gravar no primeito álbum de um projeto que ele estava desenvolvendo, o trio Beck, Bogert & Appice, que ele formou com o baixista Tim Bogert e o baterista Carmine Appice. Porém, por algum motivo, as gravações do álbum trio foram adiadas, e o diretor da Motown, Berry Gordy, sugeriu que Wonder gravasse “Superstition” e lançasse como single antes do álbum Talking Book. O single fez um enorme sucesso. Em 1973, a versão de Beck e seus companheiros de trio para “Superstition” foi lançado no primeiro álbum do grupo, intitulado Beck, Bogert & Appice.

Carmine Appice , Jeff Beck e Tim Bogert: o power trio Beck, Bogert & Appice,
que regravou "Superstition", de Stevie Wonder,em 1974.

“Big Brother” é uma canção com teor político nos seus versos. Foi inspirada no “grande irmão” do livro 1984, de George Orwell (1903-1950). A letra da música traça uma crítica ao governo dos Estados Unidos e o seu descaso com os negros daquele país. Destaque para o sensacional solo de gaita tocado por Stevie Wonder. A próxima faixa, “Blame It On The Sun”, composta por Stevie Wonder e Syreeta Wright, reflete muito bem a realidade que o casal vivenciava, um casamento que chegava ao fim. Trata-se de uma balada romântica sobre encarar a vida depois que o amor acaba: “Para onde o meu amor foi embora? / Como posso seguir em frente? / Parece querida que o amor se foi”.

“Lookin' For Another Pure Love” vai um pouco além da canção anterior no que se refere ao fim de um grande amor. Mais uma canção fruto da parceria de Wonder e Syreeta, “Lookin' For Another Pure Love” traz como personagem central, alguém que teve que se refazer após a mulher que amava terminar a relação por telefone. O eu lírico não se deixa abater, e parte em busca de um novo amor, e desta vez um amor puro e verdadeiro.

O álbum chega ao fim com a ótima “I Believe (When I Fall in Love It Will Be Forever)”, uma canção sobre acreditar no amor, mesmo após uma desilusão amorosa. É também sobre manter-se esperançoso, otimista em viver uma nova relação com toda uma entrega. “I Believe (When I Fall in Love It Will Be Forever)” é uma canção muito linda, e que possui um refrão bastante “grudento”. Aqui, Stevie Wonder fez todas as vocalizações e tocou todos os instrumentos.

Talking Book chegou ao 3° lugar na parada de álbuns pop da Billboard e 1° lugar na parada de álbuns de R&B, também da Billboard, nos Estados Unidos. Sucesso de crítica e de público, Talking Book rendeu a Stevie Wonder, em 1974, três prêmios Grammy: “Melhor Performance Vocal Pop Masculina” (por “You Are The Sunshine Of My Life”), “Melhor Performance Vocal R&B Masculina e “Melhor Canção R&B”, ambas por “Superstition”.

O sucesso alcançado por Talking Book só ratificou o potencial criativo e artístico de Stevie Wonder, fazendo o artista se tornar um artista ainda mais valorizado dentro da Motown. Talking Book foi sucedido por Innervision (1973), com o qual Wonder ganharia mais três prêmios Grammy. 

Faixas

Todas as músicas compostas por Stevie Wonder, exceto as indicadas.

Lado 1

1. “You Are The Sunshine Of My Life”

2. “Maybe Your Baby”

3. “You And I (Together We Can Conquer The World)”

4. “Tuesday Hertbreak”

5. “You’ve Got It Bad Girl” (Stevie Wonder – Yvonne Wright) 

Lado 2

1. “Superstition”

2. “Big Brother”

3. “Blame It On The Sun” (Wonder, Syreeta Wright)

4. “Lookin’ For Another Pure Love” (Wonder, Syreeta Wright)

5. “I Believe (When I Fall In Love It Will Be Forever)” (Stevie Wonder – Yvonne Wright)

 

Referências:

Revista Bizz – setembro/1994 – Edição 110, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

www.bbc.co.uk

pitchfork.com

wikipedia.org

“You Are The Sunshine Of My Life”

“Maybe Your Baby”

“You And I (Together We Can Conquer The World)”

“Tuesday Hertbreak”

“You’ve Got It Bad Girl”

“Superstition”

“Big Brother”

“Blame It On The Sun”

“Lookin’ For Another Pure Love”

“I Believe (When I Fall In Love It Will Be Forever)” 

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