“Psicoacústica” (Warner, 1988), Ira!
O ano de
1987 foi bastante proveitoso para a banda Ira!. O quarteto paulista desfrutava
de grande prestígio graças ao sucesso do seu segundo álbum, Vivendo e Não
Aprendendo, lançado em agosto de 1986. Quase todas as faixas estouraram
nas paradas radiofônicas. Uma delas, “Flores em Você”, foi tema de abertura da
novela O Outro, da TV Globo em 1987. Vivendo e Não Aprendendo vendeu
mais de 250 mil cópias, e garantiu ao Ira! o convite para tocar no Festival
Hollywood Rock, em janeiro de 1988. No entanto, a banda chegou a ter
desentendimento com os organizadores daquele festival. Segundo o Ira! a
organização do festival dava um melhor tratamento aos artistas estrangeiro do
que aos artistas brasileiros. Infelizmente, o Ira! não teve o apoio dos outros
colegas brasileiros nesse enfrentamento, e acabou ficando sozinho. Coincidência
ou não, a banda ficou longos anos ser convidada para participar dos grandes
festivais de rock no Brasil que envolvesse artistas nacionais e internacionais.
Embora o
ditado popular diga que “em time que está ganhando não se mexe”, o Ira! decidiu
desafiar o velho ditado. Seria muito cômodo ao Ira! fazer uma espécie de
“Vivendo e Não Aprendendo 2”, e assim emplacar mais canções nas paradas de
sucessos e vender mais discos. Mas o quarteto decidiu subverter tudo. A banda
tinha em mente não seguir a “fórmula” que consagrou Vivendo e Não
Aprendendo. Queria fazer do próximo trabalho algo mais ousado,
independente se iria ou não ser um sucesso de vendas.
Como gozava
de prestígio graças ao sucesso de Vivendo e Não Aprendendo, o
Ira! conseguiu junto à gravador Warner ter a plena liberdade para trabalhar no
seu próximo álbum de estúdio. O próprio grupo produziu o novo álbum, dispensando
produtores consagrados. Contou apenas com o apoio de Paulo Junqueiro, um
engenheiro de som português que anos mais tarde, se tornaria um bem sucedido
executivo de gravadora, chegando a assumir a presidência da Sony Music Brasil
em 2015.
As gravações
do novo álbum ocorreram entre novembro de 1987 e janeiro de 1988, no estúdio
Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, o mesmo onde foi gravado Vivendo e Não
Aprendendo. E no estúdio Nas Nuvens, as sessões de gravação do novo
álbum foram envoltas a muita fumaça de maconha. A maconha que a banda havia
fumado era a mesma que foi encontrada numa carga de 20 mil latas que chegaram
às praias de São Paulo e Rio de Janeiro trazidas pela maré, depois que o navio
japonês que transportava aquela carga, Solana Star, naufragou na costa
brasileira. Cada lata possui pouco mais de 1kg da erva. A carga de “maconha
enlatada” fez alegria dos traficantes de drogas. No Rio de Janeiro, a ocasião
foi chamada de “verão da lata”.
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Capa de Vivendo e Não Aprendendo, o álbum que alçou o Ira! ao estrelato do rock brasileiro. |
E de fato, Psicoacústica
chocou o público que havia se acostumado com o apelo acessível das canções de Vivendo
e Não Aprendendo. Psicoacústica mostrava um Ira! num novo
direcionamento musical, indo além da sonoridade dos dois discos anteriores. Foi
um trabalho ousado no ponto de vista musical e estético.
No campo
musical, o disco ampliou os horizontes do Ira! ao trazer num mesmo trabalho,
referências da psicodelia dos Beatles, de reggae, MPB, rap e até embolada
nordestina. E ainda trazia como novidade, o uso do sampler: Psicoacústica
foi um dos primeiros discos da música brasileira a usar esse equipamento. Em
faixas como “Rubro Zorro”, “Pegue Essa Arma”, “Advogado do Diabo” e “Farto de
Rock’n’Roll”, a banda usou sampler para fazer as colagens sonoras.
Do ponto de
vista estético, as primeiras edições de Psicoacústica traziam
como brinde, um óculos especial para que o fã pudesse ver a arte da capa do
álbum em 3D.
Uma outra
influência em Psicoacústica foi o filme O Bandido da Luz
Vermelha, de Rogério Sganzerla (1946-2004), de 1968. Os membros da banda
haviam acabado de assistir e ficaram bastante impressionados, sobretudo o
vocalista Nasi.
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Membros do Ira! usando óculos 3D que vinham de brinde nas primeiras edições de Psicoacústica. |
Psicoacústica começa com “Rubro Zorro”, cuja letra
foi baseada na vida de João Acácio Pereira da Costa (1942-1998), o famoso
Bandido da Luz Vermelha, criminoso que aterrorizou a cidade de São Paulo nos
anos 1960, sempre munido de uma lanterna de luz vermelha. Acácio teria se
inspirado em Carry Chessman, conhecido como The Red Light Bandit (“O
Bandido da Luz Vermelha”), criminoso americano que agia da mesma forma em Los
Angeles, nos Estados Unidos, e que foi condenado à morte em 1948 por crimes de
assalto, sequestro e estupro. Porém, a pena de Chessman, cercada de
controvérsias, só foi executada em 1960, numa câmara de gás. Isso explica os
seguintes versos: “Luz vermelha foi perdido no cais / Do terror / Um
inocente na cela de gás? Sem depor”. Em “Rubro Zorro”, foi inserido um
áudio do filme O Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, que diz: “Trata-se
de um faroeste do terceiro mundo”.
“Manhãs de
Domingo” abre com o que parece ser um coral de vozes, mas que logo é sucedido
pela entrada agressiva do Ira!. É talvez a única música de Psicoacústica
que remete ao Ira! dos dois primeiros álbuns. Na reta final da música, o
guitarrista e vocal de apoio, Edgard Scandurra, canta versos “nas ruas é que
me sinto bem”, que fazem parte de “Nas Ruas”, música do álbum Vivendo
e Não Aprendendo.
Em “Poder, Sorriso, Fama”, o Ira! discute o preço que a fama pode cobrar. Scandurra toca sua guitarra de maneira fantástica, extraindo dela muita distorção e efeitos psicodélicos através do pedal. Enquanto isso, Ricardo Gaspa faz uma marcação segura e hipnótica com o seu baixo, e André Jung arrasa na bateria.
O lado A de Psicoacústica
termina com a ótima “Receita Para Se Fazer Um Herói”, uma bela canção que
carrega ecos da psicodelia dos Beatles (fase Sgt. Pepper’s Lonely HeartsClub Band) somados a uma sutil cadência do reggae empregada pela
bateria de André Jung. A guitarra de Scandurra cheia de efeitos e os teclados
de Roberto Firmino, criam toda uma atmosfera de psicodelia na canção, enquanto que
os trompetes de Don Harris rementem aos Beatles de “Penny Lane” e “Magical
Mystery Tour”. A letra foi musicada por Edgard Scandurra a partir de um poema supostamente de
um amigo seu dos tempos em que serviu ao Exército, no início dos anos 1980. Mal
sabia Scandurra que após o lançamento do disco, essa música iria envolver o
Ira! em problemas.
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Paulo Villaça no papel do Jorge, o protagonista no filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, de 1968. |
“Pegue Essa Arma” é outra faixa de Psicoacústica que contém colagem do áudio do filme O Bandido do Luz Vermelha em que se ouve: “E o terceiro mundo vai explodir! E quem tiver de sapato não sobra”.
A
provocativa “Farto de Rock’n’Roll’ é a única música do disco que não é cantada
por Nasi. Escrita e cantada por Edgard Scandurra, a canção foi uma provocação
do guitarrista a Nasi e ao baterista André Jung, como uma resposta aos dois por
estarem bastante envolvidos com o rap e supostamente se afastando do rock. No
entanto, o público não percebeu essa mensagem na música e nem enxergava essa
acusação a Nasi e Jung. O tempo mostrou que a visão de Scandurra estava
completamente equivocada, e o próprio músico confessou o seu equívoco. Embora
Nasi não cante na música – ele havia se recusado a cantar – ele fez os scratches
como um DJ.
A faixa
seguinte, “Advogado do Diabo”, abre com um pandeiro que faz o ouvinte imaginar
que vai começar um samba. Mas o que se ouve é o instrumento acompanhando o
canto de Nasi num ritmo de rap, mas que ao mesmo tempo, simula uma embolada
nordestina, muito por conta do pandeiro ser usado pelos cantores de embolada na
suas apresentações nas feiras livres e eventos ao ar livre no nordeste
brasileiro. A música traz um áudio gravado numa emissora de rádio AM do
discurso do presidente da LBV (Legião da Boa Vontade), José de Paiva Netto: “Não
adianta, tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver branco, tem que
haver negro; tem que haver patrão, tem que haver empregado; porque o povo quer
assim”.
O álbum
termina com “Mesmo Distante”, uma balada folk com traços psicodélicos. Nesta
canção, além de uma guitarra cheia de efeitos, Edgard Scandurra toca outros instrumentos
como violão, craviola e caixa de bateria.
Apesar da
boa recepção da crítica, comercialmente, Psicoacústica foi um
tremendo fracasso. O disco havia vendido pouco mais de 50 mil cópias, muito
distante das mais de 250 mil cópias de Vendendo e Não Aprendendo.
Mas o
problema de vendas não foi o único. A banda teve dores de cabeça maiores. Até o
lançamento do disco, o Ira! não conseguiu encontrar o tal amigo de Scandurra do
tempo em que serviu ao Exército, conhecido apenas como Esteves, para negociar a
autorização da liberação da letra de “Receita Para Se Fazer Um Herói”. O grupo
então pôs no encarte a frase “Esteves, cadê você?” na lista de
agradecimentos. E foi a partir desse detalhe que Esteves apareceu e foi cobrar o
dinheiro dos direitos autorais ao Ira!, chegando até a ameaçar processar a
banda. Contudo, algo iria mudar toda essa história. Na sessão de cartas da
revista Bizz, uma leitora alertou sobre semelhanças entre a letra da
canção “Receita Para Se Fazer Um Herói” e o poema de mesmo nome escrita pelo
poeta português Reinaldo Ferreira (1922-1959), e presente num livro escolar
dela. A notícia ganhou repercussão e, para evitar um processo judicial, o Ira!
procurou a viúva do poeta português e conseguiu entrar num acordo. O fato
desmascarou Esteves e a sua tentativa de arrancar dinheiro da banda paulista.
Mas esta não
foi a única confusão. O cineasta Rogério Sganzerla, que dirigiu o Bandido da
Luz Vermelha, havia cedido o áudio do filme para o Ira! em troca de ter o
direito de dirigir um videoclipe da banda. A gravadora Warner havia também
aceitado o acordo. Porém, Sganzerla passou a cobrar um valor caro para dirigir
o videoclipe, fugindo do acordo que havia fechado com a banda e a gravadora. A
Warner desistiu do videoclipe sob sua direção. Sganzerla chegou a mover uma
ação judicial contra o Ira! e a Warner para impedir o lançamento do disco.
As confusões
e o fracasso comercial não conseguiram destruir a reputação de Psicoacústica.
O terceiro álbum de estúdio foi crescendo em relevância ao longo do tempo, e
até mesmo exerceu influência em tendências do rock brasileiro a partir dos anos
1990, como o manguebeat e as fusões de rap e rock. O próprio Chico Science
& Nação Zumbi costumava no início da carreira tocar “Advogado do Diabo”,
música que de alguma forma, teria influenciado a musicalidade da banda
pernambucana. De disco “estranho”, Psicoacústica passou disco
cult e a figurar nas listas dos discos mais importantes da música
brasileira.
Faixas
Todas as
músicas compostas por Edgard Scandurra, exceto onde indicado.
Lado A
- "Rubro Zorro" (Edgard Scandurra, André Jung, Ricardo Gaspa, Nasi)
- "Manhãs de Domingo"
- "Poder, Sorriso, Fama"
- "Receita Para Se Fazer um Herói" (Scandurra, Nasi, Jung, Gaspa, Reinaldo Edgar Ferreira)
Lado B
- "Pegue Essa Arma"
- "Farto do Rock 'n' Roll" (Scandurra, Gaspa)
- "Advogado do Diabo" (Nasi, Jung)
- "Mesmo Distante"
Faixa bônus
(Versão K7)
"Não Pague Pra Ver" (ao vivo no Hollywood Rock, 1988)
Ira!: Nasi (voz e scratches),
Edgard Scandurra (guitarra, banjo, craviola, guitarras fantasmagóricas, caixa de
bateria (em "Mesmo Distante"), voz), Ricardo Gaspa (baixo e voz) e
André Jung (bateria, percussão e voz)
Participações
especiais
Don Harris: trompetes (em "Receita Para Se Fazer um
Herói")
Roberto Firmino: teclados (em "Receita Para Se Fazer um
Herói")
William Forghieri: teclados
Referências:
Revista Bizz – junho/1988 – edição 35, Editora
Azul
Dias de Luta – o rock e
o Brasil dos anos 80 – Ricardo Alexandre Luiz, 2013, Arquipélago Editorial, Brasil
4-"Receita Para Se Fazer Um Herói"
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