Dia Dorim Noite Neon (Warner, 1985), Gilberto Gil

Por Sidney Falcão 

O ano de 1985 foi especialmente marcante para Gilberto Gil, tanto no campo pessoal quanto no profissional. No âmbito pessoal, em janeiro, nasceu no Rio de Janeiro Bem Giordano Gil Moreira, seu primeiro filho com Flora Gil. Criado em uma família musical, Bem Gil também seguiu a carreira artística como compositor, cantor, arranjador, produtor musical e multi-instrumentista, chegando anos mais tarde a integrar a banda de apoio do pai. 

No aspecto profissional, 1985 representou um marco para Gilberto Gil, que celebrava duas décadas de uma trajetória musical pautada pela inovação e pela constante reinvenção. O lançamento do álbum Dia Dorim Noite Neon simbolizava não apenas essa caminhada, mas também um diálogo aberto com a nova cena musical brasileira, especialmente com nova geração do rock brasileiro, que ganhava força na época. 

Coincidentemente, no mesmo mês do nascimento de Bem Gil, Gilberto Gil se apresentou na primeira edição do Rock in Rio, no Rio de Janeiro, consolidando sua sintonia com essa nova geração musical. O título do álbum faz referência a Grande Sertão: Veredas, romance do escritor Guimarães Rosa (1908-1967), evocando o embate entre tradição e modernidade, sertão e cidade. 

Gravado entre abril e agosto de 1985 nos estúdios Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, Dia Dorim Noite Neon reflete um período de intensa experimentação para Gilberto Gil, mas ao mesmo tempo mantém uma inclinação pop radiofônica e acessível, iniciada com o álbum Realce (1979). Ao lado do produtor Liminha, parceiro recorrente desde Luar - A Gente Precisa Ver o Luar (1981), Gil buscou um som que equilibrasse suas raízes afro-baianas com a efervescência do rock nacional da época. A participação de Herbert Vianna, vocalista e guitarrista dos Paralamas do Sucesso, reforça essa conexão, simbolizando o encontro entre gerações da música brasileira. 

Outro nome presente nas gravações foi Pedro Gil (1970-1990), filho de Gilberto Gil, nascido durante o exílio do pai em Londres. Apesar de ter apenas 15 anos, Pedro demonstrou grande habilidade na bateria, participando de faixas como “Roque Santeiro – O Rock” e “Nos Barracos da Cidade (Barracos)”. 

Gilberto Gil com visual andrógino se apresentando na primeira edição
do festival Rock in Rio, em 1985.

O repertório do álbum trafega por uma fusão de estilos: o reggae, sempre presente na obra de Gil, dialoga com a cadência percussiva do ijexá e a energia das guitarras do rock. Conceitualmente, o disco expressa um Brasil em transição — recém-saído de duas décadas de ditadura militar — e oscila entre o tradicional e o moderno, entre a luz do sertão e o brilho artificial das metrópoles. 

Em Dia Dorim Noite Neon, Gilberto Gil reafirma seu espírito experimental, unindo tradição e modernidade em uma síntese sonora singular. O álbum transita por diversos gêneros — MPB, rock, reggae, funk, ijexá e pop — com a fluidez característica de Gil, que transforma cada faixa em um verdadeiro laboratório musical. Essa diversidade também se reflete nas letras, onde o artista alterna entre a crônica social e a reflexão filosófica. 

Em “Nos Barracos da Cidade”, por exemplo, ele expõe as desigualdades urbanas, enquanto “Logos Versus Logo” discute os paradoxos da linguagem e da ideologia. O próprio título do disco já antecipa sua dualidade temática: Dia Dorim remete ao sertão de Guimarães Rosa (1908-1967) - numa clara alusão ao livro Grande Sertão: Veredas - à cultura popular e às raízes brasileiras, enquanto Noite Neon evoca o ambiente urbano e a efervescência do rock. 

Esse contraste entre o campo e a cidade permeia todo o álbum, criando um mosaico de um Brasil em transformação, onde ancestralidade e modernidade coexistem, dialogam e, por vezes, se confrontam. 

O escritor Guimarães Rosa, autor do romance Grande Sertão: Veredas:
inspiração para o título do álbum

O álbum começa com a curtíssima “Minha Ideologia, Minha Religião”, que traz Gil ao violão, cantando acompanhado de suas duas filhas, ainda crianças, Preta Gil e Maria Gil. Apesar da brevidade, a canção expressa uma visão filosófica da vida, onde a renovação diária e a esperança representam, respectivamente, a ideologia e a religião. 

“Nos Barracos da Cidade (Barracos)” apresenta uma crítica social afiada sobre a desigualdade, a hipocrisia das elites e a ineficácia das autoridades diante das dificuldades enfrentadas pelas comunidades mais pobres da sociedade brasileira. Musicalmente, trata-se de um reggae com uma força rítmica irresistível, dançante e conduzido por uma poderosa linha de baixo executada por Liminha, que, além de produzir o disco, tocou o instrumento em algumas faixas. 

Em “Roque Santeiro – O Rock”, Gil faz uma alusão à novela homônima, sucesso da TV Globo à época, mas a letra é, na verdade, uma grande homenagem à nova geração do rock brasileiro que despontava. Alguns dos principais nomes desse movimento são citados, como Lobão, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor e Titãs. “Roque Santeiro – O Rock” é, sem sombra de dúvidas, uma das melhores incursões de Gil no gênero em toda a sua carreira. Ele é acompanhado por Liminha no baixo – que também gravou bases de guitarra – e por Sérgio Dias, responsável pelos solos. Por ironia do destino, ambos foram figuras fundamentais em uma das bandas mais emblemáticas do rock brasileiro: Os Mutantes. A bateria, muito bem executada por Pedro Gil, se destaca. Apesar de adolescente, ele encarou o desafio com maturidade, entregando um som pesado e vigoroso. 

Após a potência sonora da faixa anterior, o clima se torna mais suave com “Seu Olhar”, uma balada melódica em que Gil transita por um terreno mais introspectivo. A letra reflete sobre o fascínio e a profundidade de um olhar, associando-o à ilusão, ao mistério do tempo e à imensidão do universo. Nesta canção, Herbert Vianna (vocalista e guitarrista dos Paralamas do Sucesso) faz uma participação especial, adicionando belos solos de guitarra. 

O primeiro lado do álbum se encerra com a bossa-nova “Febril”, que traz Gil em um formato intimista, apenas voz e violão. Os teclados de Jorjão Barreto adicionam um caráter contemporâneo à canção, afastando-a da sonoridade tradicional do gênero. A letra reflete sobre a solidão do artista diante da multidão, explorando a dualidade entre fama, expectativas alheias e introspecção pessoal. 

Paralamas do Sucesso, Lobão, Ultraje A Rigor e Titãs: citados na letra de
"Roque Santeiro, O Rock"que presta tributo à geração do rock brasileiro dos
anos 1980 que estava em plena ascensão.

“Touche Pas À Mon Pote” abre o segundo lado do álbum no ritmo de ijexá cantado em francês por Gilberto Gil. A letra prega a defesa da igualdade entre os povos, exalta a diversidade cultural e a fraternidade humana, ao mesmo tempo que critica o racismo e a xenofobia. Em seguida, o funk cheio de balanço “Logos Versus Logo” aprofunda-se em uma reflexão sobre o dilema entre a busca pela imortalidade artística e a necessidade de sobrevivência material, enfatizando a valorização do presente. 

O reggae “Oração Pela Libertação da África do Sul” surge como um grito de ativismo, denunciando a opressão do apartheid que ainda assolava a África do Sul nos anos 1980. A letra destaca a resistência do povo sul-africano, metaforicamente representado pelo Rei Zulu e pela presença atuante do bispo Desmond Tutu (1931-2021), uma das principais lideranças na luta contra a segregação racial no país. Gil compôs essa canção a partir de uma sugestão de Mário Schenberg (1914-1990), considerado o maior físico teórico brasileiro, que o incentivou a abordar o vergonhoso regime segregacionista que dominava a África do Sul. 

A balada “Clichê do Clichê” destila ironia e desconstrói estereótipos ao criticar os clichês românticos e melodramáticos, propondo um relacionamento autêntico, sem encenações artificiais, comparações cinematográficas ou imposições pré-definidas pelo amor convencional. Já “Casinha Feliz” exalta a simplicidade e a beleza da vida no sertão, ao mesmo tempo em que faz referência a Guimarães Rosa e à sua obra-prima literária Grande Sertão: Veredas. 

Fechando o álbum, “Duas Luas”, composta por Jorge Mautner, retrata a leveza do cotidiano, destacando a felicidade encontrada nos pequenos momentos sob a cidade iluminada. A canção segue a cadência do ijexá, mas, no refrão, muda para um ritmo de samba, adicionando um toque inesperado e dinâmico ao encerramento do disco. 

Bispo sul-africano Desmond Tutu: uma das principais lideranças na luta contra o
apartheid na África do Sul, tema da canção "Oração Pela Libertação da África do Sul".

Dia Dorim Noite Neon foi bem recebido tanto pela crítica quanto pelo público. O álbum é considerado um marco na carreira de Gilberto Gil, representando um ponto de transição entre a MPB tradicional e o rock brasileiro emergente. Sua participação no Rock in Rio, no início de 1985, ampliou sua visibilidade e relevância na cena musical, fortalecendo sua conexão com as novas gerações da música pop e do rock no Brasil, sem que ele deixasse de lado suas raízes na cultura brasileira. 

O lançamento de Dia Dorim Noite Neon, em novembro de 1985, foi acompanhado por um grande evento cultural em São Paulo, organizado pelo poeta e letrista baiano Waly Salomão (1943-2003), para celebrar os vinte anos de carreira de Gilberto Gil. Intitulada Gil, 20 Anos-Luz, a programação incluiu uma semana de espetáculos, debates, exibições de filmes, leituras e performances. Os shows contaram com a participação de alguns dos maiores nomes da MPB e do rock brasileiro da época. Após o evento, Gil embarcou em uma turnê nacional com sua banda de apoio para promover Dia Dorim Noite Neon.

 

Faixas

Todas de autoria de Gilberto Gil, exceto as indicadas

 

Lado A

1. “Minha Ideologia, Minha religião”

2. “Nos Barracos da Cidade (Barracos)”(Gilberto Gil e Liminha)

3. "Roque Santeiro - o rock"

4. "Seu Olhar"

5. “Febre”

 

Lado B

6. "Touche Pas À Mon Pote"

7. “Logos Versus Logo”

8. “Oração Pela Libertação da África do Sul”

9. “Clichê do Clichê” (Gilberto Gil e Vinícius Cantuária)

10. “Casinha Feliz”

11. “Duas Luas” (Jorge Mautner)

 

Músicos

Celso Fonseca (guitarra)

Jorjão Barreto (teclados)

Repolho (percussão)

Marçal (percussão)

Pedro Gil (bateria)

Téo Lima (bateria)

Rubão Sabino (baixo)

Zé Luís (saxofone)

 

Referências:

Revista Bizz – edição 04, novembro/1985, Editora Abril, São Paulo, Brasil.

elcabong.com.br

gilbertogil.com.br

wikipedia.org 


"Minha Ideologia, Minha religião”


“Nos Barracos da Cidade (Barracos)”


"Roque Santeiro - o rock"


"Seu Olhar"


“Febre”

"Touche Pas À Mon Pote"



“Logos Versus Logo”


“Oração Pela Libertação da África do Sul”


“Clichê do Clichê”



“Casinha Feliz”



“Duas Luas”

Comentários