"Burnin'" (Island Records / Tuff Gong, 1973), Bob Marley & The Wailers

Por Sidney Falcão

O sucesso de público e de crítica alcançado pelo álbum Catch A Fire deu visibilidade internacional a Bob Marley & The Wailers, que passaram a ser tratados pela gravadora Island Records como estrelas da música pop. Para aproveitar o bom desempenho comercial de Catch A Fire e o alcance que o reggae havia conquistado, a gravadora pressionou o grupo a gravar um novo álbum o mais rápido possível.

Mal Catch A Fire havia sido lançado, Bob Marley &The Wailers já estavam de volta ao estúdio Harry J., em Kingston, na Jamaica, para gravar um novo álbum. Contudo, o processo de gravação ocorreu nos intervalos das datas de show da turnê internacional que a banda estava fazendo, afinal, todos queriam ver aquele sexteto de jamaicanos tocando aquele tipo de música tão envolvente falando de temas espirituais, político-sociais e raciais. 

Àquelas alturas, o reggae não se restringia apenas à Jamaica. O ritmo jamaicano havia chegado à Europa via Inglaterra, e de lá começava a se espalhar pelo resto do planeta. Nem as grandes estrelas da música ficaram alheias ao reggae. Paul McCartney falou com entusiamo sobre Bob Marley em entrevista a jornais britânicos. Paul Simon, já envolvido com experimentações musicais do dito "terceiro mundo", gravou em 1972 um reggae, "Mother and Child Reunion". Até mesmo o Led Zeppelin pegou carona no ritmo jamaicano ao gravar "D'yer Mak'er" para o álbum Houses Of The Holy (1973).

Mas se o reggae ia muito bem no mundo do show business, o clima dentro dos Wailers estava tenso. Havia uma insatisfação de Peter Tosh (1944-1987) e Bunny Livingston (1947-2021) - também conhecido como Bunny Wailer - com a atenção centrada apenas em Bob Marley. Tosh não havia aceitado muito bem que a edição do álbum Catch A Fire em que aparece apenas Marley na capa fosse creditado a Bob Marley & The Wailers, afinal, ele foi um dos co-fundadores dos Wailers, com Bunny e Marley. Porém, a Island Records tinha como estratégia centrar as atenções em Bob Marley, pois, a companhia entendia que era a melhor maneira de dar projeção internacional não apenas à banda, mas também ao próprio reggae. 

Já Bunny Wailer, antes mesmo do lançamento do novo disco, começava a dar sinais de afastamento gradativo da banda. Anunciara que não embarcaria com a banda para fazer turnê internacional para promover o novo trabalho, e que apenas tocaria na banda em apresentações dentro da Jamaica.

Bob Marley & The Wailers em Londres, em 1973. 

Depois das gravações no estúdio Harry J., em Kingston, e do processo de mixagem nos estúdios da Island Records, em Londres, o novo álbum dos Wailers era lançado em 19 de outubro de 1973, sob o título de Burnin'

Sexto álbum de estúdio da banda, Burnin' traz ao longo de suas dez faixas temas como violência, espiritualidade, política e justiça social, assuntos que sempre estiveram presentes no repertório de Bob Marley & The Wailers, e que lhes eram muito caros. E todas as letras são embaladas pelo som poderoso executado por músicos talentosos, merecendo destaque os irmãos Aston "Family Man" Barrett (baixo) e Carlton "Carlie" Barrett (bateria), uma das maiores bases rítmicas da história do reggae em todos os tempos, e são uma espécie de força motora dos Wailers.

Embora líder da banda, Bob Marley não é única voz principal em todas as faixas de Burnin'. Peter Tosh e Bunny Wailer cantam cada um em duas canções, sendo que Tosh faz um canto falado em um trecho de "Get up, Stand up" e Marley cantam o restante da canção.

O álbum abre com a mitológica "Get up, Stand up", um dos hinos do reggae, que foi adotado pelos movimentos ativistas que lutam pelos direitos civis ao redor do mundo.

Por meio de versos simples, diretos e objetivos, "Get up, Stand up" convoca o povo oprimido para reagir e lutar pelos direitos e não ficar esperando uma ajuda divina cair do céu. A letra de "Get up, Stand up" é também um recado para as lideranças religiosas, sobretudo as cristãs, que com as suas pregações estariam mantendo a população pobre passiva e incapaz de reagir à situação miserabilidade em que vive. Nesta faixa, a voz principal é de Bob Marley, enquanto Peter Tosh faz o seu canto falado no meio da música.  

"Hallelujah Time" traz em seus versos uma mensagem sobre espiritualidade e esperança através da voz suave de Bunny. Os vocais de apoio possuem forte influência de música gospel, reforçando o caráter espiritual dos versos da canção. A controversa "I Shot The Sheriff" conta a história de um conflito ambíguo, onde o eu lírico da canção, segundo ele, teria matado o xerife da cidade por legítima defesa. A melancólica "Burnin' and Lootin'" trata, por meio de versos cheios de metáforas, sobre a violência sofrida pelos mais pobres. Em meio a tanto sofrimento, Bob Marley ainda questiona: "Quantos rios nós temos que atravessar antes de podermos falar com o chefe?". 

Gravada pela primeira vez em 1965 pelos Wailers como um ska e com o título "(I'm Gonna) Put It On", a próxima faixa foi regravada pelos Wailers em sua nova formação e numa versão reggae, sendo creditada apenas como "Put It On", que encerra o lado 1 do álbum. O ritmo é agradável e a letra da canção traz em seus versos uma mensagem otimista e espiritual, onde o eu lírico faz agradecimentos a Deus.

Abrindo o lado 2 de Burnin', a faixa "Small Axe", um reggae com uma letra cheia de versos metafóricos e que seria uma crítica velada ao sistema fonográfico jamaicano, dominado por três gravadoras locais e que estariam representadas na letra da canção como "a grande árvore", enquanto Marley e todos os que se julgam injustiçados por essas companhias seriam o "machado". Tendo à frente Bunny Wailer no vocal principal, "Pass It On" possui uma bem cuidada harmonização vocal que mostra como a soul music e o R&B influenciaram a formação musical dos Wailers. Bunny canta nesta canção sobre moralidade e responsabilidade que o indivíduo deve ter ao cometer os seus atos. 

Burnin' foi o último álbum Peter Tosh (centro) e Bunny Wailer (á direita)
como integrantes dos Wailers.

"Duppy Conqueror" é um reggae em que Bob Marley canta sobre superação de desafios na vida. O título da canção é formado por duas expressões que fazem parte do vocabulário jamaicano. "Duppy" é uma expressão jamaicana que se refere a espírito malígno, enquanto que "conquror" significa "conquistador". Peter Tosh reaparece cantando no álbum em "One Foundation", uma canção que prega a união do povo e que o amor deve estar assentado numa base sólida. 

Os elementos básicos da filosofia rastafári estão presentes na canção "Rastaman Chant", última música do disco. Nessa música, Bob Marley canta sobre liberdade espiritual, resistência e o orgulho africano. 

Assim como Catch A Fire, o álbum Burnin' recebeu elogios por parte da imprensa musical. O jornalista americano Robert Christigau, em seu artigo para a revista Rolling Stone, disse que o álbum é "ao mesmo desconcertante e jubiloso". "Get up, Stand up" e "I Shot the Sheriff" se tornaram as faixas mais populares do álbum. Em 1974, Eric Clapton gravou a sua versão "I Shot The Sheriff", que estourou nas paradas de todo o mundo, e ajudou a dar maior visibilidade a Bob Marley e ao reggae.

Burnin' ficou marcado não só como um trabalho relevante na carreira de Bob Marley, mas também como último álbum de Peter Tosh e Bunny Wailer participaram como membros dos Wailers. Bunny deixou a banda pouco depois do lançamento de Burnin'. Já a saída de Tosh foi mais tensa e estressante, chegando a haver alguns desentendimentos entre ele e Bob Marley. Mas nesse conflito, quem saiu vencendo, foi Bob Marley. Tosh deixou a banda e deu início à sua carreira solo.

Com a saída de Peter Tosh e Bunny Wailer que partiram cada um em carreira solo, Bob Marley inicia oficialmente a sua carreira solo e os Wailers passam a ser na prática a sua banda de apoio. Para suprir a ausência de Tosh e Bunny que além de tocar respectivamente guitarra e percussão, faziam os vocais de apoio, Marley incorporou à banda para cumprir essa função o trio vocal I Three, formado por Rita Marley (então esposa de Bob Marley), Judy Mowatt e Marcia Griffths, que deu um toque charmoso e feminino ao som dos Wailers. Houve também algumas trocas de músicos na banda.

Burnin' marcou o fim da era dos Wailers com Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer juntos. Quando Bunny e Tosh saíram para seguir carreiras solo, Bob Marley continuou com uma banda reformulada e o apoio do I Three, tornando-se uma lenda do reggae. A saída de Tosh e Bunny mudou a dinâmica da banda, mas o legado do reggae e sua mensagem de resistência e espiritualidade persistiram na música de Bob Marley. Em resumo, Burnin' consolidou a posição internacional da banda e marcou o início de uma nova fase na carreira de Bob Marley e na história do reggae.

Faixas

Lista de faixas dada pela fonte referenciada. Todas as faixas escritas e compostas por Bob Marley, exceto onde indicado.

Lado A

1."Get Up, Stand Up"  (Bob Marley / Peter Tosh) vocais principais: Bob Marley e Peter Tosh

2."Hallelujah Time"  (Jean Watt) vocal principal: Bunny Wailer   

3."I Shot the Sheriff" (Bob Marley) vocal principal: Bob Marley

4."Burnin' and Lootin'" (Bob Marley) ) vocal principal: Bob MarleyBob Marley

5."Put It On" (Bob Marley) ) vocal principal: Bob MarleyBob Marley

Lado B

1."Smal Axe"  (Bob Marley) ) vocal principal: Bob Marley

2."Pass It On" (Jean Watt) vocal principal: Bunny Wailer

3."Duppy Conqueror" (Bob Marley) ) vocal principal: Bob Marley

4."One Foundation" (Peter Tosh ) vocal principal: Peter Tosh

5."Rastaman Chant" (Folclore / Bob Marley / Bunny Wailer / Peter Tosh) ) vocal principal: Bob Marley


Bob Marley & The Wailers

Bob Marley: voz, vocais e guitarra.

Bunny Wailer: voz, vocais e percussão.

Peter Tosh: voz, vocais e guitarra.

Earl Lindo: teclados.

Aston Barrett: baixo.

Carlton Barrett: bateria e percussão.


Referências:

Revista Bizz, edição 52, novembro/1989 - Editora Azul, São Paulo, Brasil.

bobmarley.com      


Ouça na íntegra o álbum Burnin'



Comentários