“Camisa de Vênus” (Som Livre, 1983), Camisa de Vênus

Por Sidney Falcão

Até o começo dos anos 1980, “camisa de vênus” era o termo usado para se referir aos preservativos masculinos ou popularmente conhecidos como “camisinhas”. Naquela época pré-AIDS, a expressão “camisa de vênus” era capaz de causar constrangimento até mesmo a uma estátua. Tinha quase que o mesmo o peso de um palavrão daqueles bem pornográficos. Uma “moça de família” falar em “camisa de vênus” era algo impensável, um escândalo. Talvez por causa, cinco baianos escolheram justamente esse “nome de palavrão” para chocar as famílias mais conservadoras e chacoalhar o marasmo musical da Salvador da primeira metade dos anos 1980.

Em 1980, o então programador da rádio Aratu FM, de Salvador, Marcelo Nova, apresentava semanalmente um programa de rádio chamado Rock Special. Influenciado pelo conceito do punk rock inglês (o “faça você mesmo”), Nova convida o colega de trabalho, Robério Santana, funcionário da TV Aratu, para montar uma banda de rock, embora não tivessem experiência músicos. Marcelo assume o posto de vocalista, Robério a de baixista. Completaram a banda Karl Franz Hummel (guitarra base), Gustavo Mullem (guitarra solo) e Aldo Machado (bateria). 

Após meses de ensaios que se arrastaram por pouco mais de um ano, o Camisa de Vênus fez a sua primeira apresentação ao vivo em maio 1982, na Casa dos Festejos, em Salvador. Outras apresentações se sucederam, em pouco tempo, o Camisa se tornara a figura central da cena alternativa de rock de Salvador, abria caminho para outras punks soteropolitanas que surgiram na mesma época com Gonorreia, Skarro e Trem Fantasma. 

No mesmo ano, o Camisa lança através do selo independente NN Discos, o seu primeiro single, que trazia as músicas “Meu Primo Zé” e “Controle Total”, esta última uma versão em português de “Total Control”, do The Clash. “Meu Primo Zé” estourou nas rádios de Salvador e ajudou o single vender mais de 8 mil cópias. 

Camisa de Vênus em início de carreira em Salvador, numa de 
suas primeiras apresentações ao vivo.

Em 1983, o Camisa vai a São Paulo para gravar de forma independente o seu primeiro álbum de estúdio. Sob a produção de José Emílio Rondeau, as gravações ocorrem nos estúdios da RCA na capital paulista durante 12 horas. Com o material gravado, o Camisa foi à busca de gravadoras. A Fermata teria prioridade já que foi responsável distribuição nacional do primeiro single da banda. Porém, que conseguiu fechar com a banda foi a poderosa Som Livre, do Grupo Globo.

Por volta de agosto de 1983, o Camisa lançava o seu primeiro e homônimo álbum através da Som Livre. Neste seu primeiro trabalho, o Camisa mostra as suas “credenciais”, cheias de sarcasmo, senso crítico afiado e uma sonoridade punk bastante crua, sem polimento. O importante aqui era dar o recado, passar a mensagem e manifestar inconformismo. 

A faixa que abre o disco, “Passamos Por Isso”, tem um perfil autobiográfico da banda, onde o quinteto disparava versos provocativos como um desabafo contra os críticos musicais conservadores, defensores do “bom gosto musical”, que achavam que o Camisa de Vênus não iria a lugar algum. “Metástase” é um punk rock que cita alguns personagens da História como Karl Marx, Jesus Cristo, Adolf Hitler, Sigmund Freud e Jesus Cristo. 

“Bete Morreu” é a faixa mais conhecida deste álbum. A letra conta a história de uma linda garota da lata sociedade, que foi raptada, estuprada e assassinada, e teve o seu corpo encontrado por um motorista de caminhão. “Correndo Sem Parar” parece se referir à época em que o Camisa de Vênus quando a banda fazia parte da cena alternativa de rock de Salvador, e os membros da banda saía à noite para pichar muros e colar cartazes de shows do grupo em via pública.

A lado 1 do álbum termina com um clássico da MPB, “Negue”, que ganhou uma versão punk com o Camisa. Marcelo Nova tenta ser mais “dramático” do que na versão gravada por Maria Bethânia, em 1978: “E eu mostro minha boca lascada / E toda arrebentada por um beijo teu...”.

 Camisa de Vênus, da esquerda para a direita: Aldo Machado,  Karl Hummel, 
Marcelo Nova, Robério Santana e Gustavo Mullem.

“O Adventista” abre o lado 2 do disco, e foi inspirada em “I Believe”, dos Buzzcocks. Com um título um tanto quanto curioso, “O Adventista” traz um eu lírico que diz acreditar numa série de coisas, mas tudo num tom jocoso e debochado. Em “Dogmas Tecnofascistas”, o Camisa toca sobre lavagem cerebral e o poder que lideranças políticas e religiosas têm em controlar o pensamento de seus seguidores. 

Em “Homem Não Chora”, o Camisa retrata a trajetória de um homem, desde a educação castradora e opressora os pais, passando por uma vida adulta estressante e tensa até chegar à velhice onde vive o dilema se o seu descanso eterno será no céu ou no inferno.

“Passatempo” é uma crônica sobre a vida cotidiana em que o Camisa trata sobre consumismo, violência e abismo social. “Pronto Pro Suicídio” gira em torno de um sujeito que tenta lidar com seus frustrações e fracassos. 

O álbum termina com “Meu Primo Zé”, inspirada em “My Perfect Cousin”, do The Undertones. Composta por Karl Hummel e Marcelo Nova, “Meu Primo Zé” é sobre um primo bem nascido e privilegiado, que parece ter nascido com toda a sorte do mundo: além de rico, é bonito, inteligente e todas as garotas são apaixonadas por ele.

The Undertones e Buzzcocks: inspirações para o Camisa de Vênus.

Mesmo com o disco nas lojas e as músicas tocando no rádio, a Som Livre se Ostrava incomodada com o nome provocativo do quinteto baiano. Os diretores da companhia marcaram uma reunião com Marcelo Nova para decidir a mudança do nome da banda. Na reunião, os diretores da Som Livre alegaram que o nome da banda atrapalha aa divulgação da banda nos jornais, emissoras de rádio e de TV. De forma debochada, Marcelo sugeriu como “novo” nome “Capa de Pica”. A reunião acabou, a Som Livre decidiu romper contrato com o Camisa e ainda mandou recolher todas as cópias do primeiro álbum da banda, mesmo tendo vendido até aquele momento 30 mil cópias. 

O Camisa ficou pouco mais de um ano sem gravadora, apenas rodando o Brasil fazendo shows até que a banda assina contrato com a gravadora RGE. Em 1985, a RGE lançou o segundo álbum do Camisa, o Batalhões de Estranhos, que projeitou o Camisa de Vênus comercialmente graças ao sucesso da faixa “Eu Não Matei Joana D’Arc”. E, para surpresa dos fãs, a RGE relançou na mesma época Camisa de Vênus, o primeiro álbum de estúdio da banda baiana, que retornou ao mercado após ter sido recolhido pela Som Livre. A RGE havia adquirido os direitos de relançamento do álbum de etreias do quinteto baiano. 

Faixas 

Lado 1      

1. “Passamos Por Isto” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

2. “Metástase” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

3. “Bete Morreu” (Marcelo Nova / Robério Santana)

4. “Correndo Sem Parar” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

5. “Negue” (Adelino Moreira / Enzo de Almeida Passos)


Lado 2

6. “O Adventista” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

7. “Dogmas Tecnofascistas” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

8. “Homem Não Chora” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

9. “Passatempo” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

10. “Pronto Pro Suicídio” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

11. “Meu Primo Zé” (Karl Hummel - Marcelo Nova)  


Camisa de Vênus: Marcelo Nova (vocais), Karl Franz Hummel (guitarra base), Gustavo Mullem (guitarra solo), Robério Santana (baixo) e Aldo Machado (bateria)    


Ouça na íntegra o álbum Camisa de Vênus

"Bete Morreu" (videoclipe original)




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