“Batalhões de Estranhos” (RGE, 1985), Camisa de Vênus

 

Por Sidney Falcão

O ano de 1983 chegava à sua reta final, e tudo parecia ir às mil maravilhas com o quinteto Camisa de Vênus. A banda baiana havia lançado em agosto daquele ano o seu primeiro e homônimo álbum. Embora a produção fosse um tanto quanto precária, algumas faixas ganharam popularidade como “Bete Morreu”, “O Adventista” e “Passamos Por Isto”.

Tudo ia muito bem até que Marcelo Nova, vocalista do Camisa de Vênus, recebeu um chamado para uma reunião com os diretores da gravadora Som Livre, responsável pelo lançamento do álbum de estreia da banda. Na reunião, da qual participou o diretor da gravadora na época, João Araújo (1935-2013), pai de Cazuza (1958-1990), vocalista do Barão Vermelho, a companhia propunha uma mudança no nome da banda. Os diretores alegavam que o nome do grupo dificultava a divulgação da banda nos meios de comunicação.

Naquela época, a expressão “camisa de vênus”, como era popularmente conhecido o preservativo sexual masculino, era um tabu, era quase uma palavra de baixo calão. A gravadora chegou a propor à banda que, caso aceitasse a proposta, teria em troca uma maior visibilidade através dos programas da TV Globo, já que a gravadora e a emissora de TV pertenciam a um mesmo grupo de comunicação.

Cinicamente, Marcelo Nova teria “aceitado” trocar o nome da banda para “Capa de Pica”. Ou seja, Nova se mostrou irredutível quanto à troca do nome do grupo. A gravadora decidiu então rescindir o contrato com a banda. E não só isso, a companhia decidiu também recolher todos exemplares do álbum de estreia do Camisa de Vênus.

Capa do primeiro e autointitulado álbum do Camisa de Vênus,
lançado em 1983 pela gravadora Som Livre. 

Sem gravadora e sem disco no mercado, o Camisa de Vênus decidiu focar nos shows, excursionando por todo o Brasil, o que permitiu que a banda ampliasse o seu número de fãs. Em 1984, o Camisa de Vênus assinou contrato com a gravadora RGE. Esta não só estava interessada em lançar o segundo álbum da banda como adquiriu as fitas matrizes do primeiro álbum para relança-lo no mercado. O Camisa de Vênus gravou o seu segundo álbum no primeiro semestre de 1985, nos estúdios SIGLA e Intersom, ambos em São Paulo, sob a produção de Reinaldo B. Brito.

Pouco antes do lançamento do novo álbum, a RGE lançou no mercado o single da música “Eu Não Matei Joana D’Arc”, que fez um enorme sucesso nas rádios FM, e levou o Camisa de Vênus para um público mais amplo.

Intitulado Batalhões de Estranhos, o segundo álbum do Camisa de Vênus foi lançado em julho de 1985. O álbum surpreendeu o público e a crítica à época pela sua diversidade musical e pela maturidade que a banda havia alcançado. Enquanto o álbum de estreia é um trabalho mais cru e agressivo, Batalhões de Estranhos traz um repertório mais variado, incluindo baladas, rocks, pop rocks e reggae. Mas a aura anárquica e debochada do Camisa está presente nas letras de algumas canções e na maneira de Marcelo Nova cantar.

Uma curiosidade na capa que sempre intrigou o público são as três crianças que aparecem nela. Quem seriam elas? O menino nu de capacete é Rodolfo, filho de Gustavo Mullem, e as outras duas crianças são Felícia Nova (ao centro) e Penélope Nova (em pé), ambas filhas de Marcelo Nova.

“Eu Não Matei Joana “D’Arc”, música lançada antes em single, é quem abre o álbum. Baseada na história da guerreira e mártir francesa Joana D’arc (1412-1431), a letra faz referência a um indivíduo que tenta provar que nada tem a ver com a morte dela. A faixa seguinte, “Casas Modernas”, parece tecer uma crítica às padronizações arquitetônicas. Depois de dois rocks vigorosos, segue a balada “Lena”, canção em que um homem se mostra apaixonado por uma garota fútil, superficial e com mania de grandeza.

Camisa de Vênus em 1983. Da esquerda para a direita: Robério Santana,
Karl Franz Hummel, Marcelo Nova, Aldo Machado e Gustavo Mullem.


A faixa seguinte é “Ladrão de Banco”, um reggae-rock sobre um ladrão chamado Miguel, que tenta roubar um carro-forte, mas se dá mal. Uma curiosidade nesta música, é que ela muito provavelmente foi inspirada em “Bankrobber”, música do The Clash lançada em single em 1980. A versão original a do Clash é um reggae-rock lento, monótono, enquanto a do Camisa de Vênus, com letra em português, tem variações rítmicas e é mais dinâmica.

“Gotham City” é uma regravação de uma canção de Jards Macalé e José Carlos Capinam, com a qual Macalé participou do IV Festival Internacional da Canção, em 1969. A letra é uma critica velada ao regime ditatorial que estava em vigor quando a letra foi composta por Macalé e Capinam, e que ganhou uma versão mais roqueira com o Camisa de Vênus anos mais tarde.

Em “Noite e Dia”, o Camisa retrata a vida estressante de um homem de uma grande metrópole, que trabalha muito e ganha pouco. Já “Crime Perfeito” é um rock vigoroso sobre um indivíduo que tem uma vida desregrada e cheia de excessos, como se não houvesse amanhã. A segunda balada do álbum é “Rosto e Aeroportos”, uma música bonita, porém sombria e melancólica, e que traz um solo de guitarra triste, bem condizente com a amargura do eu lírico da canção. Assim como “Noite e Dia”, a faixa “Hoje” também se trata da vida estressada e urgente que um indivíduo vivencia numa grande cidade.

Outro reggae-rock presente no disco é “Cidade Fantasma”, uma música com um clima fantasmagórico e que fala de uma cidade sombria e decadente. Uma curiosidade nesta faixa é que provavelmente ela seria “inspirada” (para não dizer plagiada) numa canção da banda britânica The Specials, “Ghost Town”, lançada em 1981. A diferença é que na versão original, o ritmo é “sonolento”, repetitivo e arrastado, enquanto que na versão do Camisa, os arranjos são diferentes, o ritmo é puxado para o reggae, mas mantendo elementos de rock, e os solos de teclados criam sons de filme de terror que dão um toque diferenciado à música. Vale destacar em “Cidade Fantasma” os solos de saxofone de Manito, ex-Os Incríveis.

Joana D'Arc na Coroação de Carlos VII, óleo sobre tela de
Jean-Auguste Dominique Ingres, 1854 (detalhe). A heroína francesa do século XV
é tema de "Eu Não Matei Joana D'Arc", um dos maiores sucessos do Camisa de Vênus.

“Batalhões de Estranhos” é a faixa que dá nome ao álbum. Os versos fazem referência ao clima de medo imposto pela ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. O disco termina com a curtinha “Coiote no Cio”, uma vinheta em que o Camisa de Vênus tomou emprestado o tema do desenho animado A Pantera Cor de Rosa, e que traz a voz de uma garotinha dizendo à mãe que viu um coiote, seguido de um uivo assustador do animal.

O álbum Batalhões de Estranhos teve uma recepção razoável por parte da crítica. Em sua resenha no jornal Folha de S. Paulo, o jornalista Paulo Klein ressaltou a diferença entre a crueza sonora do primeiro álbum com o ecletismo do segundo que vai além do punk rock. A revista Bizz, em sua edição de setembro de 1985, teceu elogios ao álbum do Camisa, mas criticou o baixo volume e o pouco peso do som das guitarras, apontando o problema no processo de mixagem.

Batalhões de Estanhos representou o “passaporte” do Camisa de Vênus para o mainstream do rock brasileiro. O quinteto agora frequentava as paradas de rádio FM e os programas de TV graças ao sucesso de “Eu Não Matei Joana D’Arc”. As outras faixas, “Hoje” e “Lena”, também conquistaram fama. Rapidamente, o álbum alcançou a marca de 100 mil cópias vendidas. O Camisa iniciou uma turnê nacional para promover o álbum Batalhões de Estranhos, sempre com plateia lotada.

A projeção alcançada com Batalhões de Estanhos chamou a atenção da gravadora WEA que fez uma proposta irrecusável de contrato ao Camisa de Vênus. O quinteto baiano aceitou o convite. Mas antes, para cumprir contrato com a RGE, já que devia mais um disco a essa gravadora, o Camisa lançou em julho de 1986 Viva, o antológico e polêmico álbum gravado ao vivo no Caiçara Hall, em Santos, em São Paulo, em março daquele ano, incluindo sucessos do primeiro e segundo álbuns, e mais algumas músicas inéditas. Sem imaginar, o Camisa encerrava a sua passagem pela RGE em grande estilo com um dos melhores álbuns gravados ao vivo da história do rock brasileiro.

Camisa de Vênus: Marcelo Nova (voz), Robério Santana (baixo), Gustavo Mullem (guitarra solo), Karl Franz Hummel (guitarra base) e Aldo Machado (bateria).

Faixas

Lado 1

1. “Eu Não Matei Joana D’arc” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

2. “Casas Modernas” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

3. "Lena” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

4, “Ladrão de Banco” (Karl Hummel / Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

5. “Gotham City” (José Carlos Capinam / Jards Macalé)

 

Lado 2

6. “Noite e Dia” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

7. “Crime Perfeito” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

8. “Rostos e Aeroportos” (Gustavo Mullem / Marcelo Nova)

9. “Hoje” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

10. “Cidade Fantasma” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

11. “Batalhões de Estranhos” (Karl Hummel / Marcelo Nova)

12. “Coiote no Cio (Pink Panther)” (Henry Mancini)

 

 

Ouça na íntegra o álbum 
Batalhões de Estranhos

"Eu Não Matei Joana D'Arc" 
(videoclipe original, 1985)

"Hoje" (videoclipe, Programa "Clip Clip"
TV Globo, 1985)






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