“O Cachimbo da Mulher” (Copacabana, 1981), Zenilton

Por Sidney Falcão

Entre meados dos anos 1970 e toda a década de 1980, o forró de duplo sentido viveu o seu auge. Os forrós de letras recheadas de cacofonias e trocadilhos que sugeriam uma sutil (e às vezes quase explícita) conotação sexual tiveram um grande apelo popular e alavancaram a carreira de artistas que se tornaram grande expoentes do estilo como Genival Lacerda (1931-2021), Sandro Becker e Clemilda (1936-2014).

Mas é impossível falar em forró de duplo sentido sem mencionar o nome do cantor e sanfoneiro pernambucano Zenilton, um dos maiores ícones do forró de duplo sentido, e que ao longo de sua carreira, emplacou inúmeros sucessos que se tornaram clássicos do estilo. Ao contrário do que se possa imaginar, Zenilton percorreu um longo caminho até chegar aos forrós maliciosos que o tornaram famoso.

José Nilton Veras nasceu em 14 de fevereiro de 1939, em Afogados de Ingazeiras, interior de Pernambuco, mas foi criado em Salgueiro, também no mesmo estado. Filho de pai dentista e mãe dona de casa, Zenilton aprendeu a tocar sanfona aos 14 anos, e já tinha na cabeça a intenção de ser artista como Luiz Gonzaga (1912-1989), seu ídolo e referência musical. Quem não gostou nada da ideia foi o seu pai, que queria ver o filho “doutor formado”.

Em 1958, aos 19 anos, Zenilton deixou a cidade de Salgueiro e viajou de caminhão até São Paulo para realizar o sonho de ser um artista do forró. Na capital paulista, os primeiros tempos foram difíceis. Tocou sanfona na rua e nas praças para ganhar alguns trocados. Depois foi trabalhar num bar, do qual se tornou mais tarde o novo dono. Chegou a comprar outros bares e a ser dono de uma casa de shows, na qual grandes astros da música brasileira como Ângela Maria (1929-2018), Nélson Gonçalves (1919-1998) e Agnaldo Timóteo (1936-2021) se apresentaram. Zenilton aos poucos foi conhecendo artistas e gente influente no meio musical e assim, pavimentou caminho para a sua carreira artística. 

Zenilton em início de carreira estampando capa de um compacto
lançado por ele nos anos 1960.

 Nos primeiros anos em São Paulo, Zenilton chegou a lançar discos (alguns deles ainda no formato de 78 rpm), mas todos sem grande repercussão, como o primeiro álbum, Namoro no Escuro, lançado em 1965 pela gravadora Cantagalo. Daí em diante, Zenilton foi lançando com alguma frequência seus álbuns, e até 1978, passou pelas gravadoras Chantecler, Tropicana, Musicolor e Som. O repertório era de forrós com letras comportadas e que nada lembraria os forrós maliciosos que ele viria gravar. Por outro lado, Zenilton era um artista desconhecido do grande público.

A vida do sanfoneiro começou a mudar após uma apresentação num evento na fazenda Rancho Alegre, na cidade de Entre Rios, interior da Bahia, onde anualmente ocorriam as famosas vaquejadas que atraiam todo público da região, que além ver as habilidades dos vaqueiros em dominar os bois bravos, era atraído pelas atrações musicais, em sua maioria, artistas de forró. Em 1978, Zenilton foi uma das atrações musicais da edição daquele ano da vaquejada naquela fazenda. Além dele, se apresentariam também Luiz Gonzaga, Trio Nordestino e Marinês.

Zenilton fez a sua apresentação, e sabe-se lá o porquê, tocou boa parte do seu show os grandes sucessos de Luiz Gonzaga. Após terminar o seu show, Zenilton se encontrou nos bastidores com Luiz Gonzaga, a próxima atrás e que estava bastante furioso e a ele perguntou: “E agora, eu vou cantar o quê? Você cantou tudo o que ia cantar. Você se defina, e esqueça o que é meu, você estragou meu show.” A bronca de Gonzaga abalou Zenilton, já que ele tinha o “Rei do Baião” como ídolo.

Frustrado e triste, Zenilton voltou para São Paulo. Na capital paulista, nos corredores de uma gravadora, Zenilton encontrou-se com Raul Seixas (1945-1989), e numa conversa rápida com o roqueiro baiano, contou o que lhe ocorreu com Luiz Gonzaga. Raul, que já era famoso como cantor, havia trabalhado como produtor de discos de artistas populares da CBS antes da fama, e essa experiência lhe deu uma visão apurada de música comercial. E foi fazendo uso dessa experiência que Raul sugeriu a Zenilton que ele inventasse outras coisas, cantasse coisas engraçadas. Aquilo foi um estalo.

Foi então que Zenilton gravou em 1979 o forró “É Só Capim”, composta por Tio Jovem e Zenilton, e que ficou mais conhecido como “Capim Canela”. A música saiu no disco Não Vá Atrás de Conversa, lançado naquele ano, e que contém outras pérolas do forró de duplo sentido como “As Coisas Grandes de Itu”, “Conta Bancária” e “Anda Depressa”.  O disco foi produzido por Lindolfo Barbosa (1941-1982), o saudoso Lindu, vocalista e sanfoneiro do Trio Nordestino, e marcou a estreia de Zenilton na gravadora Copacabana.

“É Só Capim (Capim Canela)” estourou nas rádios, foi um sucesso tão grande que na edição seguinte da vaquejada da Fazenda Rancho Alegre, Zenilton e Luiz Gonzaga se encontraram, mas dessa vez, o jovem forrozeiro não levou bronca do veterano. Ao contrário, recebeu elogios: “Está vendo como foi bom eu lhe avisar? Fui pro Rio de Janeiro, todas as rádios só tocam você”, disse Gonzaga a Zenilton. Finalmente, Zenilton havia encontrado um caminho para o seu trabalho e que o tornaria um forrozeiro famoso. 

A bronca de Luiz Gonzaga e a sugestão de Raul Seixas mudaram o rumo
da carreira artística de Zenilton.

No ano seguinte, em 1980, sai o álbum Meu Casamento, que traz mais forrós de duplo sentido como “Quiabo Cru” e “Nunca Fui Mau”. Mas tanto esse álbum como o anterior, mescla forrós de duplo sentido com forrós mais comportados.

Contudo, no trabalho posterior, intitulado O Cachimbo da Mulher, o repertório do álbum é todo apoiado em forrós de duplo sentido. A produção ficou a cargo mais uma vez de Lindolfo Barbosa. Como todo álbum de forró de duplo sentido, O Cachimbo da Mulher contém músicas recheadas de trocadilhos e cacofonias de conotação sexual.

O álbum começa com “Deixei de Fumar”, em que um indivíduo trocou o cigarro pelo cachimbo da esposa. Lógico que o “cachimbo” aí é o órgão sexual da esposa dele.

“Rio das Pedras”, a faixa seguinte, traz um pescador que tenta ensinar a esposa a pescar os peixes entre as pedras de um riacho. O refrão é hilário: “Abre as pedras, meu amor / É aí que o peixe esconde quando vê o pescador / Abre as pedras, meu amor / É aí que o peixe esconde quando vê o pescador”.

Em “O Herdeiro”, Zenilton canta a história de um rapaz que se casou com uma mulher mais velha e rica. Como ela não tem familiares, o jovem marido é o herdeiro único de sua fortuna, como diz o refrão: “Eu vou ficar como herdeiro dela / Eu vou ficar como herdeiro dela / Não quero que ela morra que eu gosto muito dela / Mas se isso acontecer eu fico como herdeiro dela”.

Imagina uma mulher que adora chupar cana noite e dia sem parar. É sobre isso que canta Zenilton em “Cana Caiana”, em que o marido se mostra nervoso e preocupado com a esposa, que quando enjoa de sua cana, vai chupar a cana do vizinho.

Na faixa seguinte, um outro marido, este recém-casado, se mostra revoltado com a esposa que não faz outra coisa a não ser passar o dia todo na janela de casa vendo a vida dos outros. Para ele, a esposa está dando motivo pra desquitar. O “dando” aqui nesta música tem toda uma conotação sexual.

Fechando o lado 1 do disco, “O Pão da Minha Prima”, um forró sobre uma garota que chama o o namorado padeiro de “pão doce” ou “pão fofo”. Talvez por ciúmes, o primo dela chama o rapaz de “pão xoxo” ou “xôxo pão”, um trocadilho com “xô chupão”.

O lado 2 do álbum O Cachimbo da Mulher começa com a engraçadíssima “Bacalhau À Portugesa”, em cuja letra o eu lírico está ansioso para cheirar o bacalhau que Maria estaria cozinhando. Logicamente, o bacalhau aqui estaria associado ao órgão sexual da cozinheira. O lado mais interessante nesta faixa foi a criatividade nos arranjos da música, que inspirados no prato culinário abordado na letra, misturaram o ritmo do forró com o vira português.

“Primeiro de Abril” é sobre Ana Maria, uma mulher que para um animado baile para anunciar a morte de um idoso muito querido de todos ali. Porém, descobrem pouco depois que era tudo uma mentira e que Ana Maria havia feito a brincadeira do “primeiro de abril”, o “dia da mentira”. E por isso, Zenilton canta no refrão “Mentia Ana Maria / E no forro ninguém sabia”. O trocadilho no refrão tem uma conotação de um ato sexual.

Em “Loteria Federal”, um sujeito se revolta no jogo do bicho, após apostar na cobra e­­ o resultado dar veado. “Caminho de Santos” ensina o ouvinte a ir de carro à cidade de Santos, mas antes, segundo o refrão, tem que passar em outro município: “Você tem que passar no Cubatão”. Mais uma música com refrão sutilmente associado ao ato sexual.

“Quero Um Beijinho” é talvez a faixa mais “ingênua” do álbum, onde um homem aceita o beijo que a sua amada está querendo lhe dar. “Se você tá querendo me dar / Se você tá querendo me dar / Um beijinho da sua boca / Que coisinha louca, como eu vou gostar”. Será que é apenas o beijinho que o apaixonado homem quer que a moça dê a ele?

Raimundos: os "discípulos roqueiros" de Zenilton. 

Finalizando o álbum, “Quem Avisa Amigo É”, onde Zenilton dá o recado de que não vai defender amigo que se mete em confusão e provoca briga. E por isso, o forrozeiro vai logo avisando no refrão: “Eu não estou aqui para acudir ninguém / Eu não estou aqui para acudir ninguém / Se você pensa que pode contar comigo / Está por fora meu amigo, eu não vou acudir ninguém”.

O Cachimbo da Mulher foi mais um álbum de sucesso da carreira de Zenilton. Durante boa parte dos anos 1980, o forrozeiro pernambucano foi um dos expoentes do forró de duplo sentido. Porém, o estilo entrou em decadência com a chegada dos anos 1990, quando um novo seguimento do forró despontava, o forró eletrônico. O novo estilo introduziu instrumentos como sintetizadores e bateria eletrônica, trazia elementos de música pop, rock e até música sertaneja, apresentações de palco muito bem elaboradas e a inclusão bailarinos. Ao invés das letras de duplo sentido, o novo estilo focava em letras românticas, muitas vezes beirando o melodrama. O público jovem urbano foi conquistado pelo forró eletrônico. Artistas como Zenilton foram vistos como “ultrapassados”, e perderam espaço para bandas como Mastruz com Leite, Magníficos, Limão com Mel, Calcinha Preta entre outras.

Depois de um tempo de ostracismo, Zenilton foi redescoberto pelo público através dos Raimundos, em 1994. Naquele ano, os Raimundos lançaram o seu primeiro e homônimo álbum, que misturava inusitadamente punk rock, hard core e forró. E naquele álbum, que se tornou um clássico do rock brasileiro, os Raimundos regravaram canções de Zenilton presentes no álbum O Cachimbo da Mulher como “Deixei de Fumar”, “Cana Caiana” e “Rio das Pedras”, em versões que fundiam punk rock e forró. Fãs confessos de Zenilton, os Raimundos convidaram o forrozeiro veterano para participar das gravações do álbum que foi um sucesso de público e de crítica. Os Raimundos fizeram uma série de apresentações ao vivo com Zenilton, que no palco, mostrou o seu jeito desbocado e do quanto foi uma inspiração irrefutável para o lado sacana da banda brasiliense. No segundo álbum da banda, Lavô Tá Novo (1995), os Raimundos outras duas canções do disco O Cachimbo da Mulher, de Zenilton, “O Pão da Minha Prima” e “Tá Querendo Desquitar”. Graças aos Raimundos, o público jovem e roqueiro conheceu o trabalho de Zenilton, o que acabou revitalizando a carreira do sanfoneiro.  

Em 2015, Zenilton voltou a ser notícia ao lançar o forró “Ladrões da Petrobras”, cuja letra era uma crítica aos escândalos de corrução na Petrobras.

Faixas

Lado A

01. “Deixei de fumar (Durval Vieira – Graça Góis)

02. “Rio das Pedras” (Durval Vieira – Zenilton)

03. “O Herdeiro” (Durval Vieira – Zenilton)

04. “Cana Caiana” (Zenilton – Tio Jovem)

05. “Tá Querendo Desquitar” (Zenilton – Guriatã de Coqueiro)

06. “O Pão da Minha Prima” (Zenilton – Tio Jovem)

 

Lado B

07. “Bacalhau À Portuguesa” (Durval Vieira – Hernandes)

08. “Primeiro de Abril” (Antonio Brasileiro – Roderiki)

09. “Loteria Federal” (Ely Fonte Verde – Roderiki)

10. “Caminho de Santos” (Durval Vieira – Broto do Rojão)

11. “Quero Um Beijinho” (Durval Vieira – Salim Mansur)

12. “Quem Avisa, Amigo É” (Marcelo Reis – Belinho)

 

Referências:

jc.ne10.uol.com.br

Eu, Zenilton - documentário, 2017, produção Fabiano Veras

wikipedia.org  


Ouça na íntegra o álbum 
O Cachimbo da Mulher


Comentários

  1. Talvez esta seja a grande obra-prima da discografia do mestre Zenilton. Um disco que inspirou não apenas a banda Raimundos mas também o cantor português Quim Barreiros, e que serviu de base para outros futuros trabalhos do músico pernambucano. Um detalhe importante é que além da produção de Lindolfo Barbosa (o eterno Lindú do Trio Nordestino), os belos arranjos do repertório foram do saudoso e bem-sucedido maestro Chiquinho do Acordeon (1928-1993), o tal "gaúcho de cabaceiras" apelidado por Luiz Gonzaga, e que trabalhou também com vários artistas do forró em sua época de ouro.

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