“Mi Casa, Su Casa” (Chaos/Sony Music, 1999), Penélope


Por Sidney Falcão

A poderosa indústria da axé music através do seu poder econômico, financeiro e midiático, exercia uma fortíssima influência no cenário cultural da Bahia nos anos 1990. Estrelas da axé music como Daniela Mercury, Carlinhos Brown, É O Tchan, Timbalada e demais artistas alcançaram um nível de fama que ultrapassaram terras baianas e até mesmo as fronteiras nacionais. O mercado da axé music era bastante competitivo, lucrativo e influente, para o bem e para o mal.

Embora esse cenário musical descrito lhe parecesse muito desfavorável, o rock baiano vivia um momento bastante fértil. A imprensa alternativa, os festivais e as casas noturnas ajudavam a fomentar a cena roqueira de Salvador daquela época. Várias bandas importantes do rock baiano ganharam visibilidade como The Dead Billies, Catapulta, Saci Tric, Injúria, Dinky-Dau, Maria Bacana, Inkoma (que revelou Pitty), Lisergia, Dois Sapos e Meio, brincando de deus (a grafia é em letras minúsculas mesmo), Dr. Cascadura entre outras.

Foi em meio a essa cena roqueira profícua de Salvador que em 1995, duas garotas, Érika Martins (vocais e guitarra) e Constança Scofield (teclados e flauta), decidiram montar uma banda de rock. Já desde o início, elas tinham em mente uma banda de rock cujo conceito temático fosse o universo feminino. Era uma proposta ousada já que, embora a presença feminina no rock (no Brasil e no mundo) não fosse uma novidade, o estilo ainda era (e ainda é) dominado pela maioria masculina. A banda foi completada com Josane Noronha (guitarra) e Jandira Fernandes (baixo). No entanto, para a bateria, as meninas abriram uma exceção: chamaram um rapaz, Mário Jorge, ex-baterista da lendária banda Úteros em Fúria, que havia recém encerrado atividades naquele ano de 1995.

Com um conceito tão voltado para o universo feminino, a banda foi nomeada Penélope Charmosa, mesmo nome de uma personagem do desenho animado Corrida Maluca (título original Wacky Races), da Hanna Barbera.

Musicalmente e esteticamente, a banda teve como influências a new wave, a Jovem Guarda, a surf music, o bubblegum dos anos 1960, folk rock, além de bandas e de artistas mais contemporâneos à época como Shonen Knife, Gang 90 & Absurdettes, Blur, Björk e Stereolab.

Em 1996, Josane e Jandira deixaram a Penélope Charmosa e foram substituídas respectivamente por Luisão Pereira (ex-guitarrista da banda Cravo Negro) e pela baixista Eneida Gonçalves. Esta última por sua vez, não durou muito tempo e foi substituída por Érika Nande. Com a entrada de Nande, a Penélope Charmosa estava com sua formação mais famosa completa.

Penélope, da esquerda para a direita: Luisão Pereira, Érika Martins, Érika Nande,
Constança Scofield e Mário Jorge.

Após ser uma presença frequente no circuito alternativo de rock de Salvador e de enviar fitas demo para as mais diversas gravadoras e jornalistas influentes do meio musical, a vida da banda Penélope Charmosa começa a mudar depois de apresentar-se em 1997 no Festival Abril Pro Rock, no Recife, em Pernambuco, uma apresentação que chamou a atenção da gravadora Sony Music. Em 1998, a banda baiana assinou contrato com aquela gravadora. Nessa mesma época, a banda passa a se chamar apenas Penélope para evitar problemas de direitos autorais com a Hanna-Barbera, proprietária da marca Penélope Charmosa.

No mesmo ano em que assinou contrato com a Sony Music, a banda muda-se para o Rio de Janeiro, onde foi gravar o seu primeiro álbum no AR Estúdio, sob a produção de Tom Capone (1966-2004) e Antoine Midani.

Contudo, depois do álbum gravado e mixado, a Sony Music decide adiar o lançamento do álbum de estreia da Penélope. A companhia alegou que havia outras “prioridades”. Especula-se que a tal “prioridade” era o lançamento do disco de Tiazinha, a personagem de apelo erótico interpretado por Suzana Alves e que se tornou um grande sucesso nacional como atração do Programa H, de Luciano Huck, na TV Bandeirantes.

Um outro motivo do adiamento do lançamento do disco da Penélope foi que a Sony Music queria que a primeira música de divulgação do álbum fosse a regravação de “Tão Seu”, feita pela Penélope para a compilação 5 Anos de Chaos, que reunia canções de bandas do selo Chaos, da Sony Music, em comemoração aos cinco anos do selo completados naquele ano de 1998. Os membros da Penélope foram contra, queriam que uma canção autoral da banda fosse a primeira música de trabalho do álbum.

Esse adiamento durou quase um ano. A situação só mudou depois que a música “A Mais Pedida”, dos Raimundos, estourou nas rádios de todo o Brasil. Em “A Mais Pedida”, Érika Martins faz uma participação especial. Era uma das faixas de Só No Forévis (1999), um álbum que se tornou um grande sucesso na carreira dos Raimundos alcançando a marca de quase 2 milhões de cópias vendidas.

A participação especial no áudio e no videoclipe de
"A Mais Pedida", dos Raimundos, ajudou a alavancar
a carreira da Penélope.

Foi então que a Sony Music percebeu o erro que estava cometendo e aproveitando o sucesso de “A Mais Pedida”, desengavetou o álbum da Penélope pronto há quase um ano e lançou no mercado em agosto de 1999, Mi Casa Su Casa, o tão esperado álbum de estreia da banda baiana. Mi Casa Su Casa foi lançado através do selo Chaos, criado pela Sony Music em 1993 para lançamento de discos de uma nova geração de bandas do pop rock brasileiro.

Mi Casa Su Casa segue o conceito firmado por Érika e Constança quando formaram a banda, que é a abordagem do universo feminino tendo o rock como veículo de expressão, numa reação ao que ainda restava de postura masculinizada dentro do estilo. Há uma aura feminina do começo ao fim do disco, e ao mesmo tempo adolescente. Porém, é possível perceber algumas canções com letras mais profundas trazendo questionamentos que em nada lembram dilemas de jovens com espinhas na cara.

A faixa que dá nome ao álbum de estreia da Penélope é a primeira do disco, que começa com os acordes de guitarra num volume muito baixo, acompanhando a voz de Érika Martins que canta os primeiros versos também num tom baixo, quase sussurrando, até que a canção explode com o refrão. Na faixa seguinte, “Naqueles Dias”, a Penélope trata sobre menstruação e namoro: “E eu não sei se vou namorar / Hoje estou rubra abaixo da cintura”.

Uma característica bem peculiar na trajetória da Penélope foi fazer releituras de canções conhecidas na voz de outros artistas, mas dando a elas versões extremamente diferentes das originais e empregando nelas elementos bem pessoais. “Namorinho de Portão”, por exemplo, canção de Tom Zé, ganhou da Penélope uma versão bem diferente da versão original do autor, de 1968, e da versão de Gal Costa (1945-2022), gravada por ela em 1969. A versão da Penélope tem mais apelo pop e é mais radiofônica. A letra é sobre um jovem que se passa por bom moço ao visitar a casa da família conservadora de sua namorada.

No bem humorado pop rock “Jr”, um gato chamado “Júnior” apronta mil e uma travessuras na casa de sua dona. Merece destaque a guitarra de Luisão Pereira, que faz solos incríveis. “Abrigo” tem versos simples e ao mesmo tempo introspectivos, metafóricos: “Se a luz atravessa a janela / Saiba que a cor vem com ela / Iluminar a calma aparente / Ou trazer a dor descontente”. Em “Der Mond” (que em alemão quer dizer “A Lua”), um astronauta contempla na imensidão do espaço sideral a pequenina e distante Terra, num tamanho comparado ao de um asterisco. 

“Circo” é uma das mais bonitas e singelas canções gravadas pela Penélope. Foi composta por Ronei Jorge, na época vocalista da Saci Tric, uma banda contemporânea da Penélope dentro cenário alternativo do rock de Salvador nos anos 1990. A canção versa sobre maturidade e liberdade, em que uma garota ao ver o circo bem na frente da sua casa, quer ir embora com ele, deixando para trás os seus pais. O circo da canção nada mais é do que uma metáfora representativa do mundo lá fora à espera dessa garota, pronto para ser descoberto por ela.

“O Ponto” é uma faixa especial, uma canção reflexiva e que foge do perfil musical juvenil da Penélope. Com arranjos de cordas elaborados por Eumir Deodato, “O Ponto” traz em seus versos uma reflexão sobre a diversidade de opiniões, onde cada indivíduo pode enxergar o mundo das mais diversas maneiras. A liberdade sexual parece ser o tema de “1/2”, um pop rock com uma bateria dançante, enquanto que “Teen” traz as dúvidas e incertezas da adolescência.

A new wave é revisitada pela Penélope em “Holiday”, que traz um trecho de “Telefone”, um grande sucesso de 1983 da Gang 90 & Absurdettes, aqui cantado graciosamente por Érika Martins. O pop rock alegre e agradável “Sombreado” traz no seu refrão “Só a imagem interessa / Se a nuvem a lua atravessa”. “Harold” é um power pop divertido e vigoroso, única faixa totalmente em inglês do álbum, e que conta a expectativa de uma garota em ter a sua tão esperada primeira relação sexual com o seu namorado, onde o estado emocional dela é um misto de ansiedade e medo.

"Holiday"  contém trecho de versos emprestados de "Telefone", sucesso
da Gang 90 & Absurdettes (foto), de 1983.

O álbum podia perfeitamente fechar com “Harold” não fosse a insistência da Sony Music em incluir a faixa “Tão Seu”, um grande hit do Skank, e que ganhou uma versão por parte da Penélope completamente diferente da original, deixando-a quase irreconhecível. A Penélope havia gravado “Tão Seu” para a compilação 5 Anos de Chaos, lançada pela Sony Music em 1998, em comemoração aos cinco anos do selo Chaos, criado pela Sony Music. Gravada ao vivo, a versão da Penélope destoa de todo o álbum e é completamente dispensável. 

Embora tenha vendido modestas 50 mil cópias, Mi Casa Su Casa deu à Penélope uma razoável visibilidade na grande mídia brasileira, algo que não acontecia no rock baiano desde o Camisa de Vênus nos anos 1980. O álbum gerou cinco singles: “Teen”, “Holiday”, “Namorinho de Portão” e “Circo”. Sem sombra de dúvidas, “Holiday” e “Namorinho de Portão” foram as faixas mais tocadas na programação radiofônica. Os videoclipes das duas músicas tiveram boa rotação na MTV Brasil em 1999. Em 2000, A banda baiana teve três indicações ao VMB da MTV Brasil e duas indicações no Prêmio Multishow de Música Brasileira. A visibilidade midiática da Penélope proporcionou à banda fazer uma turnê nacional que teve 100 apresentações.

A Penélope ainda chegou a lançar mais dois álbuns, Buganvilia (2001) e Rock, Meu Amor (2003), este último lançado pela Som Livre e que marcou a estreia da baixista Fifi no lugar de Érika Nande. Contudo, os dois álbuns não foram tão atraentes quanto Mi Casa Su Casa. Em 2004, a Penélope encerrou as atividades após nove anos de atividade.

Com o fim da Penélope, Érika Martins partiu para a carreira solo, e mais tarde, em 2015, ingressou na banda Autoramas, liderada por Gabriel Thomaz, seu então marido. A tecladista e flautista Constança Scofield, herdou o estúdio Toca do Bandido, criado pelo produtor Tom Capone, com quem ela havia se casado e tido um filho. Depois da morte de Tom Capone, em 2004, Constança passou a atuar como produtora e diretora artística do estúdio e administradora do selo independente Toca Discos. Luisão Pereira chegou a lançar discos em carreira solo, produziu trilhas sonoras para filmes, e com sua esposa, a violoncelista Fernanda Monteiro, formou a dupla Dois em Um.

Faixas

  1. “Mi Casa, Su Casa” (Érika Martins)
  2. “Naqueles Dias” (Ronei Jorge)
  3. “Namorinho De Portão” (Tom Zé)
  4. “Jr.” (Érika Martins - Constança Scofield)
  5. “Abrigo” (Érika Martins - Constança Scofield - Eneida - Luisão - Mário)
  6. “Der Mond” (Érika Martins - Constança Scofield)
  7. “Circo” (Ronei Jorge)
  8. “O Ponto” (Érika Martins – Luisão)
  9. “1/2" (Luisão Pereira)
  10. “Teen” (Érika Martins)
  11. “Holiday” (Julio Barroso - Érika Martins – Luisão)
  12. “Sombreado” (Érika Martins - Constança Scofield - Eneida - Luisão – Mário)
  13. “Harold” (Constança Scofield)
  14. “Tão Seu” (Ao Vivo) (Samuel Rosa - Chico Amaral)

 

Penélope: Érika Martins (vocais e guitarra), Constança Scofield (telcados e flauta), Érika Nande (baixo), Luisão Pereira (guitarra) e Mário Jorge (bateria).

 

Referências:

Folha de S. Paulo, Ilustrada, Terça-feira, 03 de Agosto de 1999, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 145, agosto/1997, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 146, setembro/1997, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 152, março/1998, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 168, julho/1999, Editora Azul, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 170, setembro/1999, Editora Abril, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 171, outubro/1999, Editora Abril, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 180, julho/2000, Editora Símbolo, São Paulo, Brasil.

Revista Bizz – edição 184, novembro/2000, Editora Símbolo, São Paulo, Brasil.


Ouça na íntegra o álbum Mi Casa Su Casa

"Namorinho de Portão" 
(videoclipe original)

"Holiiday" (videoclipe original)

"Tão Seu" (videoclipe ao vivo)









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