“Ney Matogrosso” (Ariola, 1981), Ney Matogrosso


Por Sidney Falcão

Embora já estivesse em carreira solo e com seis álbuns solos no currículo, alguns deles bem avaliados pela crítica, Ney Matogrosso iniciava os anos 1980 sem conseguir se desvencilhar da aura dos Secos & Molhados, conjunto musical que foi um fenômeno pop na música brasileira no começo dos anos 1970 e que revelou o cantor mato-grossense. Nem mesmo o fato da sua versão para “Não Existe Pecado Ao Sul do Equador”, de Chico Buarque, ter sido tema de abertura da novela Pecado Rasgado, da TV Globo, em 1978, e ter feito sucesso no rádio, não foi suficiente para o artista se livrar das amarras do seu antigo conjunto.

Se por um lado a carreira solo de Ney havia conquistado o respeito da crítica, isso não se traduzia comercialmente. Os discos de Ney vendiam pouco. As vendas “astronômicas” do primeiro disco dos Secos & Molhados, em 1973, ainda estavam frescas na memória de todos, e talvez esperassem que isso se repetisse com Ney já que era ele a grande estrela daquele grupo.

Em 1980, após o lançamento do álbum Sujeito Estranho, Ney deixou a gravadora WEA, através da qual lançou três álbuns em dois anos. No ano seguinte, através do apoio do produtor Marco Mazzola, Ney assinou contrato com a Ariola Discos, gravadora alemã que estava se instalando no Brasil na época. Responsável pela produção do novo e primeiro álbum de Ney pela Ariola, Mazzola havia conversado com o cantor que era preciso encontrar uma música com potencial de hit, capaz de impulsionar as vendas do novo trabalho.

Mazzola parecia ter encontrado a música ideal para impulsionar comercialmente o novo disco de Ney. Era a música “Homem com H”, de Antônio Barros, compositor muito famoso no meio do forró e que teve canções suas gravadas por grandes estrelas do gênero como Luiz Gonzaga (1912-1989), Jackson do Pandeiro (1919-1982), Marinês (1935-2007) e Trio Nordestino. O produtor conheceu essa música através da cantora Elba Ramalho, com quem ele havia trabalhado. “Homem com H” já havia sido gravada antes nos anos 1970 pelo trio de forró Os 3 do Nordeste e pela banda de rock Hydra. Só que as duas versões não tiveram grande repercussão.

Antes de Ney Matogrosso, "Homem Com H" foi gravada nos anos 1970 por artistas
como o trio de forró Os 3 do Nordeste (foto) e a banda de rock Hydra.

Ney havia topado gravar a música, mas por ser um forró, o cantor se mostrava um tanto quanto inseguro em gravar uma música de um estilo que não fazia parte do seu universo musical até então. Os deboches sexistas e as piadas que poderiam surgir por causa da letra da música em contraste com o seu jeito delicado e afeminado não o assustavam.

Quem incentivou Ney a gravar “Homem com H” foi ninguém menos que o cantor Gonzaguinha (1945-1991), astro da MPB e filho do ícone maior do forró Luíz Gonzaga. Para Gonzaguinha, aquela música era perfeita para Ney e que se tonaria um grande sucesso na sua voz. O incentivo de Gonzaguinha deixou Ney mais seguro, e este encarou o desafio de gravar o forró “Homem com H”.

Lançado em maio de 1981, o sétimo álbum de Ney Matogrosso leva o nome próprio do cantor. A capa do álbum traz uma imagem exótica em que aparece a cabeça do artista com uma ave sobre ela, e abaixo uma paisagem que parece ser de alguma cidade. O repertório do álbum é bem diversificado musicalmente, trazendo ritmos que vão do choro à disco music, passando por baião, baladas e até marcha carnavalesca. O disco conta convidados especiais como Gal Costa, Orquestra Tabajara, Sérgio Dias Baptista e dos tecladistas Lincoln Olivetti (1954-2015) e César Camargo Mariano, os dois últimos, responsáveis pelos arranjos de teclados de algumas faixas.

Ney Matogrosso, o álbum, começa com “Deixa A Menina”, de Chico Buarque, que já havia sido gravada pelo autor em 1980 como um samba. Com Ney, a música ganhou uma versão que é um misto de samba com funk bem estilizado.

Na sequência, Ney revisita um antigo choro de 1937, “Espinha de Bacalhau”, composto pelo clarinetista Severino Araújo (1917-2012), que originalmente era instrumental e que veio ganhar letra em 1981 com o compositor Fausto Nilo. Ney faz um dueto com Gal Costa, acompanhados pela Orquestra Tabajara, comandada pelo próprio Severino Araújo que toca clarinete. Chama a atenção o tom agudo que Gal canta, um pouco acima do habitual, atingindo regiões vocais que certamente causou algum desconforto para a cantora. Por outro lado Ney, com sua voz aguda, teve que cantar alguns trechos num tom mais grave. Embora tenham conseguido encarar o desafio de cantar essa música num tom vocal tão ingrato, é bem provável que tal desafio deve causar ao ouvinte algum tipo aflição.   

“Viajante”, canção de Teresa Tinoco, é uma das canções mais bonitas gravadas por Ney Matogrosso em toda a sua carreira. A letra é de uma profundidade impressionante, densa, e Ney emprega uma interpretação à altura dos versos tão sensíveis desta canção que trata da relação de um casal que vive numa mesma casa. Embora exista amor entre os dois, por algum motivo, ambos têm dificuldades de expressar esse sentimento e parecem se defender das emoções que um sente pelo outro.

Em seguida vem a bucólica “Mata Virgem”, canção de Raul Seixas (1945-1989) e Tânia Menna Barreto, gravada originalmente pelo próprio Raul em 1978, cujos versos comparam a mulher amada e inspiradora a uma mata virgem.

O lado A da versão LP do álbum encerra com a principal faixa do disco, “Homem com H”. A música foi um grande desafio para Ney por se tratar de um forró, ritmo que o cantor nunca havia se aventurado a gravar. A letra trata sobre um sujeito que se diz muito másculo, corajoso, viril. Os versos sexistas contrastavam com o perfil delicado de Ney Matogrosso, homossexual assumido, e que certamente esse contraste foi o segredo para a música fazer tanto sucesso.

Uma sequência de duas canções com apelo pop abre o lado B do disco. “Amor Objeto”, de Rita Lee e Roberto Carvalho, é uma canção pop com uma inclinação para a disco music. “Vida, Vida” também tem um apelo pop e flerta sutilmente com o R&B. Foi um dos grandes hits do disco, impulsionada por ter sido tema de abertura da novela Jogo da Vida, da TV Globo, exibida em 1981. A escolha da emissora de TV pela versão de Ney para tema de abertura da novela criou um certo “ciúme” em Moraes Moreira (1947-2020), co-autor da “Vida, Vida” e que havia gravado no mesmo ano a música.

Depois do agito das duas faixas anteriores, o clima do disco fica mais relaxante e introspectivo com “De Marte”, uma balada com ares psicodélicos que leva o ouvinte a viajar através da voz calma de Ney e do instrumental etéreo da canção para um planeta Marte idealizado pelas compositoras Luli e Lucina. O guitarrista dos Mutantes, Sérgio Dias Baptista, faz participação especial nesta faixa tocando cítara elétrica.

O álbum chega ao fim em ritmo festivo com “Folia No Matagal”, uma marcha carnavalesca com letra alegre, debochada e cheia de malícia.

Um mês após o lançamento do álbum, Ney Matogrosso estreou no Canecão, no Rio de Janeiro, uma temporada de shows para promover o novo disco, que contou com uma produção muito bem elaborada. O cenário reproduziu a capa do álbum e incluiu a uma ave gigante parecida com a que aparece sobre a cabeça de Ney na capa do disco.

Ney Matogrosso em show no Canecão, no Rio de Janeiro, para promover
o álbum Ney Matogrosso
em junho de 1981.

A faixa de maior sucesso do álbum Ney Matogrosso foi sem sombra de dúvidas “Homem com H”, que estourou nas paradas de rádio em todo o Brasil. Outras faixas também fizeram sucesso como “Amor Objeto” e “Vida, Vida”, levando o álbum a alcançar a marca de 300 mil cópias. Foi o primeiro álbum de grande sucesso comercial da carreira de Ney, que lhe rendeu o seu primeiro disco de ouro na carreira solo por ultrapassar a marca de 100 mil cópias. As boas vendas do álbum e a presença de Ney nas paradas de rádio levaram a TV Globo a fazer um programa especial dedicado ao cantor dentro da série Grandes Nomes, atração que abordava a vida e a arte dos grandes artistas da música brasileira.

Com o estrondoso sucesso radiofônico de “Homem com H” e as mais de 300 mil cópias vendidas do álbum, Ney Matogrosso finalmente conseguiu se afastar do estigma dos Secos & Molhados e fazer com que o público e a mídia vissem a sua carreira solo com mais atenção. O álbum Ney Matogrosso não apenas representou um sucesso comercial para o artista como também o levou a investir com mais afinco em canções com apelo pop muito por conta da boa receptividade do público às canções “Amor Objeto” e “Vida,Vida”. Ney buscou gravar canções de uma nova geração de artistas do pop rock brasileiro que começava a despontar naquele momento como Marina Lima, Antônio Cícero (poeta, compositor e irmão de Marina), e dupla Cazuza e Frejat, vocalista e guitarrista do Barão Vermelho. Foi Ney quem chamou a atenção da mídia e do público para o então desconhecido Barão Vermelho quando gravou da banda carioca a música “Pro Dia Nascer Feliz”, em 1983. O resto, daí em diante, é história. 

Faixas

Lado A

  1. "Deixa a Menina" (Chico Buarque)  
  2. "Espinha de Bacalhau" (part. esp. Gal Costa, Severino Araújo e Orquestra Tabajara) (Fausto Nilo-Severino Araújo)          
  3. "Viajante" (Teresa Tinoco)   
  4. "Mata Virgem" (Raul Seixas-Tania Menna Barreto)
  5. "Homem com H" (Antônio Barros)  

Lado B

  1. "Amor Objeto" (Rita Lee - Roberto de Carvalho)    
  2. "Vida, Vida" (Guilherme Maia - Moraes Moreira - Zeca Barreto)   
  3. "De Marte" (Luli - Lucina)     
  4. "Folia no Matagal" (Eduardo Dusek - Luiz Carlos Góes)

 

Referências:

Ney Matogrosso: a biografia – Júlio Maria, 2021, Companhia das Letras, São Paulo, Brasil

wikipedia.org


"Deixa a Menina" 

"Espinha de Bacalhau"

   
"Viajante" 

"Mata Virgem" 

"Homem com H" 

"Amor Objeto" 

"Vida, Vida" 

"De Marte"   
 
"Folia no Matagal" 

"Homem com H" (videoclipe exibido no 
programa "Fantástico", TV Globo, em 1981;
gravado no Canecão, Rio de Janeiro)


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