“Alucinação” (Philips, 1976), Belchior




Por Sidney Falcão


Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior (1946-2017), veio a este mundo predestinado para a música. Nascido em Sobral, no Ceará, Belchior era filho de cantora de coral de igreja, neto de flautista (que também tocava saxofone), e sobrinho de tios seresteiros. No entanto, o seu pai era comerciante, um “bodegueiro”, e parecia nada ter a ver com música. Belchior dizia ter 23 irmãos, mas há controvérsias. Era provavelmente, ao todo, uns 16 irmãos (dois deles falecidos ainda na infância), todos eles frutos dos dois casamentos do pai do cantor. De qualquer forma, era uma família numerosa.

Na infância, Belchior foi cantador de feira, poeta e repentista. Aos 16 anos, entrou num convento de frades franciscanos, em Guaramiranga, onde estudou filosofia, latim, teologia e canto gregoriano. Em 1968, ingressou no curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. É na capital cearense que Belchior inicia a sua carreira artística profissional, onde tem contato com artistas que também estavam começo de carreira como Raimundo Fagner e Ednardo. Até 1970, participa de festivais de música pelo Nordeste.

Em 1971, abandona o curso de Medicina no quarto ano e decide se dedicar exclusivamente à música, partindo para o Rio de Janeiro para conseguir melhores oportunidades como artista Apesar das dificuldades que todo migrante passa ao chegar ao uma grande e estranha metrópole, Belchior consegue se integrar e fazer amizades. Naquele mesmo ano, sua canção “Na Hora do Almoço”, interpretada por Belchior, juntamente com Jorge Melo e Jorge Teles, vence o 4º Festival Universitário de MPB promovido pela TV Tupi. Isso acaba lhe rendendo um contrato com a gravadora Copacabana, que lança o primeiro compacto de Belchior com a canção “Na Hora do Almoço”, cantada por ele e acompanhado por Jorge Neri e Jorge Teles.


Belchior e Jorge Neri no 4º Festival Universitário
de MPB, em 1971.

No ano seguinte, em 1972, Belchior muda-se para São Paulo, onde para sobreviver, além de fazer shows em praças públicas, compõe trilha sonora para filmes de curta metragem. Ainda em 1972, Elis Regina (1945-1982) grava “Mucuripe”, canção de Raimundo Fagner e Belchior. Essa mesma canção seria gravada três anos mais tarde por Roberto Carlos. Em 1974, Belchior lança pela gravadora Chantecler o seu primeiro e autointitulado álbum (também chamado de Mote E Glosa), que traz a primeira versão de “À Palo Seco”. Porém, o álbum de estreia de Belchior não causa nenhuma repercussão.

A vida de Belchior começa a mudar a partir de 1975, depois que Elis Regina ouviu uma fita demo dele. Das cerca de dez canções, ela escolheu duas, “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa”. Ambas as canções foram escolhidas por Elis para o seu espetáculo Falso Brilhante, marcado para estrear no final daquele ano, e que contaria um pouco da vida da cantora gaúcha.

O espetáculo estreou em dezembro de 1975, no Teatro Bandeirantes, em São Paulo com grande sucesso de público e de crítica, e dentre as canções, justamente “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” foram as que mais chamaram a atenção de todos. O sucesso do espetáculo motivou Elis a gravar um álbum de estúdio baseado nele. Para tanto, Elis selecionou dez das quase quarenta canções do espetáculo, e “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” estavam entre as escolhidas.

Gravado em janeiro de 1976, o álbum que leva o nome do espetáculo, Falso Brilhante, foi lançado em março do mesmo ano. Como era de se imaginar, a canção “Como Nossos Pais” foi o grande sucesso do álbum. A interpretação fantástica e definitiva de Elis para “Como Nossos Pais” deixou o público de todo o Brasil perplexo. O público ficou perplexo com a interpretação e curiosos para saber quem escreveu aquela canção com uma letra tão forte, tão questionadora e desconcertante. 

O sucesso de “Como Nossos Pais” rendeu a Belchior um convite do produtor Marco Mazzola, da Philips, mesma gravadora de Elis Regina. A cantora já comentado com produtor sobre o talento do artista cearense. Após uma audição de algumas de suas canções, boa parte delas inéditas, o produtor ficou encantado com a qualidade delas. Mazzola gravou uma fita demo com Belchior para mostrar e convencer os executivos da gravadora a contratá-lo. Porém, eles rejeitaram o cantor por achá-lo feio e a voz anasalada demais. O produtor não desistiu e foi até o presidente da gravadora na época, André Midani (1932-2019), um dirigente famoso pelo faro apuradíssimo para descobrir artistas com potencial diferenciado. Midani ouviu a fita e não pensou duas vezes: contratou Belchior e incumbiu Mazzola a produzir o primeiro álbum dele pela Philips.

Para acompanhar Belchior nas gravações, Mazzola recrutou um time de músicos de alto nível, compatíveis com a qualidade do repertório selecionado para o álbum como o tecladista da banda Azymuth, José Roberto Bertrami (que ficou também responsável pelos arranjos), o baixista Paulo César Barros (do Renato & Seus Blue Caps, e bastante requisitado pelos mais diversos artistas em gravações em estúdio), os guitarristas Antenor Gandra e Rick Ferreira entre outros músicos. O álbum foi gravado em apenas três dias.


O produtor Marco Mazzola e Belchior nos anos 1970.

Lançado em junho de 1976, Alucinação, segundo álbum de Belchior, quase se chamou Populus, mas foi vetado pela Censura. Numa entrevista para a revista Pop, edição de junho de 1976, Belchior explicou o título Alucinação para o álbum: “Viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”.

A capa traz a face de Belchior, o nome e o título do álbum na diagonal, e a contracapa mostra uma arte feita pelo próprio cantor. O encarte tem de um lado as letras das músicas, e do outro uma imitação de uma nota de dez dólares, mas que vale mesmo fictícias dez líricas e que tem ao centro o rosto de Belchior. A nota de mentira tem a inscrição “In Gold We Trust” (“No Ouro Nós Acreditamos”), um trocadilho de “In God We Trust” (“Em Deus Nós Acreditamos”).

O álbum Alucinação começa com o primeiro e grande sucesso da carreira de Belchior, “Apenas Um Rapaz Latino Americano”. Com uma levada estilizada de blues, “Apenas Um Rapaz Latino Americano” liderou as paradas de sucesso das rádios de São Paulo e Rio Janeiro, e foi umas das canções mais executadas no Brasil em 1976. A canção traz um tema que norteará todas as canções ao longo do álbum que é a ruptura com os antigos conceitos e a busca pelo novo.

Em “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, os tais antigos conceitos não são necessariamente tão “antigos”. Aqui e ali nesta canção, Belchior faz citações por exemplo a Caetano Veloso, um dos líderes do movimento tropicalista que revolucionou a cultura brasileira nos anos 1960, mas que àquela altura dos anos 1970, já era algo superado na visão do cantor cearense, como nos versos provocativos “...um antigo compositor baiano me dizia / Tudo é divino, tudo é maravilhoso”. Além de ter citado “Divino Maravilhoso”, Belchior cita outra canção de Caetano, “É Proibido Proibir”: “Mas sei que tudo é proibido / Aliás, eu queria dizer que tudo é permitido / Até beijar você no escuro do cinema / Quando ninguém nos vê”. É mais uma citação e mais uma provocação de Belchior ao outrora líder do Tropicalista.


Belchior em cena do videoclipe "Apenas Um Rapaz Latino Americano". 

Belchior cita mais uma vez “Divino Maravilhoso” ao afirmar: “Mas sei que nada é divino / Nada, nada é maravilhoso / Nada, nada é secreto / Nada, nada é misterioso, não”.

Anos mais tarde, em entrevistas, Belchior destacou que a canção não era um ataque pessoal a Caetano Veloso, até porque ele reconhecia a importância do cantor baiano à cultura brasileira. Ele apenas fazia uma observação sobre o que os valores tropicalistas representavam naquele momento em que gravou a canção. No entanto, a crítica sutil de Belchior ao Tropicalismo em “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, chegava atrasada, pois antes da canção vir à luz, Caetano já havia dito em entrevistas que o movimento do qual foi uma das lideranças, já estava morto. 

O folk rock “Velha Roupa Colorida” é uma canção que anuncia a chegada de um momento novo e transformador. Foi gravada antes por Elis Regina para o seu álbum Falso Brilhante, e apresentada por ela no espetáculo de mesmo nome. A julgar pelo título, Belchior faz uma alusão aos valores do movimento hippie, que na década anterior, havia provocado uma grande transformação cultural e comportamental nos jovens em todo o mundo. Mas na cabeça de Belchior, naquele momento, já era necessária uma nova mudança, pois, como o próprio cantor diz na canção: “E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo / E precisamos todos rejuvenescer”. “Velha Roupa Colorida” faz citações a Beatles e Bob Dylan (“She's leaving home / E meteu o pé na estrada, like a rolling stone”) e uma curiosa conexão entre Edgar Alla Poe, Beatles e Luiz Gonzaga (“Como Poe, poeta louco americano / Eu pergunto ao passarinho / Black bird, assum preto, o que se faz?” ).


Detalhe da arte da contracapa do álbum Alucinação.

Outra canção de Belchior gravada antes por Elis para Falso Brilhante, “Como Nossos Pais” foi gravada pelo autor para Alucinação. A letra da canção trata sobre o momento de conflito e contradição vivenciado pela geração jovem dos anos 1960, e que na década seguinte, chegava aos 30 anos, constituindo família e assumindo responsabilidades profissionais. Libertária antes nos anos 1960, aquela geração se mostra nos anos 1970, segundo Belchior, repetindo os valores que condenava dos seus pais: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos / Feito tudo, tudo, tudo / Tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais”.

Num Brasil ainda sob regime ditatorial, “Como Nossos Pais” alerta aos jovens para que se mantenham vigilantes e cita “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola: “Por isso cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós / Que somos jovens”. Belchior trata da sua condição de migrante nordestino e da sua esperança num futuro melhor Você me pergunta / Pela minha paixão / Digo que estou encantado / Como uma nova invenção / Vou ficar nesta cidade / Não vou voltar pro sertão / Pois vejo vir vindo no vento / O cheiro da nova estação”. Faz referência aos desaparecidos políticos: “Já faz tempo / E eu vi você na rua / Cabelo ao vento / Gente jovem reunida / Na parede da memória / Esta lembrança / É o quadro que dói mais”. A canção ainda destaca que o rebelde de ontem poderá ser o reacionário de amanhã: “E hoje eu sei, eu sei / Que quem me deu a ideia / De uma nova consciência / E juventude / Está em casa / Guardado por Deus / Contando os seus metais”.


"Como Nossos Pais", imortalizada pela voz de Elis Regina (foto), reaparece em Alucinação,
desta vez na voz de seu autor, Belchior.

Em “Sujeito de Sorte”, as adversidades não obstáculos para quem é otimista e forte. A música faz referência aos momentos de dificuldade que Belchior enfrentou quando chegou ao Sudeste para realizar o sonho de construir uma carreira artística. “Como O Diabo Gosta” encerra o lado A do álbum, e nela Belchior manda um recado ao sistema opressor ao regime autoritário vigente: “E a única forma que pode ser norma / É nenhuma regra ter / É nunca fazer nada que o mestre mandar / Sempre desobedecer / Nunca reverenciar”.

“Alucinação”, faixa que dá nome ao álbum, é quem abre o lado B. Inversamente ao que o título sugere, a canção é bastante real: “A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais”. Mesmo passados tantos anos, a letra trata de assuntos que ainda continuam atuais como racismo, desigualdade social e prostituição.  A realidade nua e crua das grandes cidades seriam a “alucinação” de Belchior.

Em “Não Leve Flores”, o autoritarismo que dominava o Brasil naquela época, volta a ser alvo de Belchior. O cantor mais uma vez lembra daqueles que ousaram cruzar o caminho do regime autoritário: “E um vento forte levou os amigos / Para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos / E nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não”.  E como um recado àquele regime, Belchior diz: “O inimigo eu já conheço / Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço / A voz resiste. A fala insiste: Você me ouvirá”.

“A Palo Seco” foi originalmente gravada por Belchior em seu primeiro álbum. O título faz referência ao poema de mesmo nome escrito por João Cabral de Melo Neto (1920-1999), embora a letra da canção seja diferente do poema do poeta pernambucano, do qual Belchior era um profundo admirador. Nesta canção, Belchior manifesta um certo desencanto com a filosofia libertária hippie, e revela um sentimento anti-americano, num momento em que boa parte da América do Sul estava sob completo domínio de ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos. A canção traz um verso que mostra o perfil rebelde e inconformado de Belchior: “E eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês”.


"A Palo Seco" faz citação a poema homônimo do poeta
pernambucano João Cabral de Melo Neto.

“Fotografia 3X4” é uma canção autobiográfica, na qual Belchior conta um pouco da sua trajetória de migrante nordestino que deixou o Ceará para tentar a sorte no Rio de Janeiro como artista. Aqui, Belchior faz mais uma citação a Caetano Veloso, mas como um recado direto ao cantor e compositor baiano: “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”.

O álbum termina com “Antes do Fim”, uma canção que é praticamente uma vinheta, apenas com a voz de Belchior acompanhada de um violão e de uma harmônica. A canção é como uma saudação de despedida e um recado: “Quero desejar, antes do fim / pra mim e os meus amigos / muito amor e tudo mais / que fiquem sempre jovens / e tenham as mãos limpas / e aprendam o delírio com coisas reais”.

Contrariando os executivos da Philips que o haviam rejeitado, mas que encontrou apoio do presidente daquela gravadora na época, André Midani, e do produtor Marco Mazzola, o canto anasalado de Belchior agradou o público. Tendo “Apenas Um Rapaz Latino Americano” como primeira música de trabalho, e primeiro grande sucesso do álbum e da carreira de sua carreira, Belchior foi umas das maiores sensações da música brasileira de 1976. As outras faixas do álbum como “A Palo Seco” e “Fotografia 3X4” logo estouraram e levaram o álbum Alucinação a alcançar a marca de 500 mil cópias vendidas.

O sucesso de Belchior proporcionado pelo álbum Alucinação, logo rendeu um convite para que ele fosse para uma nova e importante gravadora que estava se instalando Brasil em 1976, mesmo ano em que o cearense havia se tornado a grande novidade da MPB. Um dado curioso é que quem estava por trás da chegada da gravadora Warner no Brasil era simplesmente André Midani, que até o início de 1976, era presidente da gravadora Philips e que foi o responsável pela contratação de Belchior. 

Midani recebeu um convite irrecusável da Warner Music norte-americana para instalar e comandar a sua filial brasileira. Com a mudança de gravadora, além de ter levado da Philips para a Warner, Gilberto Gil e Raul Seixas, Midani levou também Belchior. Na nova gravadora, Belchior lançou o seu terceiro álbum em 1977, Coração Selvagem.

Os álbuns posteriores, embora razoáveis, como próprio Coração Sevagem e Era Uma Vez Um Homem E O Seu Tempo (1979), e que chegaram a emplacar alguns sucessos, não chegaram a repetir o mesmo encanto e impacto que Alucinação, considerado por especialistas, o melhor álbum da carreira de Belchior.

Faixas
Todas as canções escritas e compostas por Belchior.

Lado A
1."Apenas Um Rapaz Latino-Americano"     
2."Velha Roupa Colorida"     
3."Como Nossos Pais"           
4."Sujeito De Sorte" 
5."Como O Diabo Gosta"      

Lado B
1."Alucinação"           
2."Não Leve Flores"   
3."A Palo Seco"          
4."Fotografia 3x4"     
5."Antes Do Fim" 

Revista Pop – junho/1976 – Edição 44, Editora Abril
Belchior Apenas um rapaz latino-americano - Jotabê Medeiros, 2017, Editora Todavia
enciclopedia.itaucultural.org.br
Wikipedia




"Apenas Um Rapaz Latino-Americano"

"Velha Roupa Colorida"


"Como Nossos Pais"


"Sujeito De Sorte"


"Como O Diabo Gosta"


"Alucinação"


"Não Leve Flores"


"A Palo Seco"


"Fotografia 3x4"


"Antes Do Fim"


"Apenas Um Rapaz Latino-Americano" 
(videoclipe para o programa 
"Fantástico", TV Globo, 1976)

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