“Caetano Veloso” (Philips, 1969), Caetano Veloso



Por Sidney Falcão

13 de dezembro de 1968. O então presidente do Brasil, Artur Costa e Silva (1899-1969), o segundo do período da Ditadura Militar, sanciona o temível Ato Institucional Nº 5, mais conhecido como AI-5. O ato dava plenos poderes ao governo ditatorial para dissolver o Congresso Nacional, cassar mandato de parlamentares, promover intervenções em estados e municípios, suspender habeas corpus, censurar previamente músicas, filmes, peças teatrais, programas de TV e jornais impressos.

Em um curto espaço de tempo, políticos tidos como opositores ao regime, artistas e intelectuais foram presos, uma verdadeira “caça às bruxas”. O movimento tropicalista, que tinha em Caetano Veloso e Gilberto Gil seus dois maiores expoentes, fazia algum tempo, vinha se tornando um incômodo para o governo ditatorial. A postura contestadora e provocativa dos dois baianos, mais os seus companheiros de movimento, estava na alça de mira dos militares. Prender Caetano e Gil era uma questão de tempo, um temor que já era admitido até mesmo pelos amigos dos cantores, como o humorista Jô Soares na época.

A gota d’água para os militares foi uma apresentação provocativa de Caetano Veloso, no dia 23 de dezembro, no Divino, Maravilhoso, programa tropicalista comandado por Caetano, Gil, Gal Costa e demais artistas tropicalistas na TV Tupi, em São Paulo. Na noite de antevéspera do Natal de 1968, Caetano aparece em rede nacional, diante das câmeras de TV, cantando a singela canção natalina, “Boas Festas”, de Assis Valente (1911-1958), segurando um revólver apontado para a sua própria cabeça. A performance bizarra de Caetano chocou os telespectadores, principalmente os mais conservadores. O número musical custaria caro para o baiano.

Programa Divino, Maravilhoso: vida curta e muita polêmica.


No dia 28 de dezembro, a Polícia Federal prende Caetano Veloso e Gilberto Gil em São Paulo. Logo são enviados para o Rio de Janeiro, e lá são confinados no quartel do 1º Exército. Passam por outros quarteis do Rio durante os dois meses seguintes. Em fevereiro de 1969, Caetano e Gil são mandados para Salvador, onde passam cinco meses presos, mas dessa vez em prisão domiciliar numa casa que alugaram no bairro da Pituba. Entrevistas, apresentações em rádio e TV estavam completamente proibidas. Eram obrigados diariamente a se dirigirem à Polícia Federal.

Impedidos de fazer shows, a situação financeira de Caetano Veloso, Gilberto Gil, mais as suas respectivas esposas, não era das melhores. Numa tentativa de ajudar os dois cantores baianos, a gravadora Philips decide lançar um álbum novo de cada um. Como estavam presos em Salvador, a gravadora envia para a capital baiana o produtor Manoel Barenbein, o arranjador e maestro Rogério Duprat (1932-2006), dois técnicos de som e equipamentos de gravação. Para fazer as gravações, Barenbein desembarcou em Salvador munido de uma autorização da Censura Federal que fora apresentada às autoridades locais, que logo liberaram Caetano e Gil para gravar.

O que Barenbein, Duprat e os técnicos vindos de São Paulo não imaginavam é que não encontrariam um estúdio de gravação adequado em Salvador. Além de raros, o que existiam eram precários para se gravar material decente para um disco. Foi então que Rogério Duprat teve uma ideia: propôs a Caetano e Gil gravarem o material para os seus respectivos discos apenas com voz e violão, acompanhados de um metrônomo, e depois o material gravado seria enviado para São Paulo, onde os outros instrumentos (baixo, guitarra, bateria, piano, órgão e orquestra) seriam inseridos. No sistema convencional de gravação, o processo é inverso: grava-se primeiro a base instrumental e posteriormente a voz. Caetano Veloso e Gilberto Gil toparam a empreitada, e as gravações ocorreram no estúdio JS, em Salvador, o mesmo estúdio em que Gil anos antes, no início da carreira, gravava jingles para publicidade.

Caetano Veloso no estúdio JS, em Salvador, gravando voz para o seu "álbum branco".


Todo o processo de gravação e mixagem do álbum de Caetano Veloso (o segundo de sua carreira), assim como o de Gilberto Gil (o terceiro do cantor), ocorreu entre os meses de abril e maio de 1969. Foram envolvidos os estúdios JS, em Salvador, o Scatena, em São Paulo, e o da gravadora Philips, no Rio de Janeiro.

Intitulado Caetano Veloso, o segundo álbum de Caetano chegava às lojas em agosto de 1969. Logo de cara, o álbum estranhamente surpreendia o público visualmente: capa completamente branca trazendo tão somente o nome do cantor ao centro em forma de assinatura. Foi uma imposição dos militares que não permitiram o uso da imagem do cantor na capa do disco. A capa branca do segundo álbum de Caetano faz um contraponto ao colorido psicodélico da capa do álbum anterior do cantor.

Musicalmente, o “álbum branco” de Caetano, é marcado pelo ecletismo, assim como o álbum anterior do cantor baiano. O repertório deste segundo álbum, inclui bossa-nova, rock psicodélico, frevo, tango e até fado. Além dessa variedade, Caetano transita entre a tradição musical popular e o experimentalismo sonoro, duas das outras características do Tropicalismo no campo da música. O “álbum branco” de Caetano Veloso, como ficou conhecido, carrega uma aura de melancolia e tristeza, um reflexo do momento difícil em que Caetano vivia por causa dos meses de prisão.

O sentimento de tristeza se mostra sutilmente na primeira faixa do álbum, “Irene”. A canção foi composta quando Caetano quando estava preso no Rio de Janeiro, e a compôs sem violão. Caetano compôs a canção pensando na sua irmã Irene, em que ele manifesta a saudade de seu riso, que servia como um alívio para superar a dor da saudade da família e o tormento da vida no cárcere: “Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui / Eu não tenho nada, quero ver Irene rir / Quero ver Irene dar sua risada”. Curiosamente, a canção traz uma falha nos seus primeiros segundos: Caetano é acompanhado por Gilberto Gil que toca violão e faz a segunda voz, porém, ele erra. Eles recomeçam do zero novamente, e a canção segue normalmente. Não se sabe o motivo, o trecho inicial com a falha no processo de gravação ao invés de ser suprimido, foi mantido na gravação, o que acabou dando um certo charme à canção.

Propaganda do "álbum branco" de Caetano Veloso na edição de
20 de setembro de 1969 da revista Manchete.


“The Empty Boat” é uma canção em inglês composta por Caetano Veloso. O começo da canção é lento e melancólico. Mas a partir da metade da canção em diante, ela ganha um pouco mais de ritmo com a entrada do baixo, da bateria e da guitarra. Esta última, executada por Lanny Gordin, surge cheia de distorções, criando uma incrível textura sonora.

Caetano recupera uma canção tradicional do folclore baiano, “Marinheiro Só”. Ela começa no ritmo de samba do recôncavo baiano, com direito a percussão feita no prato pelo sambista baiano Tião Motorista. Mais adiante, a música descamba para um rock cheio de grooves fantásticos da linha de baixo, uma bateria garantindo um ritmo dançante e uma guitarra elétrica carregada de efeitos de wah-wah.

“Lost In The Paradise” começa calma num clima que remete à bossa nova, e à medida que a canção avança, ganha um tom rítmico mais agressivo. A canção termina com naipe de metais, violinos, solos de guitarra e o canto desesperado de Caetano num ritmo dançante.

Com “Atrás do Trio Elétrico”, Caetano difunde em escala nacional o trio elétrico, invenção da dupla Dodô & Osmar, que desde 1950, anima os carnavais de Salvador, tocando frevos em cima de caminhões sonorizados transformados em palcos ambulantes. Em “Atrás do Trio Elétrico”, o guitarrista Lanny Gordin executa solos de guitarra distorcidos de rock, e cheios de feitos de wah-wah num frevo elétrico. “Atrás do Trio Elétrico” possui uma sonoridade alegre e contagiante, que destoa da aura melancólica que domina o álbum.

Dodô e Osmar, em foto da década de 1970, inventores do trio elétrico (foto à esquerda)
em 1950: inspiração para "Atrás Do Trio Elétrico".

Dos carnavais da Bahia, Caetano Veloso parte para o fado português em “Os Argonautas”, uma singela homenagem do baiano à cultura portuguesa. Caetano encarna com propriedade um fadista, com direito a sotaque português. Os arranjos muito bem trabalhados impressionam, e levam o ouvinte a ter a sensação de estar em alguma esquina de Lisboa. Caetano tomou emprestado versos de Fernando Pessoa (1888-1935), do texto “Navegar é Preciso” para emprega-los no refrão da canção: “Navegar é preciso / Viver não é preciso”. A frase antológica por sua vez, não foi uma exclusividade de Pessoa. O poeta português teria se inspirado na frase do general romano Cneu Pompeu (106–48 a.C.) que teria dito em latim: “Navigare necesse, vivere non est necesse" (“Navegar é necessário, viver não é necessário”).

Em “Carolina”, de Chico Buarque, Caetano canta de maneira calma e preguiçosa acompanhado do violão de Gilberto Gil. Da calmaria da canção anterior, Caetano se mostra altivo cantando em espanhol “Cambalache”, um tango do argentino Enrique Santos Discépolo (1901-1951), de 1934.


O guitarrista Lanny Gordin, um dos destaques do
"álbum branco" de Caetano Veloso.


Uma curiosidade na versão de Caetano para “Cambalache” é que houve algum tipo de alteração na letra: trocou-se Stavisky por Toscanini, Carnera por Ringo Starr, e Don Chico por John Lennon. Na versão original é: “Que falta de respeto / Que atropello a la razón / Cualquiera es un señor / Cualquiera es un ladrón / Mezclaos con Stavisky / Van Don Bosco y la Mignón / Carnera y Napoleón / Don Chicho y San Martín”. Na versão de Caetano: “¡Qué falta de respeto / Qué atropello a la razón! / Cualquiera es un señor / Cualquiera es un ladrón... / Mezclao con Toscanini / Ringo Starr y Napoleón / Don Bosco y La Mignon / John Lennon y San Martín...”.

Embora composta por Caetano Veloso, “Não Identificado” foi gravada originalmente por Gal Costa em seu primeiro álbum solo, lançada meses antes do “álbum branco” do cantor baiano. A versão de Gal é uma bossa pop, enquanto que a de Caetano é uma canção pop com “pinceladas” de psicodelismo graças à guitarra de Lanny Gordin, cheia de distorção e efeitos de wah-wah. Na sequência, “Chuvas de Verão”, um samba-canção de Fernando Lobo (pai do cantor e compositor Edu Lobo) que trata de desilusão e fim de amor.

O experimentalismo tropicalista segue nas duas últimas faixas do álbum. “Acrilírico” é um poema de Caetano, cujo jogo de palavras e neologismos são inspirados na poesia concreta, uma das influências do Tropicalismo. O título do poema é uma junção das palavras “acrílico” e “lírico”. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jussara Moraes, declamam os versos, tendo como pano de fundo musical, arranjos de orquestra que dão todo um clima de trilha sonora cinematográfica, incluindo colagens sonoras: sons de gelo no copo de vidro, sons de buzina, de carros e até de um peido, que teria sido dado pelo maestro e arranjador Rogério Duprat.


Maestro e arranjador Rogério Duprat


“Alfômega”, de Gilberto Gil, é quem fecha o “álbum branco” de Caetano Veloso, uma canção pop em que Caetano conta com participação de Gil nos vocais, além do violão. Os versos da música apresentam neologismo estranhíssimos “analfomegabetismo” e “somatopsicopneumático”. No livro Gilberto Gil – Todas as letras, de Carlos Rennó, há um depoimento de Gil em que ele explica o significado dessas estranhas palavras:

“O ‘analfomegabetismo’ – o analfabetismo cósmico, a nossa profunda ignorância acerca do universo aberto, vasto e vago do esoterismo; o mistério sobre isso. E o ‘somatopsicopneumático’ – a trindade, a soma de: soma, corpo, carma, encarnação do homem; psique, alma; e neuma (do grego sopro), espírito. A consciência disso.

Os termos vêm do procedimento concretista de ligar palavras e inventar neologismos compostos. Começando a estudar religiões orientais e ciências ocultas, eu convivia com palavras não popularmente difundidas, algumas de cujo significado até então eu não sabia (como ‘Neuma’, ‘neumático’; ‘soma’ eu já conhecia dos rudimentos de anatomia dados no ginásio) e que eram novidade para mim.

A música foi feita na Bahia quando encontro o Rogério Duarte e o Walter Smetak, e se dá a transposição desses interesses intelectuais e espirituais em minha música. ”

Anos mais tarde, “Alfômega” foi inspiração para a banda Pato Fu compor “A Necrofilia da Arte”, presente no álbum Televisão de Cachorro (1998).

Após as gravações do seus respectivos discos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, mais o empresário dos dois, negociaram com os militares a permissão para a realização de dois shows. O objetivo era arrecadar fundos para custear a viagem dos artistas para o exílio no exterior. As negociações foram mediadas por um comandante da Polícia Federal. Caetano e Gil conseguiram a permissão, e nos dias 20 e 21 de julho de 1969, os dois se apresentaram juntos no Teatro Castro Alves, em Salvador. Contaram com Os Leif’s como banda de apoio, formada por quatro músicos muito jovens que nem se quer haviam chegado aos 20 anos de idade, dentre os quais o guitarrista Pepeu Gomes e o baterista Jorginho Gomes, futuros membros dos Novos Baianos. As apresentações de Caetano e Gil foram gravadas ao vivo precariamente, e lançadas no álbum Barra 69, em 1972, um registro muito ruim em termos de gravação.

Caetano e Gil no show de despedida, no Teatro Castro Alves, em Salvador, antes da partida
para o exílio em Londres, na Inglaterra.


No dia 27 de julho, Caetano Veloso, Gilberto Gil e suas respectivas esposas, partiram para o exílio em Londres. Quando o “álbum branco” de Caetano, e o terceiro e autointitulado álbum de Gilberto Gil foram lançados em agosto do mesmo ano, os dois cantores baianos já estavam fora do Brasil. Os artistas só voltaram em definitivo ao Brasil, em 1972, quando naquele mesmo ano, cada um lançou álbuns antológicos: Caetano Veloso com Transa, e Gilberto Gil com Expresso 2222.

Faixas

Todas as faixas foram compostas por Caetano Veloso, exceto onde indicado.

Lado 1            
  1. “Irene”             
  2. “The Empty Boat” 
  3. “Marinheiro Só” (Tradicional. Adaptação e arranjo: Caetano Veloso)
  4. “Lost In the Paradise”
  5. “Atrás do Trio Elétrico”         
  6. “Os Argonautas”        
Lado 2
  1. “Carolina” (Chico Buarque de Hollanda)
  2. “Cambalache” (E. S. Discépolo)
  3. “Não Identificado"       
  4. “Chuvas de Verão” (Fernando Lobo)
  5. “Acrílico” (Rogério Duarte, Rogério Duprat, Veloso)
  6. “Alfomega” (Gilberto Gil)


Caetano Veloso - vocais
Gilberto Gil - Violão , vocal em 12
Lanny Gordin - guitarra elétrica , violão [Guitarra portuguesa]
Sérgio Barroso - baixo elétrico
Wilson das Neves - bateria
Chiquinho de Moraes - piano e órgão
Rogério Duprat – arranjos

Referências:
Gilberto Gil – Todas as letras – Carlos Rennó, 1996, Companhia das Letras
Tropicália: A História de uma Revolução Musical – Carlos Calado, 1997, Editora 34
Caetano - Uma Biografia - O Mais Doce Bárbaro dos Trópicos - Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, 2017, Editora Seoman
caetanoveloso.com.br
caetanocompleto.blogspot.com
Wikipedia



“Irene”



 
“The Empty Boat”



“Marinheiro Só”



“Lost in the Paradise”
  


“Atrás do Trio Elétrico”



“Os Argonautas” 



“Carolina” 



“Cambalache” 



“Não Identificado"  



“Chuvas de Verão” 



“Acrílico” 



“Alfomega” 



Comentários

  1. Que ótimo texto, esse é um dos meus grandes favoritos do Caetano e da vida! Obrigado

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O "álbum branco" de Caetano é também um dos meus favoritos da discografia dele, apesar de guardar uma melancolia devido às circunstâncias em que foi gravado. Obrigado pelo seu comentário.

      Excluir
  2. Reinaldo Azevedo me trouxe aqui,explico,ele tocou ''Cambalache'' dois dias seguidos e, eu quis conhecer melhor a gravação da música,muito boa a matéria sobre o álbum.

    ResponderExcluir

Postar um comentário