“Os Mutantes” (1968, Polydor), Mutantes


Formado em 1965, em São Paulo, o sexteto O’Seis chegou ao fim um ano depois e com um compacto (single) da música “Suicida” gravado que vendeu apenas duas centenas de cópias, Raphael Villardi (vocais), Luiz Pastura (bateria) e Mogguy (vocais) deixaram o grupo, enquanto que a outra metade da banda, Arnaldo Baptista (baixo), Rita Lee (vocais) e Sérgio Dias Baptista (guitarra), decidiram se manter juntos e seguir a carreira como um trio. 

O cantor, apresentador de TV e amigo do trio, Ronnie Von, batizou o novo grupo de Os Mutantes. Em outubro de 1966, a convite de Ronnie Von, Os Mutantes foram se apresentar no programa que ele comandava na TV Record, O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Logo se tornaram atração fixa do programa. Porém, no começo de 1967, o trio deixou a TV Record por discordar das mudanças propostas pela direção do programa de Ronnie Von. 

Naquele mesmo ano de 1967, Os Mutantes conhecem o maestro e arranjador Rogério Duprat, que indica o grupo a Gilberto Gil, que naquele momento, estava fascinado com a psicodelia do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Gil tinha em mente misturar o experimentalismo e contemporaneidade do trabalho dos Beatles com a tradição dos ritmos populares da música brasileira. E para pôr em prática sua ideia, o cantor baiano estava à procura de uma banda de rock para gravar com ele a música “Domingo no Parque” e inscrevê-la no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Gil e Os Mutantes defenderam “Domingo no Parque” no festival e ficaram em 3º lugar. A parceria com Gil aproxima Os Mutantes do nascente Tropicalismo, movimento liderado Gil e Caetano que revolucionaria a música popular brasileira. 


Gilberto Gil com os Mutantes participando do 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967,
com a canção "Domingo no Parque".

No começo de 1968, Os Mutantes assinam contrato com a Polydor por indicação do produtor Manoel Barenbein. Com produção de Barenbein e arranjos de Rogério Duprat, o autointitulado álbum de estreia dos Mutantes é lançado em junho de 1968. O primeiro álbum dos Mutantes mostra uma perfeita sintonia entre o trio paulistano, o produtor Barenbein e o maestro Duprat. 

Os Mutantes, o álbum, estava completamente conectado com as vanguardas da música pop internacional da época. Arnaldo, Rita e Sérgio puderam dar vasão a toda sua criatividade e rebeldia durante a gravação do seu primeiro álbum, contando com Barenbein e Duprat garantindo a retaguarda. De distorção de guitarra a uso de bomba de inseticida, passando por colagens sonoras e até voz gravada ao contrário, Os Mutantes era totalmente diferente de qualquer disco gravado por uma banda de rock no Brasil até então. Enquanto as bandas do já decadente movimento Jovem Guarda praticavam uma música pop cafona, “melosa”, ingênua e de fácil consumo, os Mutantes estavam dez passos à frente: eram mais rebeldes, questionadores, irreverentes e praticavam um tipo de música mais transgressora. 

A transgressão e o experimentalismo propostos pelo trio já aprecem na faixa que abre o álbum Os Mutantes, “Panis Et Circenses”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, e que numa tradução do latim direta, seria “Pão e Circo”, cuja letra é uma crítica ao conservadorismo e o conformismo das classes mais abastadas. Um trecho da letra faz uma alusão velada à maconha: "Mandei plantar / Folhas de sonho no jardim do solar". “Panis Et Circenses” possui colagens sonoras e efeitos de estúdio curiosos como a rotação da música que diminui bruscamente como se o aparelho de som estivesse com defeito, mas que logo volta tocar normalmente. A música termina com ruídos copo e talheres, e de gente jantando ao som da   da valsa "Danúbio Azul", de Johann Strauss (1825-1899), numa clara provocação à soberba das classes sociais mais elevadas. Um mês após o lançamento do álbum de estreia dos Mutantes, a faixa “Panis Et Circenses” foi incluída do disco-manifesto tropicalista Tropicália: ou Panis et Circencis, que reuniu no disco um grupo de artistas do Tropicalismo como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Nara Leão e os próprios Mutantes. 


Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1968: autores de "Panis et "Circenses".


Na faixa seguinte, os Mutantes recriam uma canção de Jorge Ben, “A Minha Menina”. A música começa com o próprio Jorge Ben, ilustre convidado, dizendo: “Agora tosse, todo mundo tossindo! ”. Jorge dá início à música com a sua levada inconfundível ao violão, seguido depois pelo riff de guitarra cheia de distorção de Sérgio Dias, acompanhados por percussão criando um misto de samba e rock. 

“O Relógio” começa num ritmo calmo com Rita Lee cantando com uma voz doce e hipnótica. O primeiro trecho da canção traz um verso bem singelo: “Eu dei corda e pensei / Que o relógio iria viver / Pra dizer a hora / De você chegar”. A calmaria dá lugar a um ritmo mais agressivo e roqueiro com teor psicodélico com guitarra, baixo e bateria, como se fosse uma outra música para mais à frente encerrar-se com a mesma calmaria do início da canção. 

“Adeus Maria Fulô” é mais uma regravação presente neste álbum de estreia dos Mutantes. Composta por Sivuca e Humberto Teixeira, foi originalmente gravada em 1951 como um baião por Carmélia Alves em dueto com seu marido, o cantor Jimmy Lester. A versão dos Mutantes começa com cantos de pássaros e uma cantoria sertaneja ao fundo e distante como introdução. O baião da versão original deu lugar a um samba de terreiro com forte ênfase na percussão. 

Em “Baby”, os Mutantes fazem uma versão completamente debochada da canção composta por Caetano Veloso e que ficou imortalizada com Gal Costa. Os Mutantes regravariam novamente essa canção dois anos depois, só que em inglês e numa versão em ritmo de bossa nova e num tom mais levado à sério, durante uma passagem dos Mutantes em Paris, na França, onde gravaram material para um álbum destinado ao mercado internacional, mas que acabou sendo engavetado pela Polydor e só lançado em 2000. 

“Senhor F” mistura jazz antigo com a psicodelia dos Beatles. Traz como grande curiosidade a pianista Clarice Leite Dias Baptista, que era nada mais nada menos que a mãe de Arnaldo e Sérgio Dias. É ela que faz os solos de piano na introdução da música.  
Os Mutantes apresentam na faixa seguinte outra releitura de música, e desta vez é com “Bat Macumba”. A versão dos Mutantes dá destaque à percussão e à distorção estranha e aguda de Cláudio César, irmão de Arnaldo e Sérgio. 

“Les Premier Bonheur Du Jour”, de Frank Gerald e Jean Renard, foi gravada anteriormente por Françoise Hardy. Os Mutantes a regravaram para o seu primeiro álbum, mas optou regravá-la em francês, idioma original da canção. Rita Lee é quem canta e os irmãos Baptista fazem os vocais de fundo. A curiosidade fica por conta do emprego de uma bomba de Flit, usada na época para insetos, e que na música foi utilizada para simular um chimbau. Quem toca o tal “instrumento musical”, é Rita Lee que também além de cantar, tocou flauta doce.

Os Mutantes, da esquerda para a direita: Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias.


“Trem Fantasma”, uma parceria de Caetano Veloso e Os Mutantes, é uma viagem psicodélica musical num trem fantasma de um parque de diversões que começa em ritmo de percussão de música hindu. Os Mutantes fazem uma bem entrosada harmonização vocal, enquanto que Rogério Duprat fez ótimos arranjos de metais. 

Diferente de “Les Premier Bonheur Du Jour”, gravada no idioma original francês, “Tempo no Tempo”, é uma versão em português de “Once Was A Time I Throught”, do quarteto norte-americano The Mamas & The Papas. Os Mutantes começam como um coral cantando um cântico católico. O estalar de dedos marca o tempo e o ritmo da música.

Quem fecha o alvo é “Ave Gengis Khan”, de autoria dos Mutantes, que une música pop psicodélica e experimentalismo. A música instrumentalmente é recheada de caprichosa percussão, distorções rasgadas de guitarra de Sérgio Dias, solos alucinantes de órgão elétrico de Arnaldo Baptista, e uma outra grande curiosidade: o canto de lírico de um tenor que se ouve é de César Dias Baptista, pai de Arnaldo e Sérgio. César Dias Baptista era cantor lírico, e gravou o seu canto para o álbum dos Mutantes. No entanto, o canto do cantor lírico aparece no álbum em rotação ao contrário propositalmente, criando uma interessante textura sonora ao fundo da base instrumental. 

Por sua proposta ousada e vanguardista, Os Mutantes é considerado um dos mais importantes discos já gravados no Brasil. E não só isso, despertou ao longo do tempo o interesse de colecionadores e fãs estrangeiros de música psicodélica. O álbum ficou em 9º lugar na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasil da edição brasileira da revista Rolling Stone.

Faixas
  1. "Panis et Circenses"  (Gilberto Gil - Caetano Veloso)
  2. "A Minha Menina"  (Jorge Ben Jor)
  3. "O Relógio" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
  4. "Adeus Maria Fulô" (Humberto Teixeira - Sivuca)
  5. "Baby" (Caetano Veloso)
  6. "Senhor F" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
  7. "Bat Macumba" (Caetano Veloso - Gilberto Gil)
  8. "Le Premier Bonheur du Jour" (Frank Gérald - Jean Renard)
  9. "Trem Fantasma" (Caetano Veloso - Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
  10. "Tempo no Tempo”(“Once Was a Time I Thought”) (John Phillips - Versão: Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
  11. "Ave Gengis Khan" (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)

Os Mutantes: Arnaldo Baptista (baixo, teclados e voz), Rita Lee (voz, flauta doce e percussão) e Sérgio Dias (guitarras e voz).





"Panis et Circenses"




"A Minha Menina"




"O Relógio"




"Adeus Maria Fulô"




"Baby"




"Senhor F"




"Bat Macumba"




"Le Premier Bonheur Du Jour"




"Trem Fantasma"




"Tempo no Tempo"




"Ave Gengis Khan"



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