Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém (BMG, 1988), Engenheiros do Hawaii

Por Sidney Falcão

Após o relativo sucesso de A Revolta dos Dândis (1987) e da extensa Infinita Tour, os Engenheiros do Hawaii evoluíram artisticamente, refinando sua presença de palco. Humberto Gessinger consolidou-se no baixo, enquanto Augusto Licks desenvolveu uma estética peculiar, evocando a imagem de Clark Kent—um contraste marcante frente à estética despojada do rock alternativo da época. Um momento decisivo foi a apresentação no festival Alternativa Nativa, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, em julho de 1988. Na ocasião, a banda demonstrou vigor de palco superior ao Capital Inicial, recebendo elogios da crítica e consolidando-se como uma das formações mais consistentes ao vivo no Brasil. 

A construção de um novo som 

Com a reputação consolidada no cenário nacional, os Engenheiros do Hawaii iniciaram, em julho de 1988, a gravação de seu terceiro álbum de estúdio, Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém. As gravações do seu terceiro álbum ocorreram nos estúdios RCA, em São Paulo, sob a produção de Luiz Carlos Maluly, que substituiu Reinaldo Barriga, responsável pelos discos anteriores da banda. A mudança no comando da produção trouxe um novo direcionamento sonoro, mais encorpado e com maior destaque para as distorções da guitarra de Augusto Licks. Essa transformação foi impulsionada pela adoção de um amplificador Mesa Boogie, substituindo o Fender Twin Reverb, permitindo ao guitarrista explorar uma paleta tímbrica mais versátil e agressiva. 

Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém reflete o amadurecimento da banda após a intensa Infinita Tour, período em que Humberto Gessinger consolidou sua performance como baixista e Licks aprimorou sua abordagem para preencher o som do trio. A experiência adquirida na estrada influenciou diretamente o processo criativo, com Gessinger exercendo maior controle sobre os arranjos e até registrando ideias de bateria em fita antes das sessões de estúdio. Esse cuidado com os detalhes reforça o caráter meticuloso da produção, que resultou em um disco coeso e marcante. 

Musicalmente, Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém apresenta uma fusão equilibrada entre o peso das guitarras e a sofisticação melódica, sem perder a identidade característica da banda. O uso de sintetizadores e efeitos de delay insere elementos contemporâneos, contrastando com a sonoridade predominantemente folk do álbum anterior. O resultado é um registro que amplia as possibilidades do grupo, consolidando sua evolução artística sem renegar as raízes. 

Engenheiros do Hawaii em 1988: Carloz Maltz, Humberto Gessinger e Augusto Licks.


Entre a ironia e a existência 

Se no aspecto musical Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém aponta para um rock mais direto e encorpado, liricamente, Humberto Gessinger mantém a essência que moldou os Engenheiros do Hawaii: um olhar existencialista, uma crítica social afiada e uma ironia que não poupa nem o próprio meio musical. A faixa-título sintetiza essa postura, expondo, com sarcasmo, as contradições e influências externas que ditam comportamentos. A introdução, com fragmentos de vozes inaudíveis interrompidos pela risada de Gessinger, já sugere o tom provocador do disco, como se ironizasse a cacofonia de discursos impostos ao indivíduo. 

“Cidade em Chamas” aposta em uma sonoridade densa, marcada pelo uso de efeitos pré-gravados, como passos de tropa e sirenes, que intensificam a sensação de caos urbano descrita na letra. O grande êxito do álbum, “Somos Quem Podemos Ser” explora a tensão entre destino e escolhas pessoais. A melodia delicada contrasta com a inquietação da letra, que questiona as imposições da vida e o conformismo. O arranjo inovador conta com uma guitarra Roland G-505 conectada ao sintetizador Roland GR-300, recurso utilizado por Augusto Licks para criar texturas sonoras que remetem a teclados, adicionando profundidade ao instrumental. 

“Sob o Tapete”, a primeira parceria entre Gessinger e Licks, já deixa clara a crescente influência do guitarrista. O arranjo se sustenta na distorção cristalina do Mesa Boogie e no uso do EBow, que estende as notas e intensifica o tom dramático da faixa. Em "Desde Quando?", Gessinger confronta valores sociais, questionando conceitos como progresso, verdade e controle. A letra expõe ilusões e contradições, sugerindo que recomeçar pode ser mais sensato do que insistir no erro. 

A balada folk rock "Nunca se Sabe" propõe uma reflexão sobre escolhas pessoais e dilemas morais, abordando temas como liberdade e incerteza. A canção exalta a autonomia de quem prefere trilhar caminhos imprevisíveis a agir contra seus princípios. Já "A Verdade a Ver Navios" atira contra a hipocrisia e a falta de compromisso com a verdade, expondo promessas vazias, injustiças recorrentes e a apatia diante das adversidades. “Tribos e Tribunais” adota um tom mais agressivo, tanto na execução instrumental quanto na temática, traduzindo embates ideológicos e culturais em riffs cortantes e versos incisivos. 

"Pra Entender" destaca a importância da percepção sensorial para compreender a vida e a realidade, enquanto "Quem Diria?" retrata o fim inesperado de um relacionamento, marcado por expectativas frustradas e a constatação tardia de um desconhecimento mútuo. 

O encerramento do disco fica por conta de “Variações sobre um Mesmo Tema”, peça dividida em três partes que realça a faceta progressiva do trio. A segunda seção, cantada por Licks, marca a primeira vez que sua voz assume o protagonismo em um disco dos Engenheiros, um detalhe simbólico da evolução da dinâmica interna da banda. 

Projeto gráfico: crítica e provocação 

A identidade visual de Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém segue a mesma verve provocativa que caracteriza os Engenheiros do Hawaii. Concebida pelo baterista Carlos Maltz, a capa ostenta um fundo vermelho, com símbolos pretos e dourados que evocam a estética do Terceiro Reich. A escolha, no entanto, não glorifica o regime totalitário, mas subverte seus signos: a suástica é substituída pelo símbolo da paz, sugerindo como até mesmo ideais libertários podem ser manipulados para fins opressores. A referência ao filme Pink Floyd – The Wall reforça essa crítica, traçando um paralelo entre idolatria cega e alienação. 

A contracapa amplia essa reflexão ao reaproveitar a arte do álbum anterior, sugerindo um ciclo contínuo de produção musical e reafirmando a autorreferência como parte da identidade do grupo. Outra mudança significativa aparece nas fotos internas: o mapa do Brasil substitui o tradicional Pampa gaúcho, sinalizando a transição da banda para um olhar mais nacional – uma mudança que se consolidaria com a ida para o Rio de Janeiro. 

Encarte do álbum Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém.


Álbum que dividiu a crítica e conquistou o público 

Lançado em dezembro de 1988, meio ao crescimento da popularidade dos Engenheiros do Hawaii, Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém dividiu opiniões na crítica especializada. Se por um lado evidenciava o amadurecimento da banda e a evolução técnica de Augusto Licks, por outro, foi acusado de repetir fórmulas já exploradas em A Revolta dos Dândis. André Forastieri, do jornal Folha de S.Paulo, sintetizou essa ambivalência ao afirmar que os Engenheiros eram “a banda que todos adoram odiar”, reconhecendo, porém, a solidez instrumental do disco. 

Na contramão das críticas negativas, Arthur Dapieve, do Jornal do Brasil, classificou a banda como “a melhor de garagem e de country (pampa?) rock do Brasil”, destacando a coesão sonora do trabalho. No Rio Grande do Sul, o jornal Zero Hora enfatizou a maturidade artística do trio, reforçando a identidade marcante do álbum. 

O público, no entanto, não titubeou. Impulsionado pelos singles “Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém” e “Somos Quem Podemos Ser”, o disco teve forte execução nas rádios e sustentou a bem-sucedida turnê Variações sobre a Mesma Tour, garantindo à banda seu segundo disco de ouro, com mais de 100 mil cópias vendidas. 

Augusto Licks e Humberto Gessinger sem show dos Engenheiros do Hawall no
ginásio Gigantinho, em Porto Alegre, em 1989.


O legado de Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém 

Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém marcou um ponto de inflexão na trajetória dos Engenheiros do Hawaii. O álbum consolidou o trio como uma unidade coesa, equilibrando peso e melodia sem abrir mão de sua estética autorreferencial. Humberto Gessinger manteve sua verve crítica e existencialista, utilizando a ironia como ferramenta para questionar a sociedade e o próprio universo musical. 

Se parte da imprensa viu redundância em relação ao disco anterior, o público enxergou amadurecimento e identidade. Para os fãs, foi a confirmação de que os Engenheiros tinham encontrado seu espaço e estavam prontos para ampliar sua influência. No fim, Ouça o que Eu Digo: Não Ouça Ninguém se tornou mais do que um título — tornou-se um convite impossível de ignorar.

 

Faixas

Todas as faixas são de autoria de Humberto Gessinger, exceto as indicadas.

 

Lado A 

1."Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém"                   

2."Cidade Em Chamas"                            

3."Somos Quem Podemos Ser"                             

4."Sob O Tapete" (Humberto Gessinger / Augusto Licks)

5."Desde Quando?"                    

6."Nunca Se Sabe" 

                           

Lado B 

1."A Verdade a Ver Navios"                     

2."Tribos e Tribunais" (Humberto Gessinger / Augusto Licks)     

3."Pra Entender"                         

4."Quem Diria?"                          

5."Variações Sobre Um Mesmo Tema" (Humberto Gessinger / Augusto Licks)

 

Engenheiros do Hawaii: Humberto Gessinger: "voz, baixo (modelo Rickenbacker 4003), guitarra (modelo Ibanez "George Benson") e violão), Augusto Licks (guitarras (modelos Roland G-505 e Gibson Les Paul), violão (modelo Martin customizado), piano (em "A Verdade a Ver Navios") e voz (em "Variações sobre um Mesmo Tema")) e Carlos Maltz (bateria).


Ouça na íntegra o álbum 
Ouça O que Eu digo: 
Não Ouça Ninguém


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