A Voz do Samba (Philips, 1975), Alcione


Por Sidney Falcão

Alcione Dias Nazareth, ou simplesmente Alcione, poderia ter seguido a carreira do pai, mestre de banda da Polícia Militar do Maranhão, e se tornado uma musicista erudita. Ou, quem sabe, uma professora primária, profissão para a qual chegou a se formar. Mas a voz que possuía – potente, encorpada, de timbre inconfundível – apontava outro caminho. Desde criança, encantava familiares e amigos com sua habilidade natural para cantar. Aos 12 anos, subiu ao palco pela primeira vez, substituindo a crooner de uma orquestra local. A partir dali seu destino estava selado. 

Determinada a transformar o talento em carreira, Alcione trocou São Luís, sua cidade natal, pelo Rio de Janeiro em 1967, aos 20 anos. A mudança não foi fácil: para se sustentar, trabalhou como balconista em uma loja de discos. Mas a música sempre esteve em primeiro plano. Infiltrou-se no circuito de bares e casas noturnas, tornando-se presença frequente no Beco das Garrafas, lendário reduto da bossa nova. Também participou de programas de calouros, como A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti (1923-1986), onde sua voz grave e expressiva não passou despercebida. 

O reconhecimento veio gradualmente. Após temporadas em países da América Latina e na Europa, Alcione retornou ao Brasil e firmou-se na cena carioca. Sua grande virada aconteceu no início dos anos 1970, quando Jair Rodrigues (1939-2014) a apresentou ao produtor Roberto Menescal, então executivo da Polygram. Impressionado com a força vocal e a interpretação visceral da cantora, Menescal a contratou em 1972. Os primeiros compactos vieram logo depois, preparando o terreno para sua estreia em LP. 

A Voz do Samba em doze faixas

Intitulado A Voz do Samba, o álbum de estreia de Alcione traz uma seleção de sambas que vão da celebração à introspecção, passando por crônicas do cotidiano e manifestações de orgulho cultural. O timbre potente e a interpretação carregada de emoção de Alcione fazem deste disco um cartão de visitas irretocável.

"História de Pescador", samba do memorável Candeia (1935-1978), abre os trabalhos com bom humor. A letra brinca com os exageros típicos de quem conta vantagens, embalada pelo coro e por uma batida na palma da mão que convida o ouvinte à roda de samba. Alcione entra segura, dona da narrativa, transformando o conto em espetáculo. A faixa seguinte, "O Surdo" foi a primeira música de trabalho do disco – e não à toa: poucos artistas conseguem criar um momento tão visceral com voz e percussão. O surdo bate como um coração aflito, e Alcione despeja sua dor com a maestria de quem sabe que o samba também é desabafo. 

Composta pelo mestre do samba-soul Carlos Dafé, "Acorda Que Eu Quero Ver" é um samba malandro que retrata a ressaca física e moral de um boêmio que precisa encarar a dura realidade após uma noite de farra. O tom de lamento é realçado pelo arranjo, que enfatiza a sensação de ressaca e conformismo. "Aruandê", dos sambistas baianos Edil Pacheco e Nelson Rufino, enaltece a cultura afro-brasileira em uma exaltação vibrante da música como força transformadora. O canto ganha contornos espirituais, reafirmando o papel do samba na construção da identidade coletiva. "Batuque Feiticeiro", outro samba de Candeia presente no álbum, pulsa com energia e swing, destacando a flauta que serpenteia ao redor da melodia, enquanto Alcione conduz a festa como uma sacerdotisa do ritmo. Mais um samba da Bahia, "Espera", de Batatinha (1924-1997) e Ederaldo Gentil (1943-2012), acalma os ânimos e traz um samba-canção sofisticado, carregado de melancolia. A espera pelo amor se torna um suplício, e a interpretação de Alcione amplifica o desespero da letra, culminando em versos de cortar o coração. 

A jovem Alcione nos anos 1970: força vocal e interpretação visceral
impressionaram o produtor Roberto Menescal. 

"Não Deixe o Samba Morrer" é o grande clássico do álbum. O apelo pela preservação do samba se mistura à urgência emocional da interpretação, transformando a faixa em um hino que atravessa gerações. Tornou-se um grito de alerta e resistência. Aqui, o samba não é apenas um ritmo – é uma missão: "Quando eu não puder pisar mais na avenida / Quando as minhas pernas não puderem aguentar / Levar meu corpo junto com meu samba / O meu anel de bamba / Entrego a quem mereça usar"; 

"Etelvina, Minha Nega" tem um sabor especial por ter sido composta pelo pai da cantora, João Carlos Nazareth (1911-1986), maestro e trompetista da banda da PM no Maranhão. A canção presta tributo a uma mulher que hipnotiza a roda de samba, enquanto os sopros evocam as fanfarras maranhenses, criando um elo afetivo e sonoro entre Alcione e suas raízes. 

"É Amor... Deixa Doer" aborda a desilusão amorosa com a dignidade que o samba exige. Alcione canta sobre a saudade e a resignação de quem ainda ama, mas precisa seguir em frente, com a dor servindo de combustível para uma interpretação arrebatadora. Do genial Ismael Silva (1905-1978), "Todo Mundo Quer" brinca com a ideia de um trabalho idealizado, sem esforços ou compromissos, refletindo um desejo universal. O ritmo descontraído reforça a leveza da faixa, resultando em um samba espirituoso e divertido. 

"Até o Dia de São Nunca" é um recado definitivo para quem um dia zombou ou menosprezou. A despedida vem com um quê de ironia e aprendizado, consolidando a força da intérprete em traduzir emoções em melodia. 

O álbum chega ao fim com um medley que une "Samba em Paz", de Caetano Veloso, e "A Voz do Morro", de Zé Keti (1921-1999), sintetizando a essência do disco. Caetano começa reflexivo, exaltando o poder transformador do samba, enquanto Zé Keti conduz a virada para um clímax apoteótico. Alcione fecha seu debut com imponência, reforçando que sua voz já era – e continuaria sendo – um dos pilares do samba. 

Lançado em 1975, A Voz do Samba teve direção artística de Roberto Menescal e produção de Roberto Sant’Ana. O álbum foi concebido para posicionar Alcione no mercado do samba, à época dominado por nomes como Clara Nunes (1942-1983), Martinho da Vila e Paulinho da Viola. A gravadora inicialmente apostou em "O Surdo" como carro-chefe do disco, mas a faixa não chegou a ser um grande sucesso. Foi só quando "Não Deixe o Samba Morrer" começou a tocar insistentemente nas rádios que o álbum deslanchou. No início de 1976, a canção alcançou as primeiras posições das paradas e permaneceu lá por mais de vinte semanas. 

Além de revelar Alcione para o grande público, A Voz do Samba ajudou a consolidar um novo perfil de intérprete feminina no gênero. Seu canto dramático, mesclando a expressividade dos boleros com a cadência do samba, criou uma assinatura inconfundível. Se A Voz do Samba foi o primeiro passo rumo ao estrelato, os álbuns seguintes consolidaram sua trajetória, tornando Alcione uma das maiores intérpretes da música brasileira. O que começou como uma ousadia – uma jovem maranhense tentando a sorte na noite carioca – tornou-se um dos capítulos mais sólidos da história do samba.

Faixas

Lado A

1. ”História de Pescador” ( Candeia )

2. “O Surdo” ( Totonho / Paulinho Resende )

3.”Acorda Que Eu Quero Ver” ( Carlos Dafé )

4.”Aruandê” ( Edil Pacheco / Nelson Rufino )

5.”Batuque Feiticeiro” ( Candeia )

6.”Espera” ( Batatinha / Ederaldo Gentil )


Lado B

7.”Não Deixe O Samba Morrer” ( Édson Conceição / Aloísio )

8.”Etelvina Minha Nega” ( João Carlos Nazareth )

9.”É Amor... Deixa Doer” ( Mita )

10.”Todo Mundo Quer” ( Ismael Silva )

11.”Até O Dia de São Nunca” ( Edil Pacheco / Paulinho Diniz )


12. “Samba Em Paz” ( Caetano Veloso ) /”A Voz do Morro”( Zé Keti )


Referências:

acervo.oglobo.globo.com

wikipedia.org



Ouça na íntegra o álbum 
A Voz do Samba

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