Lar das Maravilhas (Som Livre,1975), Casa das Máquinas
O início dos anos 1970 foi um período de transição para o rock brasileiro. A Jovem Guarda havia perdido força como movimento, enquanto bandas como Os Mutantes e Novos Baianos experimentavam sonoridades mais elaboradas, misturando psicodelia, música brasileira e influências internacionais. Nesse cenário, Os Incríveis, um dos grupos mais bem-sucedidos da década anterior, enfrentavam dificuldades para se reinventar. A pressão da gravadora RCA por mais músicas ufanistas, no estilo do hit “Eu Te Amo, Meu Brasil”, causou tensões internas que levaram à saída de dois membros fundamentais: o saxofonista e tecladista Manito (1944-2011) e o baterista Netinho.
Decidido a continuar no meio musical, Netinho reuniu músicos experientes para um novo projeto. Entre eles estavam Aroldo Santarosa, guitarrista e vocalista que havia tocado com Os Incríveis; o jovem guitarrista Piska (1951-2011); Pique Riverte (1946-2000), tecladista e saxofonista com passagens pelo The Flyers e pelo RC7 (banda de apoio de Roberto Carlos); e o baixista Carlos Geraldo, o Cargê (1946-2020), que já havia trabalhado com artistas como Wanderléa.
Inicialmente, o grupo adotou o nome Os Novos Incríveis e seguiu na estrada tocando clássicos do rock, de Elvis Presley (1935-1977) a Paul Anka. No entanto, com a volta de Risonho (1943-2019) e a retomada de Os Incríveis, Netinho e seus companheiros precisaram de uma nova identidade. Foi assim que nasceu a Casa das Máquinas, um nome que remetia à energia do rock e à modernidade que o grupo buscava imprimir em sua música.
Com a necessidade de consolidar uma identidade própria, o grupo liderado por Netinho abandonou o nome Os Novos Incríveis e buscou algo que refletisse sua nova fase. A escolha de Casa das Máquinas veio como uma metáfora potente: remetia à engrenagem precisa e ao dinamismo da música que a banda queria produzir. Além disso, evocava a modernidade e o peso característicos do rock da época, em sintonia com o espírito experimental que permeava o cenário musical dos anos 1970.
Com um nome definido, a banda começou a atrair atenção e, em 1974, assinou contrato com a Som Livre, gravadora pertencente ao Grupo Globo. Naquele período, a Som Livre buscava expandir seu catálogo além das trilhas sonoras de novelas, investindo em novos talentos do rock nacional. Apostar na Casa das Máquinas era uma jogada estratégica: além da experiência de Netinho, o grupo contava com músicos versáteis e uma sonoridade que dialogava com o hard rock e a psicodelia. O contrato garantiu a gravação do primeiro álbum, um passo essencial para que a banda se firmasse como um dos nomes promissores da cena nacional. A capa do disco trazia a banda com um visual maquiado, inspirado no fenômeno Secos & Molhados e em Alice Cooper, que havia arrebatado o público paulistano com seu show no Anhembi meses antes do lançamento do disco.
Com o sucesso comercial do primeiro álbum e do compacto, que venderam 16 mil e 60 mil cópias, respectivamente, a Casa das Máquinas recebeu o aval da gravadora para gravar um novo disco. No entanto, a saída do tecladista Pique Riverte trouxe a necessidade de reformulação da banda. Netinho decidiu inovar e recrutou dois integrantes da banda Os Botões, que acompanhava Dave Maclean (1944-2023): o tecladista Mário Testoni Júnior e o baterista Mário Franco Thomaz. Dessa forma, a Casa das Máquinas passou a contar com dois bateristas, estratégia já adotada por bandas como The Allman Brothers Band e Grateful Dead. No Brasil, Roberto Carlos já havia experimentado essa formação com a RC7 no começo dos anos 1970. A decisão trouxe mais peso ao som do grupo e permitiu maior participação dos bateristas nos vocais de apoio.
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Casa das Máquinas em 1975, da esquerda para a direita: Piska, Netinho, Aroldo Santarosa (sentado), Mário Franco Thomaz (em pé no alto), Cargê e Mário Testoni Júnior. |
O processo de gravação de Lar de Maravilhas ocorreu nos estúdios Vice-Versa, em São Paulo, sob a produção do próprio Netinho. Inspirada em Yes, Genesis e Pink Floyd, a Casa das Máquinas direcionou-se para o rock progressivo, explorando arranjos mais elaborados, harmonias vocais complexas e maior experimentação instrumental. Gravado com tecnologia avançada para a época, o álbum evidenciou uma produção mais refinada e uma abordagem artística ambiciosa. Com isso, a Casa das Máquinas se reinventou, lançando um dos trabalhos mais marcantes do rock progressivo brasileiro. Lar de Maravilhas marca uma transformação na sonoridade da Casa das Máquinas, com um afastamento do hard rock em favor do rock progressivo. A banda explora novas possibilidades, como a fusão de ritmos da música clássica, MPB e folk, além de recorrer a mudanças de andamento e extensas seções instrumentais.
O álbum abre com "Vou Morar no Ar", que aborda a busca por liberdade em tempos de repressão, seguido pela faixa-título, que propõe um lugar utópico para a realização desse anseio. As faixas "Liberdade Espacial" e "Astralização" aprofundam o tema da transcendência espiritual como forma de resistência ao autoritarismo.
O Lado A é encerrado com "Cilindro Cônico", uma crítica ao totalitarismo moderno, evocando a distopia de Admirável Mundo Novo, icônico romance escrito por Aldous Huxley (1894-1963) em 1932. O Lado B retoma a busca por um refúgio alternativo em "Vale Verde", enquanto "Raios de Lua" traz uma balada melódica. "Epidemia de Rock" surge como um elogio ao estilo musical, e "O Sol" encerra o disco com um tom espiritualista, complementado por uma parte instrumental em "Reflexo Ativo". O álbum é um marco na evolução do grupo, trazendo uma nova identidade ao rock nacional da época.
A recepção crítica de Lar de Maravilhas foi mista. Carlos Gouvêa, do jornal Folha de S.Paulo, elogiou a qualidade técnica do álbum, destacando a evolução em relação ao trabalho anterior e comparando a performance de Netinho com a de sua antiga banda, Os Incríveis. Por outro lado, a revista Pop considerou o disco um "rock radiofônico", apontando que, embora bem executado, não trazia novidades, recorrendo a clichês musicais e referências a outros grupos como O Terço. Já Marcos Sampaio, do Jornal O Povo, destacou a ousadia, a psicodelia e a influência do LSD nas letras, além da forte presença dos teclados e da orientação progressiva do som, capturando o espírito da época com sua temática hippie e contracultural.
Terceiro álbum da Casa das Máquinas, Lar de Maravilhas é um dos discos mais ousados do rock progressivo brasileiro. O grupo ampliou suas fronteiras sonoras, entregando uma obra densa e repleta de passagens instrumentais sofisticadas. Suas letras, que exploram temas de liberdade e transcendência, refletiam o espírito da época, marcado por intensas transformações sociais. Embora tenha tido uma recepção modesta no lançamento, o álbum ganhou prestígio com o tempo, tornando-se uma referência do gênero no Brasil. Ao longo do tempo, Lar de Maravilhas se tornou um testemunho da audácia e criatividade do rock brasileiro dos anos 1970.
Faixas
Lado A
1."Vou Morar no Ar" (Netinho / Aroldo Santarosa /
Cargê)
2."Lar de Maravilhas" (Netinho / Aroldo Santarosa /
Piska / Cargê)
3."Liberdade Espacial" (Netinho / Cargê / Catalau)
4."Astralização" (Netinho / Piska)
5."Cilindro Cônico"(Netinho / Cargê)
Lado B
6."Vale Verde" (Netinho / Piska)
7."Raios de Lua" (Netinho / Piska / Catalau)
8."Epidemia de Rock" (Netinho / Aroldo Santarosa /
Catalau)
9."O Sol" (Aroldo Santarosa / Netinho / Cargê)
"Reflexo
Ativo" (Piska)
Casa das
Máquinas:
Aroldo Santarosa: vocal, guitarra e violão
Piska: guitarra, guitarra de doze cordas, órgão Yamaha baixo
e violão
Mário Testoni Júnior: órgão Hammond, órgão Yamaha, clavinete,
moog, mellotron, piano de cauda e piano Fender
Cargê: vocal, baixo e contrabaixo
Mário Franco Thomaz: bateria, percussão e vocais
Netinho:bateria, percussão e narração
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