“A História Do Nordeste Na Voz De Luiz Gonzaga” (RCA Victor, 1955), Luiz Gonzaga

Por Sidney Falcão 

Até meados dos anos 1950, Luiz Gonzaga (1912-1989) vivia o auge de sua carreira artística, consolidando-se como o "Rei do Baião". Após o sucesso inicial no Rio de Janeiro, ele popularizou o baião, um gênero musical que até meados dos anos 1940, era pouco conhecido fora do Nordeste. O marco foi o lançamento da música "Baião", em parceria com Humberto Teixeira (1915-1979), em 1946, que abriu caminho para uma série de sucessos, como "Asa Branca" (1947) — sua canção mais emblemática — e outras, como "Juazeiro" e "Qui Nem Jiló". 

A partir daí, Gonzaga tornou-se um fenômeno de vendas e uma presença constante nas rádios e nos palcos de todo o Brasil, com sua sanfona, seu chapéu de couro e suas vestimentas típicas do sertão. Durante os anos 1950, ele expandiu seu repertório, misturando baião, xote e xaxado em músicas que exaltavam a cultura nordestina e davam voz às dificuldades do sertanejo, em plena era de ouro do rádio brasileiro. 

Para se tornar um grande astro da música brasileira, Luiz Gonzaga percorreu um longo caminho. Nascido em 13 de dezembro de 1912, em Exu, Pernambuco, Gonzaga, desde criança, mostrou talento para a sanfona, influenciado por seu pai, Januário. Aos 13 anos, adquiriu seu próprio instrumento e começou sua trajetória musical. Fugiu de casa em 1930, após desavenças familiares, e ingressou no Exército, onde aprimorou suas habilidades. 

Em 1939, deixou a carreira militar e se mudou para o Rio de Janeiro, onde passou a tocar em bares. No ano seguinte, adotou músicas nordestinas em seu repertório, ganhando destaque nos programas das emissoras de rádio cariocas, como Calouros em Desfile, de Ary Barroso (1903-1964), onde recebeu nota máxima. Com Humberto Teixeira, compôs clássicos como "Asa Branca", em 1947. 

Luiz Gonzaga em começo de carreira nos anos 1940, ainda sema famosa
indumentária nordestina que o consagraria.

Após mais de 90 discos de 78 rpm lançados por Luiz Gonzaga desde 1941, a gravadora RCA Victor lançou, em julho de 1955, A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga, marcando a estreia do “Rei do Baião” no formato LP (long-play). O disco reuniu oito faixas gravadas pelo músico entre 1947 e 1953, mesclando sucessos e canções menos conhecidas. O lançamento ocorreu em um momento de transição: o mercado fonográfico deixava gradualmente o 78 rpm para adotar o LP, formato que revolucionaria a indústria musical. 

Ao longo das oito faixas do disco, Luiz Gonzaga traduz o Nordeste em música: das festas juninas ao trabalho árduo no sertão. Suas letras narram histórias de resistência, enquanto sua sanfona ecoa o vento quente que molda a vida nordestina de seu tempo. Mais que cantor, ele foi se tornando símbolo de um povo e suas lutas, transformando a cultura regional em um retrato sonoro da alma nordestina. 

O disco abre com "Paraíba", composta por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga em 1946, mas que foi gravada primeiramente por Emilinha Borba (1923-2005) em 1950. Gonzaga só gravaria sua versão em 1952, que foi a que se tornou mais famosa. A música é uma homenagem ao estado da Paraíba, personificado na letra como uma mulher forte e corajosa, que, ao longo do tempo, acabou simbolizando o próprio paraibano. Luiz Gonzaga expressa afeto pela Paraíba, enviando um "abraço pra ti, pequenina", numa alusão ao tamanho do estado. A canção tornou-se um marco da identidade nordestina, destacando a resiliência de um povo que enfrenta os desafios com orgulho de suas raízes culturais e históricas. 

Com um tom bem-humorado e cativante, “Respeita Januário” é uma homenagem de Gonzaga a seu pai, Januário (1888-1978). A narrativa explora a relação de respeito e admiração filial, mas vai além, posicionando a figura paterna como uma metáfora para o próprio Nordeste: resiliente, digno e repleto de valores tradicionais. O arranjo animado, repleto de sanfona, mantém a música leve, mas com uma profundidade que ecoa a herança cultural. 

A saudade, sentimento tão presente na cultura nordestina, ganha forma na canção em que Luiz Gonzaga presta homenagem a Pernambuco, estado onde nasceu. Em “Saudade de Pernambuco”, Gonzaga traduz o tema da saudade com uma simplicidade melódica que contrasta com a profundidade emocional da letra. A música soa como uma conversa íntima, envolvendo o ouvinte em uma melancolia doce e agradável, facilmente compreendida por qualquer pessoa que tenha sentido a ausência de sua terra natal. 

O lado 1 do disco termina com "O Xote das Meninas", um xote que retrata a juventude feminina do sertão. A letra brinca com as aspirações e sonhos das moças nordestinas, misturando humor e lirismo. O ritmo dançante do xote torna a faixa irresistivelmente envolvente, evocando imagens de festas comunitárias e encontros simples, mas cheios de vida. 

Januário José dos Santos, pai de Luiz Gonzaga, e a sua sanfona de oito baixos:
homenageado em "Respeita Januário".

A educação e a cultura sertaneja se encontram em "O ABC do Sertão", baião que abre o lado 2 do disco. Com um ritmo animado e didático, Gonzaga transforma a experiência escolar em um tema musical, celebrando o aprendizado como um valor essencial. A música tem um caráter quase pedagógico, mostrando como o conhecimento é integrado à vida cotidiana do sertanejo. 

A faixa seguinte, “Acauã”, é a mais melancólica do álbum. O canto do pássaro, que dá nome à música, simboliza a ausência de chuva e a luta pela sobrevivência. A toada é carregada de emoção, com um arranjo que amplifica o peso do tema. É impossível ouvir sem sentir a intensidade da dor do sertanejo, retratada de forma tão vívida. 

O baião “Algodão” faz referência ao ciclo de plantio e colheita do algodão, que, na letra da canção, é chamado de "ouro branco", devido ao seu grande valor para a economia nordestina. Além de ressaltar a importância do algodão para a economia do Nordeste, Luiz Gonzaga canta e enfatiza o orgulho do trabalhador rural em exercer o seu ofício. 

A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga chega ao fim com a mitológica “Asa Branca”, uma das canções mais importantes da história da música popular brasileira. Ponto alto emocional do disco, “Asa Branca” aborda a diáspora forçada pela seca, simbolizando a luta e a esperança do povo nordestino. O arranjo, simples e poderoso, dá espaço para que a letra brilhe, transformando a canção em um clássico atemporal. 

Em 1962, o disco foi relançado com mais quatro faixas pela gravadora RCA, com uma nova capa e um novo título: O Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga. Contudo, duas das oito faixas do disco lançado em 1955, “O Xote das Meninas” e “Algodão”, foram excluídas do relançamento de 1962. Ou seja, da versão de 1955, permaneceram seis faixas no relançamento de 1962, e mais seis novas faixas foram incluídas: “Assun Preto”, “Calango da Lacraia”, “Cigarro de Paia”, “Derramaro O Gai”, “No Meu Pé de Serra” e “Moda da Mula Preta”. 

Ao levar o baião, o xote e o xaxado ao grande público, Luiz Gonzaga não apenas popularizou a música nordestina, mas também afirmou a identidade cultural do sertão no Brasil urbano. Ele deu voz ao sertanejo anônimo, ao vaqueiro e ao retirante, incorporando-os nas grandes narrativas da música nacional. 

O impacto de Gonzaga exerceu influência em várias gerações da música brasileira. Artistas como Dominguinhos (1941-2013), Elba Ramalho e Gilberto Gil, entre outros, beberam dessa fonte criativa, mesclando o baião com novos gêneros musicais. Sua influência ultrapassou o Nordeste, alcançando artistas de todo o país, que fizeram de seu legado um elemento essencial para a música brasileira. 

A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga permanece relevante, com sua sanfona ecoando a força e a resiliência do povo nordestino. Cada letra preserva uma parte da história que nunca será esquecida. Gonzaga cantou o Nordeste e o eternizou. Se o sertão tivesse uma voz, certamente ela seria o som inconfundível e acolhedor de Luiz Gonzaga.

 

Faixas

Lado 1

01 – “Paraíba” (Humberto Teixeira – Luiz Gonzaga)

02 – “Respeita Januário” (Humberto Teixeira – Luiz Gonzaga)

03 – “Saudade de Pernambuco” (Sebastião Rosendo – Salvador Miceli)

04 – “O Xote das Meninas” (Zé Dantas – Luiz Gonzaga)

 

Lado 2

05 – “O ABC do Sertão” (Zé Dantas – Luiz Gonzaga)

06 – “Acauã” (Zé Dantas)

07 – “Algodão” (Zé Dantas – Luiz Gonzaga)

08 – “Asa Branca” (Humberto Teixeira – Luiz Gonzaga)

 

Referências:

luizluagonzaga.com.br

teses.usp.br 

Ouça na íntegra o álbum 
A História Do Nordeste Na 
Voz De Luiz Gonzaga

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