“Young Americans” (RCA, 1975), David Bowie
David Bowie (1947-2016) sempre teve um talento camaleônico, capaz de se reinventar a cada fase de sua carreira. Mas, entre 1974 e 1975, essa habilidade atingiu um novo patamar quando ele mergulhou de cabeça na soul music e no R&B americanos. A transformação começou durante sua turnê nos Estados Unidos para promover Diamond Dogs, um álbum de rock que já apresentava sinais de esgotamento criativo dentro do gênero. Em busca de novos caminhos musicais, Bowie foi cativado pelos sons da black music americana que ecoavam nos clubes de Nova York e Filadélfia.
Sua passagem pelo Harlem, em Nova York, assistindo a shows de grandes ícones como The Temptations e Marvin Gaye (1939-1984), foi um momento crucial para Bowie. Ele apreciava o anonimato que essas apresentações lhe proporcionavam, mas também se sentiu profundamente atraído pela autenticidade e energia da música que ouvia. Logo, ele passou a frequentar o Apollo Theater, onde testemunhou o lendário James Brown (1933-2006) em ação. Foi aí que Bowie percebeu que sua música precisava de uma mudança radical.
Em agosto de 1974, após a primeira parte da turnê de Diamond Dogs, Bowie se instalou no Sigma Sound Studios, na Filadélfia, um epicentro do chamado "Philadelphia sound", liderado por produtores como Kenny Gamble e Leon Huff. Embora Bowie inicialmente quisesse gravar com a banda MFSB, famosa pelo hit "TSOP (The Sound of Philadelphia)", ele acabou reunindo um grupo distinto de músicos de soul e funk: o guitarrista Carlos Alomar, o baixista Willie Weeks, o saxofonista David Sanborn e o baterista Andy Newmark (ex-Sly & The Family Stone). Bowie manteve o tecladista Mike Garson, que já estava com o cantor desde o álbum Aladdin Sane (1973). Para os vocais de apoio, Bowie trouxe Ava Cherry (sua amante na época), Robin Clark e o jovem Luther Vandross (1951-2005), que, anos mais tarde, se tornaria um astro do R&B e soul music entre os anos 1980 e 2000.
Mas a figura mais ilustre dentre os convidados presentes nos
estúdios de gravação foi ninguém menos que o ex-beatle John Lennon (1940-1980),
que participou dos vocais de apoio e tocou guitarra nas faixas "Across the
Universe", uma releitura de um clássico dos Beatles, e "Fame",
uma parceria de Bowie e Lennon.
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John Lennon e David Bowie nos bastidores da premiação do Grammy, em 1975. O ex-beatle participou em duas faixas de Young Americans, "Across the Universe" e "Fame". |
O álbum abre com a faixa-título, que introduziu David Bowie no universo da soul music. Com destaque para a performance do saxofone de David Sanborn e os vocais de apoio, nos quais está presente Vandross, “Young Americans”, a canção, virou um clássico do chamado “blue-eyed soul” (“soul de olhos azuis”), um tipo de soul praticado por artistas brancos. "Young Americans" marcou uma reviravolta ousada para David Bowie, que abandonou o glam rock para abraçar o R&B e o soul da Filadélfia dos anos 1970. Bowie descreveu esse novo som como "plastic soul", reconhecendo seu papel de outsider enquanto dominava o gênero com estilo único.
“Win” é uma balada romântica que traz David Bowie empregando um vocal sensual. A letra faz uma reflexão sobre persistência e a luta para alcançar o sucesso, mesmo diante de adversidades. A canção traz uma mensagem de engajamento e força, sobre o indivíduo acreditar na capacidade de superar obstáculos.
"Fascination", uma parceria com Luther Vandross, fala sobre a irresistível atração e desejo que uma pessoa sente por alguém ou algo, com o fascínio funcionando como uma força quase incontrolável que consome parte de quem a experimenta. Os versos exploram o impacto emocional e físico dessa fascinação, que pode ser ao mesmo tempo sedutora e tumultuosa.
Encerrando o lado 1 do disco, "Right" fala sobre
superação pessoal, mantendo-se no caminho certo e não olhando para o passado.
Ela reflete um estado de confiança e determinação em seguir em frente, sem
voltar atrás ou falhar. Em "Right", Bowie canta acompanhado por um incrível coro
de vozes ao estilo soul e pela guitarra simples, eficiente e melódica de Carlos
Alomar.
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Diane Sumler, David Bowie, Robin Clark, Luther Vandross e Ava Cherry durante a sessão de gravação do álbum Young Americans. |
"Somebody Up There Likes Me" trata da ascensão de uma figura pública carismática, um ícone fabricado e adorado pelas massas, que controla a percepção das pessoas com sua presença e imagem. Na faixa seguinte, David Bowie faz uma releitura melodramática de “Across The Universe”, dos Beatles, com participação especial de John Lennon nos vocais de apoio e na guitarra.
O romantismo retorna em "Can You Hear Me", canção onde David Bowie trata do desejo intenso por reconexão e intimidade emocional. A letra ainda reflete sobre um relacionamento passado e os desafios de encontrar amor verdadeiro após tantas experiências.
O álbum Young Americans fecha em grande estilo com “Fame”, uma música com arranjo primoroso, com a guitarra de Alomar cheia de suingue e um baixo marcado e poderoso. “Fame” é uma parceria de John Lennon e Bowie que surgiu a partir de um riff de guitarra de Carlos Alomar, que chamou a atenção do ex-beatle. A letra de “Fame” critica a superficialidade e os efeitos corrosivos da fama, mostrando como ela pode desumanizar, levar à perda de controle e criar uma vida vazia e ilusória, mesmo que superficialmente desejável.
Lançado em 7 de março de 1975, o álbum Young Americans alcançou o 1º lugar na parada de álbuns da Dinamarca, 2º lugar no Reino Unido, 3º lugar na Nova Zelândia e 5º lugar na Suécia. Chegou ao 9º lugar na parada da Billboard 200 nos Estados Unidos. Comercialmente, Young Americans teve vendagem modesta: 500 mil cópias nos Estados Unidos, 100 mil no Reino Unido e 3,3 milhões de cópias em todo o mundo. Dentro dos padrões de David Bowie, foram marcas normais em vendas. Diferente de grandes astros do rock da época como Elton John ou Rod Stewart, David Bowie nunca foi um grande vendedor de discos, mas sim um artista inovador, que apontava novos caminhos e trazia novas propostas artísticas com sua inquietude. Foi essa inquietude que o fez ser conhecido como o “Camaleão do Rock”, devido às tantas transformações que passou ao longo da carreira.
O envolvimento de Bowie com a soul music e o R&B através de Young Americans expandiu os limites do que um artista britânico branco poderia criar musicalmente. Abriu caminhos para que outros artistas do rock explorassem a música negra americana de forma mais profunda. Young Americans desempenhou um papel fundamental na relação entre o rock, a soul music e o R&B. Embora influenciado pelos sons da Filadélfia e da gravadora Motown, Bowie empregou uma abordagem bastante pessoal na sua experiência com a soul music e o R&B, misturando sua teatralidade, já presente desde o início da carreira solo, com a franqueza emocional da música negra americana.
E por falar em teatralidade, Young Americans abriu
caminho para uma nova fase na carreira de Bowie, quando o astro inglês explorou
ainda mais o soul, o R&B e o funk, criando sua última persona, The Thin
White Duke (O Magro Duque Branco), na época do álbum Station to Station
(1976).
Faixas
Todas as músicas foram escritas pelo próprio David Bowie,
exceto onde indicado.
Lado 1
- "Young Americans"
- "Win"
- "Fascination" (Bowie - Luther Vandross)
- "Right"
Lado 2
- "Somebody Up There Likes Me"
- "Across the Universe" (John Lennon - Paul McCartney)
- "Can You Hear Me?"
- "Fame" (Bowie – Lennon - Carlos Alomar)
Referências:
Bowie album by album – Paolo Hewitt, Palazzo Editions, 2016, Londres, Reino Unido.
The Bowie Years Vol. 2 – abril/2018, Anthem Publishing, Bath, Reino Unido.
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