“Gilberto Gil” (Philips, 1968), Gilberto Gil
Em 1968, o Brasil vivia sob a sombra da ditadura militar, um período opressor que sufocava a liberdade de expressão. No entanto, em meio a esse cenário sombrio, a Tropicália florescia como um ato de resistência cultural, oferecendo uma nova perspectiva à música brasileira. Entre os pioneiros desse movimento estava Gilberto Gil, que, com seu segundo álbum, também autointitulado, ajudou a redefinir os rumos da MPB. Misturando rock, psicodelia e tradições brasileiras, ele criou uma obra inovadora que ressoa até os dias de hoje.
Gil vinha de uma brilhante participação no III Festival da Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record em 1967, onde conquistou o 2º lugar com a canção “Domingo no Parque”, acompanhado pelos Mutantes. Naquele momento, com essa apresentação no festival, Gil já introduzia publicamente o início do movimento tropicalista, que, em pouco tempo, provocaria uma grande revolução na cultura brasileira.
No início de 1968, Gilberto Gil iniciou as gravações de seu segundo álbum nos estúdios da Companhia Brasileira de Discos (CBD), em São Paulo. A produção ficou sob a responsabilidade de Manoel Barenbein, enquanto o jovem maestro Rogério Duprat (1932-2006) cuidou dos arranjos e da regência.
Intitulado apenas com o nome do cantor, o segundo álbum de Gilberto Gil diferenciava-se significativamente de sua estreia. Enquanto o primeiro disco do artista baiano era essencialmente baseado nas referências da música brasileira, como a bossa nova, o samba e o baião, o segundo álbum apresentava um Gilberto Gil em sintonia com as vanguardas da música internacional, sem, contudo, abrir mão das tradições da música popular brasileira. Esse equilíbrio é justamente um dos pilares do Tropicalismo.
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Gilberto Gil acompanhado pelos Mutantes no 3º festival da TV Record, em 1967, defendo a canção "Domingo no Parque". |
Uma das primeiras consequências dessa nova orientação musical de Gil foi a canção “Domingo no Parque”, que combina, ritmicamente, o som da capoeira, conduzido pelo berimbau, com a distorção da guitarra elétrica do rock.
A influência de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, no segundo álbum de Gil aparece não apenas na música, mas também na capa. Sobre um fundo psicodélico, Gil surge vestido com um traje que, por vezes, lembra o fardão dos imortais da Academia Brasileira de Letras, e, ao mesmo tempo, faz alusão ao figurino dos Beatles na capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. A concepção da capa do álbum ficou a cargo dos artistas visuais Antônio Dias (1944-2018) e Rogério Duarte (1939-2016), com fotografia de David Drew Zingg (1923-2000).
O álbum
começa com “Frevo Rasgado,” uma fusão do vibrante ritmo pernambucano com sentimentos
de nostalgia por um amor perdido. A letra evoca o encontro com alguém especial
em meio à festa, onde o tumulto do salão reflete a confusão emocional do
eu-lírico diante da indiferença. Gil mistura a alegria efêmera do carnaval com
a melancolia de um passado feliz que não retorna.
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Beatles na fase "Sgt. Pepper's" e Banda de Pífanos de Caruaru: inspirações para o segundo e autointitulado álbum de Gilberto Gil. |
Em “Domingou,” Gil conta com os vocais de apoio dos Mutantes. O baiano canta versos que capturam a leveza e o clima preguiçoso de um domingo na cidade, explorando a rotina tranquila e os pequenos prazeres desse dia. Gil e Torquato Neto (1944-1972), autores da canção, destacam o ambiente, os encontros entre as pessoas e o tempo que passa lentamente.
“Marginália II” explora a identidade brasileira com um tom de melancolia e resignação, refletindo tanto as dificuldades quanto as belezas do país. A letra combina ironia e crítica social, capturando a complexa realidade brasileira entre o orgulho e as adversidades. Destaque para o excelente trabalho de arranjo e regência de Rogério Duprat com a orquestra, que confere um caráter especial à faixa.
Fechando o lado 1 do disco, a alegre "Pega a Voga, Cabeludo" brinca com o espírito da contracultura e a autoconfiança do eu-lírico, destacando sua independência e criatividade. Gilberto Gil celebra a autenticidade e o orgulho de ser diferente, fazendo referência ao ritmo, à cultura e à resistência cultural.
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Maestro Rogério Duprat: arranjos e regência de orquestra na faixa "Marginália II". |
A canção "Procissão" já havia sido gravada por Gil em seu primeiro álbum, Louvação (1967). Neste novo trabalho, a faixa ressurge em uma versão renovada. A letra reflete a fé e as dificuldades do povo sertanejo, evocando sua devoção e esperança em meio à dura realidade do sertão. Gil critica a inércia social e os falsos messias, ressaltando a necessidade de justiça social e de melhorias concretas na vida dessas comunidades.
A romântica "Luzia Luluza" narra o sonho de um homem apaixonado, que imagina uma vida de sucesso como ator ao lado de sua amada, Luzia, enquanto lida com a realidade de encontros e esperas. A canção expressa o desejo por uma vida grandiosa e romântica, simbolizada pela fantasia de um casamento no carnaval e um final feliz à beira-mar. O clima romântico dos versos é intensificado pelo canto delicado e suave de Gil, acompanhado pelo belo arranjo de cordas da orquestra.
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Detalhe da contra capa do álbum Gilberto Gil, de 1968. |
O álbum se encerra com "Domingo no Parque", canção já consagrada pelo sucesso no festival. Seus versos narram a história trágica de um triângulo amoroso entre três jovens: o feirante José, o pedreiro João e a doce Juliana. O romance culmina em um crime passional, impulsionado pelo ciúme de José. A canção explora temas de amizade, amor e violência, ambientados em um parque onde os personagens se encontram e onde o ciúme leva ao desfecho fatal.
Gilberto
Gil, o álbum, é
um marco não só na discografia de Gil, mas na própria história da música
brasileira. O álbum inaugurou uma fase em que a MPB passou a dialogar
abertamente com o rock e a cultura pop internacional. A obra captura a tensão e
a efervescência cultural de uma época, mas também transcende o seu tempo,
permanecendo relevante e inovadora. Com uma mistura brilhante de tradição e
vanguarda, e uma visão crítica e artística profundamente enraizada na realidade
brasileira, o álbum Gilberto Gil ajudou a construir, através do
movimento tropicalista, um dos pilares do que viria a ser a moderna música
brasileira, deixando um legado que continua a influenciar artistas e a desafiar
ouvintes.
Faixas –
todas as faixas são de autoria de Gilberto Gil, exceto as indicadas.
Lado 1
- "Frevo Rasgado" (Gilberto Gil - Bruno Ferreira)
- "Coragem pra Suportar"
- "Domingou" (Gilberto Gil - Torquato Neto)
- "Marginália II" (Gilberto Gil - Torquato Neto)
- "Pega a Voga, Cabeludo" (Juan Arcon - Gilberto Gil)
Lado 2
- "Ele Falava Nisso Todo Dia"
- "Procissão"
- "Luzia Luluza"
- "Pé da Roseira"
- "Domingo no Parque"
Referências:
rollingstone.com.br
tropicalia.com.br
wikipedia.org
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