"De Pé No Chão" (RCA-Victor, 1978), Beth Carvalho

Por Sidney Falcão

Beth Carvalho desempenhou um papel transformador na história do samba durante a efervescente década de 1970. Ela emergiu em uma geração notável de cantoras, da qual fizarm parte ícones como Clara Nunes (1943-1983) e Alcione, que desempenharam papéis fundamentais na quebra de barreiras e na reafirmação do lugar das mulheres não apenas no samba, mas também no cenário da indústria fonográfica brasileira.

Numa época em que o samba era amplamente dominado por artistas masculinos, Beth Carvalho se destacou como uma das figuras femininas pioneiras a conquistar destaque. Sua presença nos palcos e nas gravações de discos, como intérprete apaixonada e defensora fervorosa do samba, foi um soco nas barreiras de gênero, desafiando estereótipos arraigados e provando que as mulheres não só podiam interpretar o samba, mas também desempenhar papéis cruciais na promoção e preservação desse gênero musical tão brasileiro.

Beth Carvalho não se limitou ao papel de cantora talentosa. Ela também foi uma das primeiras a dedicar-se ativamente à descoberta e apoio a novos talentos no samba. Sua atuação como uma espécie de "embaixadora" do gênero foi fundamental para dar visibilidade a compositores e músicos emergentes. Beth foi uma força motriz por trás da expansão do samba, abrindo portas para novas oportunidades e expandindo os horizontes musicais das mulheres no cenário musical.

Elizabeth Santos Leal de Carvalho, ou apenas Beth Carvalho, nasceu em 5 de maio de 1946, no Rio de Janeiro. Desde cedo, a música sempre esteve presente na vida de Beth. Sua avó tocava violão e bandolim, e a casa de seus pais era frequentada por artistas consagrados da música brasileira como Silvio Caldas (1908-1998), Elizeth Cardoso (1920-1990) e Aracy de Almeida (1914-1988). Da mãe, Beth ganhou de presente um violão. 

Com sua irmã mais velha, Beth frequentava as rodas de samba no subúrbio do Rio de Janeiro. No começo dos anos 1960, descobriu a bossa nova e teve João Gilberto (1931-2019) como inspiração. Em 1965, gravou o seu primeiro compacto simples, que trazia a canção “Por Que Morrer de Amor?”. No ano seguinte, integra o conjunto 3-D, que além de Beth Carvalho, contava também na sua formação com os músicos Antonio Adolfo, Chico Batera, Hélio Delmiro e Luís Eduardo Conde, que lança apenas um único álbum, Muito na Onda.

No início da carreira, Beth Carvalho integrou o grupo Conjunto 3D
com quem gravou o álbum Muito Na Onda.

Mas somente em 1969 foi que Beth Carvalho ganhou projeção nacional ao participar do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo. Acompanhada pelo grupo vocal Golden Boys, Beth defendeu a canção "Andança", de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi. 3º lugar no festival, "Andança" foi o primeiro sucesso da carreira da cantora. No mesmo ano, assina contrato com a EMI-Odeon e lança o seu primeiro álbum, Andança, que traz canção homônima defendida por ela no festival. 

Beth nutria um desejo em direcionar a sua carreira para o samba, mas as suas intenções se esbarraram na gravadora EMI-Odeon. A companhia desenvolvia um projeto voltado para Clara Nunes como estrela de samba. Sem espaço na EMI, Beth deixou a gravadora e assinou contrato com a pequena gravadora Tapecar,que decidiu apostar no desejo da artista em ser uma cantora de samba. Em 1974, Beth se torna grande estrela do samba com o sucesso de "1800 Colinas", do álbum Pra Seu Governo, que estoura nas paradas de rádio em todo o Brasil. 

Em 1976, Beth Carvalho é contratada pela gravadora RCA Victor, uma forma da companhia fazer frente ao estrelato de Clara Nunes, da EMI-Odeon. O álbum Mundo Melhor, lançado ainda em 1977 e que marcou a estreia de Beth na RCA Victor, trpuxe a emocionante "As Rosas Não Falam", canção até então inédita de Cartola. No ano seguinte, em 1977, seu álbum Nos Botequins da Vida, vende mais de 400 mil cópias graças ao sucesso de faixas como “Saco de Feijão”,“O Mundo é Um Moinho” (outro presente de Cartola para Beth) e de “Olho Por Olho”, o que fez de Beth uma grande vendedora de discos de samba, chegando a "rivalizar" com Clara Nunes. 

Ainda em 1977, um fato iria causar uma nova mudança na carreira de Beth Carvalho. Por meio do jogador de futebol Alcir Portela (1944-2008), Beth conheceu o bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no subúrbio do Rio de Janeiro, onde ocorria semanalmente uma roda de samba. Nos anos 1970, as escolas de samba passaram a ter como prioridade os sambas-enredo visando o carnaval, sobrando pouco espaço para os compositores mostrarem seus sambas sem o foco carnavalesco. O bloco Cacique de Ramos acabou se tornando o reduto desses sambistas que promoviam rodas de samba, onde surgiam novas músicas e também uma nova forma de se tocar o samba. 

Foi justamente esse sopro de renovação que atraiu Beth que se tornou frequentadora assídua das rodas de samba do Cacique de Ramos. Dentre as inovações trazidas pelos músicos das rodas de samba do Cacique de Ramos estão o emprego de novos instrumentos no universo do samba, como o banjo, que ganhou uma afinação de cavaquinho. Ou uma maneira diferente de tocar instrumentos tradicionais como o tantã e o repique, este último adaptado para ser tocado com a mão e foi rebatizado "repique de mão". Por outro lado, tamborim, agogô e reco-reco foram deixados de lado.  

Dentre os parcipantes das rodas de samba do Cacique de Ramos, alguns deles, até então desconhecidos, se tornariam futuramentes sambistas famosos como Jorge Aragão, Almir Guineto, Sombrinha e Luis Carlos da Vila. 

Impressionada com a qualidade e com o teor renovador daquele tipo de samba praticado por aqueles sambistas, Beth convidou aqueles músicos para participarem das gravações do seu próximo álbum. Durante as gravações, o produtor Rildo Hora ficou preocupado com o fato daqueles músicos serem amadores, sem nenhuma experiência em estúdio de gravação. No entanto, a mescla dos músicos do Cacique de Ramos com músicos mais experientes  como Dino Sete Cordas (1918-2006), Wilson das Neves (1936-2017), Mané do Cavaco e Manoel da Conceição, fez com que o temor do pordutor fosse a amenizado e as garavções transcorressem com tranquilidade. 

Sambando de pés no chão: Beth Carvalho e a turma do Cacique Ramos em sessão
de foto para o álbum De Pé No Chão.

A princípio, os músicos do Cacique de Ramos iriam participar de apenas duas faixas. Porém, o resultado entregue pelos músicos e o clima descontraído das gravações esta tão bom que eles acabaram participando de todas fixas. Embora inexperientes em gravação de discos, aqueles músicos do Cacique conseguiram levar para o estúdio o clima descontraído das rodas de samba dos terreiros e quintais. 

O coro e as palmas nas gravações contaram com a participação de figuras ilustres como Cartola, Martinho da Vila, Monarco (1933-2021), Nélson Cavaquinho (1911-1986) e até mesmo, acredite, do "Rei do Baião", Luiz Gonzaga (1912-1988).

Intitulado De Pé No Chão, o álbum abre com a antológica "Vou Festejar", que antes de Beth, teria sido oferecido a Elza Soares. Possui uma carga percussiva "tribal", orgânica, intensa, elementos característicos do som do samba do Cacique de Ramos. "Vou Festejar" é um samba alegre e festivo, que traz uma mensagem de resistência e superação, e dá um recado direto a gente falsa: "Você pagou com traição / A quem sempre lhe deu a mão". "Vou Festejar" foi composta por Jorge Aragão, Dida e Neoci, sendo que o primeiro e o último formariam depois o Fundo de Quintal, grupo de pagode oriundo das rodas de samba do Cacique de Ramos.    

"Visual, a próxima faixa, é uma crítica ao processo de transformação que o samba e o carnaval carioca estavam passando. A letra lamenta a perda da autenticidade do samba, que passou de uma expressão cultural popular e genuína para um espetáculo elitizado, no qual a falta de recursos financeiros exclui os sambistas das celebrações do carnaval. "Visual" evoca nostalgia pelas fantasias simples do passado, contrastando com as atuais, luxuosas e importadas, e destaca a ironia de como até mesmo os sambistas, que mal ganham para viver, são privados do prazer de apreciar o desfile.

Embora seja alegre e bem humorada, "Ô, Isaura", traz nas entrelinhas críticas sociais, ironia e reflexões sobre desigualdades nas comunidades pobres cariocas. como no Morro da Mangueira. "Marcando Bobeira" expressa em seus versos a preocupação e a curiosidade sobre o paradeiro de uma pessoa sumida das rodas de pagode, rendendo todo tipo de fofoca. 

Outro samba presente no álbum que trata sobre superação é "Meu Caminho". A letra fala sobre a transformação do sofrimento em gratidão e sobre seguir em frente com positividade, destacando a ideia de que, mesmo após enfrentar momentos difíceis, é possível encontrar "flores, bondade, amor e paz no caminho". 

Encerrando o lado 1 do álbum De Pé No Chão, "Goiabada Cascão", samba que utilizada o doce goiabada-cascão em caixa como uma metáfora para expressar saudade e nostalgia por elementos e experiências do passado que eram raros e valiosos. A música evoca memórias de um passado simples, destacando aspectos como a comida tradicional, a música autêntica e um estilo de vida genuíno. Reflete a perda dessas experiências autênticas na vida atual, substituídas por elementos mais comuns, gerando um sentimento de saudade e apreço pelo passado autêntico. Essa nostalgia é associada à raridade da goiabada-cascão.

"Você, Eu e a Orgia" abre o lado 2 do álbum, um samba que celebra um relacionamento amoroso e a conexão profunda entre duas pessoas. Apesar do título sugestivo, a palavra "orgia" não tem um significado literal aqui; ela denota um estado de plenitude e harmonia compartilhada. A canção foca na devoção e cumplicidade entre o casal, realçando a alegria da união e a importância da compreensão e aceitação mútua. Ela celebra o relacionamento como uma fonte genuína de felicidade, compartilhando momentos de festa, e questiona por que se separar quando se tem essa conexão especial.

O samba "Lenço" é sobre o fim de um relacionamento amoroso. Nem por um pedido de perdão, o eu lírico se mostra irredutível em perdoar o ex-parceiro de relação amorosa. Decreve a ausência de honestidade no semblante do amante, indicando falsidade e mágoa na relação. Fazendo a voz do eu lírico magoado, Beth manda uma reposta dura e direta ao ex-amor agora arrependido: "Com os olhos rasos d'água me chamou / Implorando o meu perdão / Mas eu não dou / Pega este lenço / Para enxugar teu pranto / Já enxuguei o meu / O nosso amor morreu".

"Passarinho" expressa o desejo de viver com liberdade e leveza, assim como um pássaro. Os versos enfatizam a vontade de cantar, voar sem rumo, e encontrar um lugar para construir um ninho, representando a busca por um lar, um espaço de afeto e aconchego. 

Com uma linha melódica que guarda ares de nostalgia que remete às marchas-rancho de meados do século XX, "Linda Borboleta" é uma samba que destaca a importância e a beleza da rosa no jardim, pedindo à borboleta que não a perturbe, enfatizando seu valor como fonte de inspiração para canções de amor. 

Escrita por Cartola, "Que Sejam Bem-vindos" é um lindo e melancólico samba-canção que reflete a perplexidade diante da tristeza humana em contraste com a beleza da natureza. A letra da canção promove uma reflexão sobre o que leva algumas pessoas se sentirem tristes, ainda quem estejam em ambientes tão alegres, com pássaros cantando e flores perfumadas. 

Beth Carvalho recebendo Disco de Ouro pelas mais de 100 mil cópias
de De Pé No Chão, em 1978.

O álbum chega ao fim homenageando o samba e a sua força em se manter vivo através da faxia "Agoniza, Mas Não Morre", um samba de autoria de Nelson Sargento (1924-2021). Beth canta versos que ressaltam a capacidade do samba de resistir a mudanças e pressões que tentaram alterar sua essência, mantendo-se como uma expressão cultural resiliente e autêntica, apesar das tentativas de deturpação ou imposição de outras culturas.

Lançado em 1978, numa época em que a disco music estava no auge e na preferência musical do público jovem da época, De Pé No Chão mesmo assim mostrou que o samba estava em processo de renovação. O sopro de novidade trazido pelo álbum foi bem recebido pela crítica musical. A faixa "Vou Festejar" fez um enorme sucesso nas paradas radiofônicas, a tal ponto de ser bem executada no carnaval de 1979. "Ô, Isaura", "Goiabada-Cascão" e "Marcando Bobeira" também caíram no gosto do público, contribuindo para que o álbum De Pé No Chão vendesse mais de 500 mil cópias. 

De Pé No Chão  não apenas foi um divisor de águas na carreira de Beth Carvalho, mas também lançou os holofones sobre aquela nova geração de sambistas que vinham das rodas de samba do bloco Cacique de Ramos. Além disso, De Pé No Chão apontou novos rumos para o samba. 

O sucesso de De Pé No Chão deu visibilidade àquela nova geração de sambistas oriundos do bloco carnavalesco Cacique de Ramos. Em pouco tempo, uma parcela de músicos daquela turma do Cacique de Ramos,  Almir Guineto ( banjo / cavaco ), Bira Presidente ( pandeiro ), Jorge Aragão (violão), Neoci ( tan-tan ), Sereno (tan-tan), Sombrinha (violão/chip) e Ubirany (repique de mão) formasse o grupo Fundo de Quintal, que com o apoio de Beth Carvalho, lançou em 1980 o primeiro álbum, Samba É No Fundo de Quintal, pelo selo RGE. 

O samba praticado na quadra do Cacique de Ramos, que encantou Beth e foi levado para o álbum De Pé No Chão, também esteve presente nesse disco de estreia do Fundo de Quintal. A sonoridade festiva que trazia de volta o clima alegre dos sambas de terreiro e de quintal, abriu caminho para um seguimento do samba que se tornaria bastante popular entre os brasileiros a partir dos anos 1980: o pagode. Se o Fundo de Quintal germinou o pagode, não seria errado afirmar que o álbum De Pé No Chão , de Beth Carvalho, foi quem plantou a semente.

Faixas 

Lado 1

1-"Vou Festejar" (Jorge Aragão/Dida/Neoci)

2-"Visual" (Neném/Pintado)

3-"Ô, Isaura" (Rubens da Mangueira)

4-"Marcando Bobeira" (João Quadrado/Beto Sem Braço/Dão)

5-"Meu Caminho" (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito)

6-"Goiabada Cascão" (Wilson Moreira/Nei Lopes)


Lado 2

7-"Você Eu e a Orgia" (Candeia/Martinho da Vila)

8-"Lenço" (Monarco/Francisco Santana)

9-"Passarinho" (Chatim)

10-"Linda Borboleta" (Monarco/Paulo da Portela)

11-"Que Sejam Bem-vindos" (Cartola)

12-"Agoniza Mas Não Morre" (Nelson Sargento)


Referências:

Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir  - André Diniz, 2012, Editora Zahar, Rio de Janeiro, Brasil

Canto das rainhas: o poder das mulheres que escreveram a história do samba  - Leonardo Bruno, 2021, Editora Agir, Rio de Janeiro, Brasil

amusicade.com 

extra.globo.com 

g1.globo.com 


Ouça na íntegra o álbum De Pé No Chão

"Vou Festeja" (videoclipe exibido no programa
"Fantástico", TV Globo, 1978)




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