"Samba da Bahia" (Fontana/Philips, 1973), Riachão, Batatinha e Panela


Por Sidney Falcão

Quando o disco Samba da Bahia chegou às lojas em 1973, Riachão (1921-2020), Batatinha (1924-1997) e Panela (1931-1999) já traziam na bagagem uma vasta trajetória no cenário do samba baiano. Não eram mais jovens iniciantes, mas sim, homens maduros que ansiavam por conquistar seu espaço no universo artístico, enfrentando as inúmeras adversidades da vida. Enquanto a vida dos sambistas no Rio de Janeiro não era um mar de rosas, mesmo com as grandes gravadoras e o epicentro da indústria cultural brasileira concentrados naquela cidade, a situação se tornava ainda mais desafiadora para os sambistas baianos em Salvador, uma cidade distante das gravadoras, onde o máximo que se podia encontrar era um modesto estúdio de gravação de jingles para campanhas publicitárias. Naquelea época, um artista baiano gravar um disco distante das grandes companhias fonográficas era tarefa hercúlea. 

Riachão, Batatinha e Panela eram dotados de um talento sublime para compor sambas, mas enfrentavam uma dura realidade: a música não pagava as contas, e eles precisavam se desdobrar em outras ocupações para prover o sustento de suas famílias.

Clementino Rodrigues, mais conhecido como Riachão e nascido em Salvador, destacou-se mais do que seus colegas. Ele trilhou um caminho árduo na vida, trabalhando desde vendedor de cachorro-quente até alfaiate. À época do lançamento de Samba da Bahia, Riachão ocupava o cargo de contínuo no Desenbanco (Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia, atualmente Desenbahia). Paralelamente, ele se apresentava nos palcos, em programas de rádio e TV, e até atuou em filmes, incluindo A Grande Feira (1961), dirigido por Roberto Pires (1934-2001), e Os Pastores da Noite (1972), de Marcel Camus (1912-1982). 

O reconhecimento artístico de Riachão chegou em 1972, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram e cantaram um samba de sua autoria, o antológico "Cada Macaco No Seu Galho". No entanto, foi na terceira idade, após se aposentar, que Riachão finalmente desfrutou plenamente de sua carreira artística e passou a ser reverenciado pelas novas gerações da música baiana.

Panela, Riachão e Batatinha, na frente de uma igreja no Centro Histórico
de Salvador, nos anos 1970.

Oscar da Penha, também conhecido como Batatinha e natural de Salvador, começou a trabalhar muito cedo, aos dez anos de idade, como marceneiro. Na idade adulta, trabalhou como funcionário público na Imprensa Oficial da Bahia e, à noite, desempenhava a função de tipógrafo no jornal Diário de Notícia, uma rotina extenuante para sustentar sua esposa e nove filhos. Sua carreira na música começou nos anos 1940, quando se apresentou na Rádio Sociedade da Bahia, em Salvador, cantando suas próprias composições e de outros artistas. Em 1960, o cantor Jamelão (1913-2008) gravou seu samba "Jajá da Gamboa", o que o catapultou para maior visibilidade no mundo da música. A partir desse momento, outros artistas, incluindo Maria Bethânia, passaram a gravar suas composições. Seu último trabalho, o álbum Diplomacia (1997), contou com a participação de notáveis artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Jussara Silveira.

Dos três sambistas, Panela, nascido em Salvador, Bahia, foi o que teve a carreira artística mais modesta. Panela, cujo nome de batismo era Vivaldo Jesuíno de Souza, ganhava a vida como corretor de imóveis na capital baiana, mas jamais abandonou a música. Na verdade, ele conquistou o título de campeão em 14 edições do concurso de música do carnaval soteropolitano. Uma de suas composições vitoriosas, foi a marcha-rancho "O Trio E A Multidão", interpretada no concurso por uma jovem cantora conhecida como Gracinha, que viria a se consagrar como Gal Costa (1945-2022). Além de suas contribuições como compositor de sambas e marchas-rancho, Panela é autor do primeiro hino do Esporte Clube Vitória.

Gravado durante quatro madrugadas no Teatro Vila Velha, em Salvador, em 1973, Samba da Bahia teve a produção a cargo de Paulo Lima, o mesmo que produziu o icônico espetáculo de Gal Costa, Gal Fatal, o qual resultou no álbum ao vivo Fa-tal: A Todo Vapor, lançado em 1971. O cantor e compositor baiano Edil Pacheco fez os arranjos para todas as faixas, participando das gravações ao violão. Além disso, o álbum Samba da Bahia contou com a participação de músicos renomados como Armandinho Macedo, que tocou bandolim, e o versátil Zé Menezes (1921-2014), responsável pelo cavaquinho.

O repertório de Samba da Bahia consiste em 13 faixas, com o lado A do álbum trazendo Riachão em destaque, interpretando 7 músicas. O lado B é dividido entre Batatinha, com 4 músicas, e Panela, com 2.

Lançado pelo selo Fontana, o álbum Samba da Bahia  começa com a alegria e simpatia de Riachão na faixa "Vou Chegando". Esta composição retrata a jornada de um baiano que parte de sua terra natal rumo a São Paulo ou ao Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, levando consigo seus costumes, tradições e, evidentemente, a alegria inerente ao povo baiano. Nessa canção, Riachão celebra a fraternidade e a diversidade que permeiam a sociedade brasileira.

Riachão num estúdio de gravação nos anos 2010. 

"Fufú" é um exemplo daquilo que pode ser chamado de "samba culinário", uma canção que, só de ouvir, aguça o paladar. Neste samba, Riachão faz referência ao fufú, um prato de origem africana que foi gradativamente desaparecendo da mesa dos baianos ao longo do tempo. Em "Terra Hospitaleira", Riachão expressa profundo amor e apreço pela Bahia, exaltando seus aspectos culturais, belezas naturais, culinária e a acolhida calorosa de seu povo.

"Cada Macaco No Seu Galho" é, de longe, a faixa mais famosa do disco e um verdadeiro clássico do samba baiano. Embora Riachão tenha composto essa canção em 1964, a gravação só ocorreu em 1972, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil a interpretaram como um gesto de celebração de seu retorno ao Brasil após três anos de exílio em Londres. A escolha dessa música por Caetano e Gil não foi arbitrária; eles enxergavam nela a oportunidade, mesmo que indireta, de confrontar o regime autoritário, afirmando que estavam de volta ao lugar que lhes pertencia ("O meu galho é na Bahia"), enquanto ordenavam que se afastassem aqueles que os haviam exilado ("Cho, chuá / O seu é em outro lugar").

"Pitada de Tabaco" é um samba de versos simples, curtos e repetitivos que narra a história de um artista que, ao se apresentar em um programa de TV, contrai inesperadamente um forte resfriado que quase o leva à morte. "Ousado e Mosquito" é um samba animado que relata um episódio em que um indivíduo ousado, ao dançar com Bela, a anfitriã da festa, toca involuntariamente em seus quadris. Essa atitude desperta o ciúme de um homem mal-humorado que não aprecia o que vê e ameaça o atrevido com uma peixeira, resultando em uma confusão generalizada. O lado A encerra com "Até Amanhã", um samba que personifica o espírito descontraído do malandro baiano, que, ao perceber que a festa de samba está ficando monótona devido à predominância de homens, se despede com a promessa de voltar para casa e rever a esposa.

Oscar da Penha, o Batatinha: de tipógrafo a compositor mais
sensível do samba baiano. 

O lado B do álbum é iniciado por Batatinha com a faixa "Diplomacia", um samba que aborda a experiência de um sentimento profundo e solitário. Seus versos exploram questões universais, como a dor e a resiliência diante dos desafios da vida, refletindo a própria trajetória de Batatinha: "Meu desespero ninguém vê / Sou diplomado em matéria de sofrer".

É comum que artistas iniciantes prestem homenagem aos veteranos por suas realizações no mundo da música. No entanto, na canção "Ministro do Samba", ocorre uma inversão: é o veterano quem presta homenagem ao artista mais jovem. Nesta composição, Batatinha, um sambista com quase 50 anos na época, homenageia Paulinho da Viola, um sambista carioca de 31 anos que o mestre baiano admirava profundamente. A homenagem de Batatinha é tão bela, sincera e sensível que Paulinho da Viola escreveu uma dedicatória para o disco, destacando a grandeza artística de Batatinha, colocando-o no mesmo patamar de qualidade de Cartola (1908-1980) e Nelson Cavaquinho (1911-1986).

"Inventor do Trabalho" é uma das composições mais antigas de Batatinha, escrita na década de 1940. Este samba aborda o valor do trabalho para o indivíduo, fornecendo sustento e dignidade. No entanto, a canção também questiona a exploração da mão de obra, em que o trabalhador se dedica intensamente em troca de um salário escasso. Em 1974, "Inventor do Trabalho" foi gravada pela cantora Nora Ney (1922-2003).

Batatinha encerra sua participação no álbum com "Direito de Sambar", um samba de ritmo lento e melancólico. A letra, profundamente sensível, retrata um eu lírico que encontra na dança do samba uma forma de escapar das agruras da vida. Mesmo que seus sonhos de uma vida melhor lhe pareçam inatingíveis, o eu lírico reivindica o direito de sambar como uma maneira de se manter vivo.

As duas últimas faixas do disco são interpretadas por Panela. "Não Suje Meu Caixão" é uma composição de Panela e seu parceiro Garrafão, que reflete o desabafo de um homem traído por sua ex-mulher, a qual agora busca reconciliação. No entanto, o protagonista da canção não deseja mais a presença dela, nem mesmo para segurar a alça de seu caixão após a morte: "Eu não quero você / Nem pra pegar na alça do meu caixão. Se hoje eu vivo sofrendo / Você foi a culpada da separação". "Não Suje O Meu Caixão" foi gravado por Alcione para entrar em seu primeiro álbum A Voz do Samba (1975), porém ficou de fora do disco. Em 2010, a versão de Alcione veio à tona ao ser incluída em Sabiá Marrom - O Samba Raro de Alcione, uma compilação lançada pela gravadora Universal Music que cobre a fase da cantora maranhense na gravadora Philips, trazendo 20 faixas, três delas inéditas na voz de Alcione, dentre elas, "Não Suje O Meu Caixão".

O álbum se encerra em clima carnavalesco, com uma participação especial de Riachão que, aos gritos, anuncia: "Até quarta-feira, patrão!". Essa frase dá início a "O Patrão É O Meu Pandeiro", um samba antigo composto por Panela nos anos 1940. A letra da canção gira em torno de um trabalhador que, após um ano de esforço árduo, está ansioso para aproveitar os dias de folia carnavalesca, elegendo seu pandeiro como seu "patrão" durante o Carnaval. O Patrão É O Meu Pandeiro" foi gravada pelos Novos Baianos em 1977 para o álbum Praga de Baiano.

Nesse contexto, Samba da Bahia não é apenas um álbum de música, mas um tesouro que revela as histórias e emoções desses notáveis sambistas baianos. Suas letras e melodias nos fazem reviver a riqueza cultural e artística da música brasileira. É uma homenagem à resiliência e ao talento desses artistas que persistiram em suas paixões artísticas, superando obstáculos. A trajetória de Riachão, Batatinha e Panela é uma parte fundamental da herança musical da Bahia e do Brasil como um todo. Seus sambas são mais do que simples canções; são relatos de suas vidas e da rica tradição musical da Bahia. Ao ouvir Samba da Bahia, somos transportados para um mundo onde a música transcende as adversidades e reflete autenticamente a alma brasileira.

Faixas

Lado A - canta apenas Riachão

01 - Vou chegando (Riachão)  

02 - "Fúfú" (Riachão)

03 - "Terra Hospitaleira" (Edson Santos - Goiabinha)

04 - "Cada Macaco no Seu Galho" (Riachão)

05 - "Pitada de Tabaco" (Riachão)

06 - "Ousado e Mosquito" (Riachão)

07 - "Até Amanhã" (Riachão)


Lado B - Canta Batatinha (8 a 11) e Panela (12 e 13)

08 - "Diplomacia" (Batatinha - J. Luna)

09 - "Ministro do Samba" (Batatinha)

10 - "Inventor do Trabalho" (Batatinha)

11 - "Direito de Sambar" (Batatinha)

12 - "Não Suje Meu Caixão" (Panela - Garrafão)

13 - "O Patrão É Meu Pandeiro" (Panela - Carlos Napoli)


Confira na íntegra o álbum Samba da Bahia


Referências:

A Tarde - edição de 29 de outubro de 1998, Salvador, Bahia, Brasil.

correio24horas.com.br

dicionariompb.com.br

enciclopedia.itaucultural.org.br


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