“Manera Fru Fru, Manera” (Philips, 1973), Raimundo Fagner


Por Sidney Falcão

Quando estreou o seu espetáculo É Elis, em março de 1972, Elis Regina (1945-1982) pôs no repertório uma canção de uma dupla de jovens compositores cearenses que chamaria a atenção do público. Era a canção “Mucuripe”, de Raimundo Fagner e Belchior (1946-2017), que agradou o público e a crítica, a ponto de Elis gravar a canção para o seu álbum Elis (o “disco da cadeira”), lançado em meados daquele mesmo ano.

“Mucuripe” abriu as portas para Fagner, que gravou “Mucuripe” para um compacto da série Disco de Bolso da revista O Pasquim - cujo lado oposto trazia “A Volta da Asa Branca”, na voz de Caetano Veloso – mas também deu visibilidade a uma geração de artistas cearenses que despontava no cenário musical brasileiro no começo da década de 1970, e que logo foi rotulada pela imprensa de “Pessoal do Ceará”. Daquela geração, além de Fagner e Belchior, fizeram parte também Ednardo, Amelinha, Fausto Nilo, Rodger Rogério e Téti, dentre outros artistas, que partiram do Ceará e migraram para o sudeste brasileiro. Dentro de pouco tempo, ficariam conhecidos em todo o Brasil.

Natural da cidade Orós, no Ceará, onde nasceu em outubro de 1949, Raimundo Fagner começou a carreira musical em 1968, em Fortaleza, a capital cearense, participando de festivas de música. E foi em Fortaleza que Fagner se enturmou com um grupo de artistas e intelectuais cearenses que vai dar origem ao movimento que ficaria conhecido como “Pessoal do Ceará”.

Em 1971, participa do Festival de Música Jovem da CEUB (Centro Estudantil da Universidade de Brasília) com três músicas que conseguem boas colocações no evento: “Mucuripe” (1° lugar), parceria de Fagner e Belchior; “Manera Fru Fru” (6° lugar) de Fagner e Ricardo Bezerra; “Cavalo Ferro”, de Fagner e Ricardo Bezerra, que conquistou os prêmios de “Melhor Arranjo” e “Melhor Intérprete”. Após o festival, Fagner decide migrar para o Rio de Janeiro em meados de 1971 na busca de deslanchar a sua carreira como artista.   

Na nova morada, o ano de 1972 foi bastante positivo para Fagner que viu suas canções gravadas por artistas consagrados da música brasileira. Além de Elis, gravaram músicas de Fagner naquele ano o Quarteto em Cy (“Cavalo Ferro”, de Fagner e Ricardo Bezerra) e Wilson Simonal (“Noves Fora”, de Belchior e Fagner). Em setembro de 1972, o cantor cearense participou do 7° Festival Internacional da Canção com a música “Quatro Graus”. No final de 1972, Fagner lançou um compacto (single) com quatro canções, “Fim do Mundo", “Cavalo Ferro”, “Quatro Graus” e “Amém, Amém”.

O jovem Raimundo Fagner, em 1972, ano de grandes mudanças na carreira do cantor.

Contratado pela gravadora Philips, Fagner lançou em 15 de maio de 1973 o seu primeiro álbum de estúdio, que tem um título um tanto quanto estranho: Manera Fru Fru, Manera. Mesmo assim, a gravadora não se sentiu segura e pôs um subtítulo, Último Pau-de-Arara, mesmo nome de uma canção presente no álbum e que é um clássico da cultura nordestina.

Manera Fru Fru, Manera foi produzido por Roberto Menescal e teve Luís Carlos Ramos e Ivan Lins cuidando dos arranjos das faixas do disco. Neste seu primeiro álbum solo, Fagner contou com a participação especial de convidados músicos renomados como como Antônio Adolfo (piano), Zé Menezes (violão), Luís Cláudio Tamos (violão, guitarra e arranjos), Naná Vasconcelos (percussão) e o músico inglês Bruce Henry (baixo). A cantora Nara Leão participou do álbum fazendo dueto com Fagner em duas músicas, “Você” e “Pé de Sonhos”.

O álbum começa com “Última Pau-de-arara”, gravada pela primeira vez pela dupla Venâncio & Corumbá, em 1956. A canção é bem condizente com a própria história de Fagner e seus colegas, que deixaram o Ceará e migraram para o sudeste. A diferença é que os jovens artistas cearenses não fugiam do flagelo da seca, mas sim partiram em busca do sonho de viver de música.

Raimundo Fagner sempre foi um admirador confesso de Roberto Carlos, e neste seu primeiro álbum de estúdio, o cantor gravou “Nasci Para Chorar”, uma versão em português de “Born To Cry”, de Dion DiMucci, feita por Erasmo Carlos (1941-2022) e gravada por Roberto Carlos em seu álbum É Proibido Fumar, em 1964. A letra é sobre um indivíduo que sofre por amor ao ser desprezado pelas mulheres por quem se apaixona. E por causa disso, é interessante perceber como Fagner empregou na sua versão para “Nasci Para Chorar” ares de revolta e inconformismo na interpretação, bem diferente da versão tristonha de Roberto Carlos. A interpretação agressiva de Fagner é apoiada pela base instrumental fantástica executada pela banda Azymuth, que acompanhou o cantor nesta gravação.

“Penas do Tiê” é um dueto entre Raimundo Fagner e Nara Leão (1942-1989). Triste e melancólica, a canção teria sido composta por Fagner a partir de uma suposta canção folclórica, o que anos mais tarde seria comprovado que não era verdade. A canção começa com Nara cantando boa parte da música, enquanto que Fagner só canta já quase na reta final da canção.

Parceria de Fagner e Belchior, “Moto 1” é sobre um homem que passa por uma melancolia, e é aconselhado por alguém para esboçar uma alegria no rosto e vestir uma roupa colorida para superar essa situação. O homem melancólico é também aconselhado também a sair de casa e desfrutar da liberdade por aí: “A moto macia e leve / Pra cruzar a geografia / Da minha melancolia / Porque a vida é mesmo breve”.

“Mucuripe”, canção que deu projeção a Fagner e Belchior, retrata a vida de um jovem pescador de vinte anos que leva a sua dor e sua mágoa para as águas fundas do mar, e à noite, desfruta momentos de amor nos braços de sua namorada. Fechando o lado 1 do álbum, “Como Se Fosse”, um poema do poeta e compositor baiano José Carlos Capinam que foi musicado por Fagner, e que ganhou uma interpretação emotiva e tristonha do cearense.

Jangadas na Praia de Mucuripe, lugar que serviu de inspiração para
Fagner e Belchior comporem a canção "Mucuripe".

O lado 2 de Manera Fru Fru, Manera começa com “Pé de Sonhos”, uma canção em que Fagner conta mais uma vez com a participação especial de Nara Leão. “Pé de Sonhos” possui um clima circense que dá base a versos que falam da uma árvores de sonhos que floreia a noite inteira.

A faixa seguinte é “Canteiros”, composta por Fagner e a última a ser gravada para o disco. É uma canção cheia de citações a outras canções e até de um poema de uma poetisa famosa que levou o cantor a ter problemas judiciais. Os versos de abertura de “Canteiros” são na verdade versos adaptados por Fagner da quinta estrofe do poema “Marcha”, de Cecília Meireles (1901-1964), que sofreram adaptações para se tornarem musicáveis. Há citações de versos de “Água de Março”, de Tom Jobim (“É pau, é pedra, é o fim do caminho / É um resto de toco, é um pouco sozinho / São as águas de março fechando o verão / É promessa de vida em nosso coração”) e “Na Hora do Almoço”, de Belchior (“... E eu inda sou bem moço / Pra tanta tristeza / Deixemos de coisas / Cuidemos da vida / Senão chega a morte / Ou coisa parecida / E nos arrasta moço / Sem ter visto a vida / Ou coisa parecida aparecida”).

“Sina” é uma parceria de Fagner e Ricardo Bezerra baseada no poema “O Vaquêro”, de Patativa do Assaré (1909-2002). Os versos tratam sobre um vaqueiro que tem orgulho da sua profissão e que ela seria uma “missão divina” que ele deveria cumprir. Composta por Fagner e Ronaldo Bastos, “Tambores” traz como destaque a percussão de Naná Vasconcelos.

“Serenou” é mais uma adaptação de Fagner para uma canção do folclore nordestino, na qual o cantor conta com a participação do baixista Bruce Henry fazendo a segunda voz. Na letra, o eu lírico recebeu um bilhete de sua amada e, como resposta, envia para ela um buquê de flores. Ao final da canção, é revelado que a amada é na verdade a estrela matutina, anunciando o fim da madrugada e o raiar do dia.

O álbum encerra com a faixa-título, mais uma parceria de Fagner e Ricardo Bezerra presente no disco. “Manera Fru Fru, Manera”, a canção, seria sobre uma suposta prostituta.

Curiosamente, o álbum Manera Fru Fru, Manera não causou repercussão algum na época em que foi lançado. Ao contrário, foi um fracasso comercial: o álbum vendeu apenas cinco mil cópias, muito abaixo do esperado. O fracasso comercial do disco foi tão grande que a gravadora Philips retirou o álbum de catálogo poucos meses depois de lançado. É evidente que a retirada do disco do catálogo foi acompanhada pela dispensa de Fagner da gravadora.

Mas aos poucos, Fagner foi se recuperando do trauma do mal desempenho comercial de Manera Fru Fru, Manera. Em 1975, lançou o seu segundo álbum de estúdio, Ave Noturna, pela gravadora Continental. No ano seguinte, Fagner foi contratado pela gigante CBS, e a partir daí, começou a ganhar visibilidade como cantor. Para tirar proveito desse novo momento na carreira de Fagner, a Philips relançou o álbum Manera Fru Fru, Manera, e foi a partir daí que o grande público tomou conhecimento da canção “Canteiros”, três anos depois que o álbum foi lançado. E foi a partir daí que as “dores de cabeça judiciais” começaram para Fagner.

A canção "Sina", de Fagner e Ricardo Bezerra, baseada no poema "O Vaquêro",
do poeta cearense Patativa do Assaré.

O sucesso radiofônico de “Canteiros” chamou a atenção das filhas da poetisa Cecília Meireles. Em 1979, elas entraram na Justiça com um processa contra Fagner, acusando o artista de plágio, de usar os versos de do poema “Marcha” em “Canteiros”, como se dele fossem. O poema “Marcha” traz os versos “Quando penso no teu rosto / Fecho os olhos de saudade / Tenho visto muita coisa, menos a felicidade / Soltam-se meus dedos tristes / Dos sonhos claros que invento / Nem aquilo que imagino / Já me dá contentamento”. Esses versos foram adaptados por Fagner para “Canteiros” e viraram a primeira estrofe da canção: “Quando penso em você/ Fecho os olhos de saudade / Tenho tido muita coisa / Menos a felicidade / Correm os meus dedos longos / Em versos tristes que invento / Nem aquilo a que me entrego / Já me dá contentamento”. 

O processo judicial também acusava Fagner de ter musicado o poema “Motivo”, também de Cecília Meireles, sem autorização, e gravado pelo artista no álbum Eu Canto - Quem Viver Chorará, lançado em 1978 pela CBS, disco que vendeu mais de um milhão cópias graças ao sucesso da faixa “Revelação”. A ação judicial movida por elas foi pesada, e não se restringiu apenas a Fagner, mas também às gravadoras Philips e CBS também. Para se ter uma ideia, segundo o “Jornal do Brasil”, em sua edição de 30 de agosto de 1979, foram recolhidos das lojas de discos do Rio de Janeiro, cerca de 14 mil discos e 3 mil fitas cassetes que continham a canção “Canteiros”.

Em entrevistas, Fagner se defendeu dizendo que o álbum teria encarte no qual haveria informações de que “Canteiros” era inspirada no poema “A Marcha”, de Cecília. Mas, segundo o cantor, era regra da gravadora Philips na época, de que a companhia não autorizava encarte para disco de artista estreante.

Depois do processo judicial, a gravadora Philips substitui nas edições posteriores de Manera Fru Fru, Manera a faixa “Canteiros” por “Cavalo Ferro”, canção que a havia sido lançado em compacto em 1972. A CBS por sua vez, nas reedições de Eu Canto - Quem Viver Chorará, substituiu “Motivo” por “Quem Me Levará Sou Eu” (de Manduka e Dominguinhos).

Mas esta não foi a única batalha judicial enfrentada por Fagner. Os herdeiros do compositor Hekel Tavares (1896-1969) também processaram Fagner, afirmando que a canção “Penas do Tiê” não era uma canção folclórica, mas uma canção composta em 1928 por Hekel e Nair Mesquita. No disco, a música apareceu creditada apenas a Fagner. O artista se defendeu dizendo que o crédito como adaptador como está disco, mostraria que ele não era o autor da obra. Mesmo assim, em 2007, a Justiça deu ganho à família de Hekel Tavares.

Faixas

Lado A

1. “Último Pau-de-Arara” (Venâncio, Corumbá e José Guimarães)

2. “Nasci Para Chorar (Born To Cry)” (Dion DiMucci, versão

Erasmo Carlos)

3. “Penas do Tiê” (Hekel Tavares e Nair Mesquita / Adapt. Fagner)

4. “Moto 1” (Fagner e Belchior)

5. “Mucuripe” (Fagner e Belchior)

6. “Como Se Fosse” (Fagner e Capinan)

Lado B

1. “Pé de Sonhos” (Petrúcio Maia e Brandão)

2. “Canteiros” (Fagner e Cecília Meireles)

3. “Sina” (Fagner e Ricardo Bezerra)

4. “Tambores” (Jovem Também Tem Saudade) (Fagner e Ronaldo

Bastos)

5. “Serenou na Madrugada” (tradicional, adapt. Fagner)

6. “Manera Fru Fru, Manera” (Fagner e Ricardo Bezerra)

 

Referências: 

O Ano que Reinventou a MPB - Célio Albuquerque, Organizador, Sonora Editora, 2013, Rio de Janeiro, Brasil.

fagner.com.br

 

 

 “Último Pau-de-Arara”

 “Nasci Para Chorar”

 “Penas do Tiê”

 “Moto 1”

 “Mucuripe”

 “Como Se Fosse”

 “Pé de Sonhos”

 “Canteiros”

 “Sina”

 “Tambores”

 “Serenou na Madrugada”

“Manera Fru Fru, Manera”

Comentários

  1. ''Mucuripe'' é a única canção,de outrem,que Elis Regina e Roberto Carlos gravaram,uma coincidência inexplicável,pois enquanto a cantora gostava de desafios,o cantor gostava e gosta de facilidades.

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    1. E nada contra,adoro o repertório simples e direto de Roberto Carlos.

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