“Low” (RCA, 1977), David Bowie


Por Sidney Falcão

Embora tivesse alcançado o status de astro de primeira grandeza do rock, a vida pessoal de David Bowie (1947-2016) passava por uma grande turbulência em meados dos anos 1970. O cantor se afundava cada vez mais no uso da cocaína, e passou a  assumir hábitos estranhíssimos como uma dieta bizarra à base de leite, pimentões vermelhos e... cocaína. A alimentação inadequada o levou a perder peso, chegando a pesar 45 kg, e a ter uma pele muito branca e pálida. O consumo desenfreado de cocaína foi tão intenso nesse período que anos mais tarde, Bowie afirmou que não se lembrava das sessões de gravação do álbum Station to Station, no final de 1975. Nessa época, pouco depois de lançar Station to Station, no começo de 1976, Bowie incorporou o seu último personagem nos shows, The Thin White Duke (“O Duke Magro e Branco), uma figura magra, vestida numa camisa branca, calças e colete pretos, e que refletia muito bem a dependência de Bowie pela cocaína. A aparência estranha e pálida de Duke foi baseada num outro personagem representado por Bowie, desta vez no cinema: Thomas Jerome Newton, o alienígena humanóide do filme The Man Who Fell To Earth (no Brasil, O Homem Que Caiu Na Terra), dirigido por Nicolas Roeg (1928-2018), que veio à Terra com a missão de levar água para o seu planeta que passa por uma seca catastrófica.

O consumo excessivo de cocaína de David Bowie afetou também o seu casamento com Angie Bowie, que estava em declínio (culminou em divórcio em 1980) e também a sua relação profissional com o seu empresário Tony Defries. Como se isso não bastasse, o vício de Bowie pela cocaína havia motivado o cantor a se envolver em situações graves como a de ser acusado de fazer uma suposta saudação nazista numa estação de trem de Londres, o que Bowie negou, afirmando que estava acenando para alguma pessoa. O cantor inglês também foi acusado de estar se envolvendo com ocultismo e de manifestado admiração ao fascismo.

David Bowie em 1976, na persona de seu último personagem nos palcos,
The Thin White Duke (O Duke Magro e Branco).

Buscando se livrar da dependência da cocaína, Bowie, sua esposa e o seu filho Duncan Jones (na época com cinco anos de idade), deixaram a agitada Los Angeles e mudaram-se para a Suíça, em 1976. No entanto, em outubro daquele ano, Bowie buscou ainda uma maior reclusão mudando-se sozinho para Berlim, quando ainda era dividida por um muro separando-a em duas partes. David Bowie alugou um apartamento no lado ocidental, em cima de uma loja de peças para carros. Na nova morada, Bowie dividiu o apartamento com ninguém menos que Iggy Pop, que também passava por um problema com dependência de drogas e crise artística. Bowie havia ajudado Iggy a superar esse momento difícil, produzindo o seu primeiro álbum solo, The Idiot, gravado em meados de 1976, na França, mas só lançado em março de 1977.

Além de buscar se livrar dependência da cocaína, um outro motivo que levou David Bowie a mudar-se para Berlim foi o seu interesse pelo rock alemão, onde bandas alemãs como Neu!, Kraftwerk e Kluster, praticavam um tipo música experimental, fazendo uma ponte entre o rock e a música eletrônica. Bowie enxergava na experiência musical eletrônica alemã o futuro da música. Esse interesse de Bowie na música eletrônica já se manifestara no álbum Station To Station (1976), um trabalho de transição que trazia elementos de soul e funk (herdados do disco anterior, Young Americans, de 1975), mas que trazia o emprego dos sintetizadores, notando-se aí influência do Kraftwerk e Neu!.

Bowie pretendia prosseguir com a sua experiência com a música eletrônica no novo álbum. E para isso, ele convidou Brian Eno, ex-tecladista da banda Roxy Music, e que na carreira solo, vinha desenvolvendo um trabalho musical mais voltado para a música eletrônica. Bowie ficou bastante impressionado com os álbuns recentes do tecladista, Another Green World e Discreet Music, ambos lançados em 1975. Eno por sua vez, gostou de Station To Station, de Bowie. Enquanto Eno ficou a cargo dos arranjos, sobretudo dos sintetizadores, a produção do novo álbum teve o comando de David Bowie e do produtor Tony Visconti.

Lado ocidental de Berlim, em meados dos anos 1970, onde David Bowie morou e
gravou os discos da fase "Trilogia de Berlim".

As gravações do novo trabalho começaram já em setembro de 1976, um mês antes de David Bowie mudar-se para Berlim. Boa parte do álbum foi gravado nos estúdios Château d'Hérouville, em Hérouville, na França, e o restante do álbum foi concluído no estúdio Hansa, em Berlim. Bowie aproveitou parte do material rejeitado para a trilha sonora do filme The Man Who Fell To Earth, que foi retrabalhado e reaproveitado para o novo álbum.

Intitulado Low, o 11° álbum de estúdio de David Bowie foi lançado em 14 de janeiro de 1977. O título “low” (“baixo”), fazia uma alusão ao estado emocional de David Bowie, que travava uma batalha para superar o seu vício na cocaína. Ao mesmo tempo, o título tem a ver com o conteúdo do álbum: poucas faixas, letras curtas e sonoridade “fria” e melancólica das faixas instrumentais. Low é marcado pelo experimentalismo, onde o rock dialoga com as referências da música eletrônica alemã e da chamada ambiente music, este último, um subgênero musical praticado por Brian Eno.

Apesar das poucas faixas, Low parece dois álbuns em um. Nas versões LP, cada lado possui perfis muito distintos. Enquanto o lado 1 traz canções mais dinâmicas, em que os temas giram em torno da agorafobia, isolamento, violência, niilismo, apatia e questões pessoais do cantor, no lado 2 há um predomínio de músicas instrumentais em que os sintetizadores são os protagonistas, criando uma sonoridade esparsa, “etérea”, “gélida” e com ares futuristas. A capa reproduz a imagem de David Bowie como o alienígena humanóide que ele interpretou no filme The Man Who Fell To Earth (no Brasil, O Homem Que Caiu Na Terra).

O álbum começa com a faixa instrumental “Speed Of Life”, na qual David Bowie tocou sintetizadores que criam uma sonoridade futurista e simulam sons em movimento, como se estivessem em deslocamento. A bateria forte e segura de Dennis Davis (1949-2016) e a guitarra roqueira de Carlos Alomar dialogam muito bem com os sintetizadores. Em “Breaking Glass”, bateria e baixo seguem num ritmo vigoroso, como se estivessem batendo numa porta.

“What In The World” era destinada para Iggy Pop gravar para o seu álbum The Idiot, mas acabou o próprio Bowie gravando e contando com a participação de Iggy nos vocais de apoio. Embora tenha um emprego em demasiado de sintetizadores, a faixa tem a presença dos solos incríveis de guitarra de Rick Gardiner. “Sound and Vision” parece trazer um Bowie refletindo sobre a entediante vida em Berlim naquela época. A letra de “Always Crashing In The Same Car" seria sobre um caso de negócio de drogas mal sucedido, e teria sido baseada num incidente vivido por David Bowie quando morava em Los Angeles, no auge de sua dependência da cocaína.

David Bowie em cena do filme The Man Who Fell To Earth.

Um piano em ritmo de ragtime faz a introdução de “Be My Wife”, uma das melhores faixas de Low. A faixa é um rock vigoroso que “quebra” o predomínio da sonoridade eletrônica do disco. O lado 1 de Low termina com a faixa instrumental “A New Career In A New Town”, que começa um tanto quanto sombria, mas depois ganha ritmo mais veloz e simpático. Destaque para o solo de gaita de David Bowie.

O lado 2 do álbum tem um predomínio de faixas instrumentais. A primeira delas é “Warszawa”, uma parceria de David Bowie e Brian Eno, uma música longa e melancólica dedicada a Varsóvia, a capital da Polônia, cidade que na Segunda Guerra Mundial teve um gueto judaico exterminado pelos nazistas, após uma tentativa de revolta por parte das vítimas. As camadas sonoras de sintetizadores criam um clima musical soturno que remete ao passado triste e doloroso daquela cidade.

O sentimento melancólico prossegue na faixa seguinte, “Art Decade”. O Muro de Berlim, que dividiu a cidade alemã por três décadas, é a inspiração para “Weeping Wall”, em que Bowie faz algumas vocalizações.

Low termina com “Subterraneans”, outra peça musical rejeitada para a trilha sonora do filme The Man Who Fell To Earth. “Subterraneans” segue a dinâmica das três faixas anteriores: predomínio dos sintetizadores, e uma sonoridade densa, “etérea” e carregada de muita melancolia. A partir da metade da música, solos de saxofone com apelo jazzístico destoam de todo o clima denso e melancólico propagado pelos sintetizadores.

Apesar de Low não ter alcançado um bom desempenho comercial, David Bowie persistiu com a linha experimental do disco nos dois trabalhos seguintes, “Heroes” (1978) e Lodger (1979), que concluíram a famosa “Trilogia de Berlim”. As texturas sonoras dos sintetizadores de Low inspiraram um subgênero pós-punk, a cold wave (“onda fria”), um estilo que guarda parentesco com o synthpop, porém é mais meditativo e desacelerado, e que tem na banda britânica Joy Division, a sua mais importante representante. Uma das músicas da Joy Division, “Warsaw”, foi inspirada em “Warszawa”, faixas de Low.

Faixas

Todas as faixas são de autoria de David Bowie, exceto as indicadas.

Lado A

  1. "Speed of Life"
  2. "Breaking Glass" (Bowie, Dennis Davis, George Murray)
  3. "What in the World"
  4. "Sound and Vision"
  5. "Always Crashing in the Same Car"
  6. "Be My Wife"
  7. "A New Career in a New Town"  

Lado B

  1. "Warszawa" (Bowie, Brian Eno)
  2. "Art Decade"
  3. "Weeping Wall"
  4. "Subterraneans"

 

Referências:

Revista Bizz, edição 002, setembro de 1985, Editora Abril, São Paulo, Brasil.

Bowie album by album – Paolo Hewitt, Palazzo Editions, 2016, Londres, Reino Unido.

The Bowie Years Vol. 2 – abril/2018, Anthem Publishing, Bath, Reino Unido

David Bowie: Sound and Vision (filme-documentário), direção: Rick Hull, A&E Television Networks, 2002.

 

Ouça na íntegra o álbum Low


"Be My Wife" (videoclipe oficial)


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