“Elis” (Philips,1972), Elis Regina
Por Sidney Falcão
No início
dos anos 1970, Elis Regina (1945-1982) já era uma cantora de grande prestígio
no cenário musical brasileiro. Porém, a artista passava por um processo de mudanças
tanto na vida pessoal como na profissional. Seu casamento conturbado com o
compositor, produtor musical e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928-1994), estava
chegando ao fim.
Na carreira
profissional, a artista passava por um processo de transição. Ao final da
década de 1960, Elis era uma cantora que, embora fosse jovem, era vista como
uma cantora defasada, obsoleta. A música brasileira naquele fim de década,
passava por transformações, sob a influência do Tropicalismo e da música pop
internacional da época. O rock psicodélico estava em alta, a soul music
dominava as paradas americanas e começava chegar ao Brasil. O público jovem
brasileiro estava em completa sintonia com essas transformações. A postura
intransigente de Elis Regina em defesa de uma música brasileira “purista” (ela
liderou a famigerada “Passeata contra a guitarra elétrica”, em 1967), deu à
cantora uma imagem de cantora “obsoleta”, mesmo com pouco mais de 24 anos de
idade.
Para
reverter essa situação, a cantora passou a flertar com a soul music, o rock e o
samba-jazz através dos álbuns Em Pleno Verão (1970) e Ela
(1971), ambos produzidos por Nelson Motta, dois trabalhos que fizeram o
processo de transição que afastaram Elis Regina da sua postura radical e
nacionalista da década anterior, e ampliava o seu leque musical, preparando uma
nova artista para a década que se iniciava e que a consagraria através de uma
sequência de álbuns fantásticos.
O ano de
1972 foi um ano em que se fechou um ciclo na vida de Elis Regina e iniciou-se
um novo ciclo, em todos os aspectos. Naquele ano, finalmente, o combalido
casamento de Elis e Ronaldo Bôscoli chegou ao fim. Enquanto isso, na vida
profissional, as transformações prosseguiam. Sua banda de apoio sofreu uma
profunda mudança de integrantes, mudança essa que já havia iniciado no ano anterior,
com a chegada do tecladista César Camargo Mariano. O tecladista assumiu também o
posto de diretor musical de Elis, e se tornaria em breve, uma figura
fundamental nesse processo de transformação musical no trabalho da cantora e,
claro, na vida pessoal dela. Em 1972, a formação da banda da cantora se firmou
com Paulo Braga (bateria), Luisão Maia (baixo), Hélio Delmiro (guitarra), Chico
Batera (percussão) e o próprio César Camargo Mariano (teclados).
Com essa
nova banda, Elis ensaiou um novo repertório para um novo disco e que foi
apresentado ao público em março de 1972, quando estreou no Teatro da Praia, no
Rio de Janeiro, o espetáculo É Elis.
Por outro
lado, na vida pessoal, Elis Regina vivenciava um novo momento. Separada de
Bôscoli, Elis iniciou um romance com César Camargo Mariano, o tecladista de sua
banda, uma relação que durou nove anos e da qual gerou dois filhos, os cantores
Pedro Camargo Mariano e Maria Rita. A relação de Elis e César foi profícua,
seja no amor, seja no campo profissional. César foi responsável pelos arranjos
dos álbuns da fase mais importante da carreira de Elis Regina, que foi a década
de 1970.
Ainda em
1972, nem tudo foi as mil maravilhas para Elis. Em setembro daquele ano, Elis
foi obrigada pela ditadura militar (1964-1985) vigente no Brasil a se
apresentar nas Olimpíadas do Exército e a gravar uma propaganda para a Semana
da Pátria. Essa apresentação causou surpresa na classe artística, que se
mostrava avessa ao regime ditatorial. Elis era uma das maiores cantoras do país
naquele momento, e até então, sua imagem era pouco ou nunca vinculada a
posicionamentos políticos.
Sua
apresentação no tal evento militar gerou indignação do cartunista Henfil
(1949-1988) que fez uma dura charge publicada no jornal “O Pasquim” contra a
cantora. Elis sentiu-se magoada e ofendida pela charge do cartunista. O que
poucos sabiam é que Elis sofreu ameaças por parte dos militares, e tudo por
causa de uma entrevista que ela deu a uma revista holandesa em 1968, durante
uma turnê europeia. Na entrevista, ela afirmou que o Brasil era “governado por
gorilas”. Somente três anos depois, os militares souberam da tal entrevista, e
ainda assim, resolveram dar uma punição à artista.
A humilhação
sofrida perante o Exército e a imagem que passou para os colegas artistas de
que supostamente ela seria uma apoiadora da ditadura, mexeram com Elis Regina,
e também levaram a cantora a se fazer profundos questionamentos e reflexões.
Elis percebia que sendo uma artista importante e influente, era necessário ter
um posicionamento político claro e definido para o público.
Todos esses
acontecimentos se refletiram no próximo e importante álbum de Elis Regina,
intitulado simplesmente como Elis, também conhecido como “disco
da cadeira”. Foi o primeiro álbum da cantora lançado após o fim de seu
casamento com Ronaldo Bôscoli. O disco foi produzido por Roberto Menescal, um
velho amigo de Elis, e marcou a estreia de César Camargo Mariano como
arranjador dos discos da cantora gaúcha.
Elis, o álbum, ressalta o processo de
mudança, de modernização musical que Elis Regina vinha passando a partir dos
dois discos anteriores, mas que aqui, se mostra mais evidente, tanto nos
arranjos quanto nas letras. O repertório do álbum é impecável, selecionado por
Elis e Roberto Menescal, que na época, além de produtor, era diretor musical da
gravadora Philips.
O álbum traz
também Elis gravando canções de novos compositores - um hábito que aliás, que ela
sempre teve desde o início da carreira - e que se tornariam famosos mais tarde
como Zé Rodrix (1947-2009), Raimundo Fagner, Belchior (1946-2017), Ivan Lins, João
Bôsco, Aldir Blanc (1946-2020), Sueli Costa e Vítor Martins. Mas também traz
canções de compositores consagrados como Tom Jobim (1927-1994), Chico Buarque e
Milton Nascimento.
A capa do
disco mostra uma Elis Regina feliz, alegre, resplandecente, trajando um vestido
branco e sentada numa cadeira de balanço num gramado. Era o reflexo do momento
em que a cantora estava vivendo: um novo amor e um novo direcionamento
profissional.
O álbum começa
com “20 Anos Blue”, uma parceria de Sueli Costa e Vítor Martins (que mais tarde
se tonaria um grande parceiro de Ivan Lins). A canção é uma tradução do momento
que Elis vivia, uma jovem com pouco mais de vinte anos e que passa por um
processo de mudanças na vida. “Bala Com Bala” é do então desconhecido João
Bôsco em parceria com Aldir Blanc, que juntos, formariam uma das mais notáveis
duplas de compositores da música brasileira. A canção é um samba jazz
sensacional, com um balanço irresistível em que Elis canta de forma veloz
impressionante sem atropelar a métrica.
O álbum Elis, de 1972, traz canções de uma nova geração de compositores da MPB que despontava no começo dos anos 1970, como João Bosco e Aldir Blanc (foto), autores de "Bala com Bala". |
“Nada Será Como Antes” é uma canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, e foi gravada pelo próprio Milton para o antológico álbum Clube da Esquina, lançado naquele ano de 1972. A canção é uma homenagem aos amigos exilados no exterior ou desaparecidos por causa da repressão da ditadura militar. Elis se encantou com a canção e decidiu gravá-la para o seu álbum. Para Elis, os versos teriam um sentido particular, bem condizentes com a fase de liberdade que estava vivendo após separar-se de Ronaldo Bôscoli. A frase “nada será como antes”, de fato, fazia todo sentido: ela vivia um novo amor que lhe permitia mais liberdade de criar, de trabalhar e de viver.
A faixa
seguinte é “Mucuripe”, de Raimundo Fagner e Belchior, dois compositores
representantes do chamado “pessoal do Ceará”, uma geração notável de cantores e
compositores cearenses que começava a despontar no cenário musical brasileiro
no começo da década de 1970. “Mucuripe” é uma canção praieira que descreve em
seus versos os pescadores que partem com seus barcos da Praia de Mucuripe, em
Fortaleza, em direção ao mar para mais um dia de trabalho. A versão de Elis é
uma canção lenta, que começa com violão, seguido por piano e um belo naipe de
cordas.
“Olhos
Abertos”, de Zé Rodrix e Guarabyra, é uma canção de lindos versos que parecem
pregar a amizade, a integração das pessoas, ainda que pensem de maneira
diferente umas das outras: “Eu preciso encontrar as pessoas / Ficar de mãos
dadas com elas / Conversar com a boca e os olhos do coração”.
Fechando o
lado 1 do álbum, Elis Regina revisita uma canção que fez sucesso na voz de
Ângela Maria (1929-2018), em 1953: “Vida de Bailarina”. Elis sempre manifestou
uma admiração por Ângela Maria desde criança, quando morava em Porto Alegre e a
tinha como grande inspiração.
O lado 2 do
álbum começa com “Águas de Março”, de Tom Jobim mas não é a famosa versão em
que Elis faz um dueto com Tom. Essa versão só seria gravada em 1974, para o
disco Elis & Tom. A versão de 1972 tem apenas Elis Regina
cantando sozinha. Ainda assim, não foi a primeira versão. Tom Jobim já havia
gravado “Águas de Março” em 1972, porém meses antes de Elis, e que foi lançada
num compacto distribuído como brinde na edição de maio daquele ano do jornal O
Pasquim.
A faixa
seguinte é a emocionante “Atrás da Porta”, canção composta por Chico Buarque e
Francis Hime, com Elis Regina numa interpretação com forte carga dramática.
Elis, que havia saído de um casamento sofrido, se identificou com a dor da personagem
da letra da canção, uma mulher menosprezada e abandonada pelo homem que amava.
César Camargo Mariano acompanha Elis ao piano, em versos carregados de
melancolia e desespero.
Outra canção
do clássico álbum Clube da Esquina presente em Elis
é a canção “Cais”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos”, cuja letra versa
sobre alguém que tenta sobreviver à solidão. A versão do álbum Elis
começa num estado de tensão promovido pelo naipe de cordas e com Elis Regina
fazendo vocalizações. César Camargo Mariano toca cravo nesta faixa.
Elis regravou para o seu álbum de 1972, "Nada Será Como Antes" e "Cais", duas canções do álbum Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges. |
Após a
melancolia das duas faixas anteriores, o clima fica mais animado com o samba
jazz “Me Deixa Em Paz”. Composta por Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Sousa, “Me
Deixa Em Paz” é sobre um amor que acabou, que chegou ao fim, e o eu lírico se
mostra feliz por ter se libertado de uma relação que lhe era um fardo. Parece
que foi feita sob medida para Elis, pois a letra tem tudo a ver com o fim do
casamento da cantora com Ronaldo Bôscoli.
“Casa No
Campo” foi composta por Zé Rodrix e Tavito (1948-2019), foi defendida pelo
próprio Zé Rodrix no VI Festival Internacional da Canção, em 1971, e
encantou Elis Regina, que foi a presidente do júri daquela edição do festival.
Elis decidiu gravá-la para o seu álbum, e se tornou um clássico do chamado rock
rural, uma vertente do rock brasileiro que estava em ascensão no começo dos
anos 1970, e que fundia rock, folk music, música sertaneja e música nordestina.
“Casa No Campo” tem versos carregados de bucolismo, celebra a amizade e a vida
simples no campo, distante da vida acelerada e consumista das grandes cidades. Destaque
para o lindo naipe de cordas, para o piano, cravo e violões.
O álbum
termina com “Boa Noite Amor”, uma canção que é uma cantiga de ninar, mas que na
verdade tem um tom de despedida. “Boa Noite Amor” foi originalmente gravada
pelo cantor Francisco Alves (1898-1952), em 1936, e em 1950, ele a regravou.
Elis teve uma boa recepção por parte do
público e da crítica. O álbum vendeu mais de 100 mil cópias. Faixas como “Atrás
da Porta”, “Casa No Campo” e “Nada Será como Antes” tornaram-se obrigatórias no
repertório de shows de Elis Regina.
Faixas
Lado 1
1."20
Anos Blue" (Vitor Martins - Sueli Costa)
2."Bala
com Bala" (Aldir Blanc - João Bosco)
3."Nada
Será como Antes" (Milton Nascimento - Ronaldo Bastos)
4."Mucuripe"
(Belchior - Fagner)
5."Olhos
Abertos" (Guarabyra - Zé Rodrix)
6."Vida
de Bailarina" (Americo Seixas - Dorival Silva)
Lado 2
7."Águas
de Março" (Antônio Carlos Jobim)
8."Atrás
da Porta" (Chico Buarque - Francis Hime)
9."Cais"
(Milton Nascimento - Ronaldo Bastos)
10."Me
Deixa Em Paz" (Ronaldo Monteiro - Ivan Lins)
11."Casa
no Campo" (Tavito - Zé Rodrix)
12."Boa
Noite Amor" (Francisco Mattoso - José Maria de Abreu)
Referências:
Elis - uma biografia musical – Arthur de Faria, 2015, Arquipélago
Editorial, Porto Alegre, Brasil
elisregina.com.br
g1.globo.com
wikipedia.org
O álbum favorito dos críticos e entendidos,eu prefiro os dois anteriores,principalmente o de 1971,excelente,o ''Saudade do Brasil'' Vol 2 também está na categoria máxima.
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