“Spice” (Virgin Records, 1996), Spice Girls


Por Sidney Falcão

O ano era 1996, e o Reino Unido vivenciava o auge das bandas de britpop, sobretudo Oasis e Blur, as bandas que tinham maior prestígio e protagonizavam uma rivalidade entre elas bastante acirrada. Ao mesmo tempo, o período marcava o declínio da geração de boybands britânicas da primeira metade dos anos 1990, da qual faziam parte Take That e East 17, que após muito sucesso e milhões de discos vendidos, estavam chegando ao fim.

Em meio a esse cenário da música pop da terra da Rainha Elizabeth II, naquele ano de 1996, um quinteto de garotas escalava as paradas de sucesso com uma canção que era um misto de pop e hip hop. Eram as Spice Girls e seu single “Wannabe” estourando nas paradas de rádio e em vendas de singles. Estava começando então uma “febre” pop que iria não só alcançar todo o Reino Unido como o resto do planeta, e que duraria os próximos dois anos.

A história das garotas começa em janeiro de 1994, quando os empresários Bob Herbert (1942-1999) e Chris Herbert, pai e filho, proprietários da Heart Management, uma agência de gerenciamento de talentos de Londres, tiveram uma ideia de criar um grupo musical formado apenas por garotas. Naquela primeira metade dos anos 1990, o mercado musical britânico estava saturado de boybands. A tática era apostar em algo diferente, e foi então que nasceu a ideia de formar um grupo musical feminino. Um anúncio da Heart Management foi publicado na revista The Stage, recrutando garotas entre 18 e 23 anos para participarem de um processo de seleção para a formação de um conjunto musical feminino.

Em março de 1994, mais de 400 garotas participaram do processo de audição e seleção. As finalistas foram Melanie Chisholm, Melanie Brown, Victoria Adams, Geri Halliwell e Michelle Stephenson. Assim estava formado o quinteto, que teve como primeiro nome Touch. As meninas mudaram-se para uma casa em Maidenhead, onde foram morar juntas. Os primeiros meses foram de muito trabalho, ensaios de canto e coreografia, e gravação de fitas demo de canções escritas por compositores parceiros dos empresários da Heart Management.

Porém, em julho do mesmo ano, Michelle Stephenson deixou precocemente o grupo por questões particulares. Em seu lugar entrou Emma Bunton. Com sua entrada, o grupo foi renomeado para Spice, baseado numa das canções que o grupo havia gravado nas fitas demo, “Sugar and Spice”.

Sem contrato assinado e insatisfeitas com a relação de trabalho com a Heart Management, as garotas romperam com a agência, em outubro de 1994. Levaram com elas fitas de vídeo e áudio com performances coreográficas e algumas canções gravadas por elas para apresentar para outros agentes interessados em trabalhar com o quinteto. Em março de 1995, através da ajuda de contatos que elas possuíam, conseguiram um contrato com Simon Fuller, diretor da agência 19 Entertaiment, que passou a gerenciar a carreira do quinteto feminino. Com a orientação do novo empresário, o grupo já era disputado por algumas gravadoras, mas foi com a Virgin Records que o quinteto assinou contrato, em setembro de 1995. As meninas tiveram que mudar o nome do grupo mais uma vez porque já havia um rapper usando o nome Spice. Foi então que elas passaram a se chamar Spice Girls, e desta vez, foi em definitivo. A partir daí, as meninas seguiram compondo e ensaiando canções para o primeiro álbum que iriam gravar.

Spíce Girls no início da carreira num ensaio em 1995.

Entre setembro de 1995 e junho de 1996, as Spice Girls passaram esse período gravando em estúdio material para o primeiro álbum. O primeiro single, “Wannabe” foi lançado em julho de 1996, e alcançou o 3° lugar da parada de singles do Reino Unido. Duas semanas depois, chegou ao 1° lugar, onde ficou por sete semanas. A canção fez um sucesso em escala planetária, chegando ao topo das paradas de mais de trinta países. No disputadíssimo mercado americano, onde foi lançado no começo de 1997, o single de “Wannabe” permaneceu por quatro semanas em 1° lugar na Billboard Hot 100. O videoclipe de “Wannabe” fez um sucesso arrasador no canal de TV britânico de música The Box, chegando a ser exibido setenta vezes por semana.

O segundo single, “Say You’ll Be There”, chegou às lojas em outubro de 1996. Figurou no topo da parada de singles do Reino Unido, chegando à marca de 968 mil cópias vendidas, o que fez as garotas terem sido contempladas com disco de platina. O single foi top dez em boa parte dos países da Europa. Nos Estados Unidos, o single foi 3° lugar na Billboard Hot 100 e vendeu mais de 900 mil cópias. Apenas com dois singles lançados, as meninas já estavam cruzando planeta seja para shows ou apenas para divulgação do trabalho delas.

Com o ótimo desempenho dos singles de “Wannabe” e de “Say You’ll Be There”, já estourados nas paradas mundiais, o público mal podia esperar pelo álbum de estreia das Spice Girls que estava por vir. 

O álbum de estreia das Spice Girls finalmente foi lançado em 4 de novembro de 1996. Intitulado apenas como Spice, o primeiro álbum do quinteto feminino britânico é um trabalho essencialmente pop. Ao longo das dez faixas do álbum, percebe-se no trabalho musical das meninas referências de R&B, funk, rap e até mesmo disco music, tudo feito de uma maneira bem estilizada e acomodada dentro de uma embalagem pop. Um detalhe interessante é que todas as canções do álbum têm os créditos compartilhados entre as cinco garotas.

“Wannabe” é a faixa que abre o álbum, a mesma que foi lançada anteriormente como o primeiro single das Spice Girls. Misto de pop “chiclete” com hip hop, “Wannabe” trata sobre o valor da amizade feminina, e que nem mesmo um relacionamento amoroso de alguma delas está acima dessa amizade. Assim como a música, o videoclipe de “Wannabe” fez um enorme sucesso, principalmente pelo seu incrível plano-sequência, onde não há cortes nas imagens.

A segunda faixa foi o segundo single das meninas, “Say You’ll Be There”, música que conta com a participação de Judd Lander no solo de gaita. O tema da letra da música é sobre o direito da garota em expressar o quer e como quer vivenciar uma relação amorosa, e ter a liberdade de pôr um ponto final nesse relacionamento quando ela sente que não há uma entrega, uma contrapartida da pessoa com quem ela se relaciona. Uma curiosidade em “Say You’ll Be There” é que a linha melódica de seu refrão é descaradamente copiado da do refrão de”What UR 2 Me”, canção de 1995 do grupo americano de rap After 7.

Cena do videoclipe de "Say You'll Be There".

Depois de duas faixas dançantes, o clima se acalma com “2 Become 1”, uma balada romântica com vocais suaves, doces e agradáveis. A letra é sobre a relação de dois amantes, em que os versos sutilmente se referem a uma relação sexual. Em “Love Thing”, uma garota desiludida com o amor, expressa o desejo de não se prender a ninguém. “Last Time Lover” é uma música de ritmo lento, vocais cheios de sensualidade e sedução, nos quais há uma predominância das performances de Mel B e Geri.

“Mama” é uma canção em que as Spice Girls prestam uma bonita e sensível homenagem às suas mães. Aliás, não só às delas, mas a todas as mães. A letra retrata os conflitos naturais dos filhos durante a adolescência com as mães, quando a proteção materna em alguns momentos é incompreendida, mas que só mais tarde, quando esses filhos chegam à maturidade, passa a ser melhor avaliada e mais valorizada. 

“Who Do You Think You Are” é uma das faixas mais dançantes do álbum, é música para pistas. Possui uma batida rítmica inspirada na disco music, porém com uma leitura mais contemporânea. A letra trata sobre a ilusão da fama e de como ela pode ser traiçoeira para quem é artista: “Você está seguindo na direção errada / Você foi infectado pela febre da fama / Você está bancando o bonzão há tempo demais / Tentando se dar bem, mas você está errando”.

A elegância e o toque sofisticado dos arranjos são as qualidades da faixa seguinte, “Something Kinda Funny”, uma música com um balanço R&B evolvente, uma guitarra funky e um baixo bem presente.

“Naked” é uma balada pop com um ritmo dançante, mas uma letra um tanto quanto obscura, sombria. Parece se referir sobre um assédio sexual sofrido por uma mulher durante a sua infância, e que na vida adulta, busca superar esse trauma. O assunto é tratado de forma muito sutil, mas que ao mesmo tempo, deixa pistas sobre um tema tão sofrido.

O álbum chega ao fim com “If U Can’t Dance”, um pop dançante em que há fusão de referências de hip hop e música latina. Alguns versos da música são cantados em espanhol por Geri Halliwell.

Spice teve um desempenho comercial simplesmente fenomenal. Para se ter uma ideia, as Spice Girls foram o grupo com venda de discos mais rápida no Reino Unido desde os Beatles. No Reino Unido, o álbum vendeu mais de 2,6 milhões de cópias. Na França foi 1 milhão, Alemanha 750 mil e Japão 718 mil. No tão sonhado e disputado mercado fonográfico dos Estados Unidos, o álbum de estreia das Spice Girls chegou à marca de 7 milhões de cópias vendidas. Estima-se que em todo o mundo, o álbum tenha vendido mais 23 milhões de cópias, o que tornou Spice o álbum de conjunto musical feminino mais vendido em todos os tempos.

Além dos dois singles lançados antes do álbum, como “Wannabe” e “Say You'll Be There”, outros dois singles foram lançados após o álbum, “2 Become 1”, em dezembro de 1996, e “Mama” / “Who Do You Think You”, em março de 1997.

As Spice Girls no auge, em 1997, da esquerda para a direita: 
Melanie Chisholm (Melanie C), Geri Halliwell (Ginger Spice), Emma Bunton (Baby Spice), 
Melanie Brown (Scary Spice) e Victoria Beckham (Posh Spice).

O sucesso do álbum ajudou a desencadear em todo o planeta a “spicemania”, que catapultou as Spice Girls para o estrelato da música pop mundial, atraindo uma legião de fãs, sobretudo, meninas adolescentes que sonhavam ser um dia como elas. Não foi à toa que o sucesso das cinco garotas já era comparado à “beatlemania” dos anos 1960. Durante cerca de dois anos, as Spice Girls eram praticamente onipresentes. Além disso, Spice reacendeu o interesse do público e do mercado fonográfico pela música pop adolescente, o que fez surgir uma infinidade de novos cantores e conjuntos musicais adolescentes.

Através do álbum Spice, as Spice Girls disseminaram a expressão “girl power” (poder feminino), um termo que já era usado nos anos 1980 por alguns grupos de ativistas feministas, mas que ganhou maior dimensão com as Spice Girls, a partir de meados dos anos 1990. O quinteto pregava que todas as garotas podiam ser o que quisessem e como quisessem. Era o empoderamento feminino sendo propagado pelas Spice Girls para milhões de meninas adolescentes em escala global.

A super exposição das garotas britânicas era tão grande que elas acabaram ganhando apelidos que de uma certa maneira, tinham a ver com o perfil de cada uma delas. Melanie Brown (também conhecida como Mel B), era a Scary Spice, por causa do seu jeito selvagem; Melanie Chisholm, a Mel C, era a Sporty Spice, por causa do figurino esportivo; Geri Halliwell, era Ginger Spice, a mais sexy e sedutora do grupo; Emma Bunton, era Baby Spice, por ser a mais nova do grupo e a que tinha jeitinho mais doce; Victoria Adams (depois Beckham, após se casar com o jogador de futebol David Beckham), era Posh Spice, por ser a mais elegante e sofisticada. 

Como todo astro pop de grande visibilidade, uma série de produtos com a imagem e a marca das Spice Girls foi lançada no mercado: cadernos, revistas bonecas, refrigerantes, produtos alimentícios e até mesmo, acredite...papel higiênico. A conta bancária das Spice Girls estava cada vez mais milionária.

Spice rendeu às Spice Girls vários prêmios como o MTV Europe Music Awards, em 1997, de “Melhor Vídeo” (por “Say You’ll Be There”), e Billboard Music Awards na categoria “Álbum do Ano”, por Spice, também em 1997.

Spice Girls na premiação do MTV Europe Music Awards, em 1997. 

Ainda em 1997, no rastro do sucesso do álbum de estreia, as Spice Girls lançaram o filme Spiceworld, que embora tenha sido sucesso de bilheteria, sofreu duras críticas por parte da imprensa. O segundo álbum, que também leva o nome do filme, lançado no final daquele ano, teve uma vendagem alucinante: 7 milhões de cópias vendidas nas duas primeiras semanas de lançamento.

Mas a partir de 1998, os efeitos colaterais da super exposição começaram a afetar o grupo. Geri deixou as Spice Girls para se dedicar à carreira solo. Paralelo à carreira com o grupo, as outras integrantes também lançaram suas canções em carreira solo. As Spice Girls ainda lançaram mais um álbum, Forever (2000), o primeiro como quarteto, mas sem o mesmo brilho do trabalho inicial. Nos anos seguintes, o que se viu foram idas e vindas do quarteto para turnês saudosistas “caça-níqueis”, mas sem nada realmente concreto de uma retomada da carreira do grupo como algo mais consistente e regular.

O que fica de legado das Spice Girls é de ter sido o conjunto musical feminino de maior sucesso comercial da história da música pop. Fica também a bandeira do “girl power” que as Spice Girls ajudaram a propagar pelos quatro cantos do mundo, embora o quarteto tenha sofrido críticas da ala feminista mais ortodoxa, que via esse posicionamento delas como uma estratégia mercadológica.

Mas o distanciamento do tempo mostra que, ainda que a ideia tenha partido de um conjunto de música pop de grande apelo comercial, a postura libertária das Spice Girls foi assimilada pelas meninas adolescentes da década de 1990. Elas foram apresentadas pela primeira vez ao empoderamento feminino por aquelas cinco estrelas da música pop.

As Spice Girls foram provavelmente uma porta de entrada para que aquelas adolescentes adentrassem para um assunto tão importante, e que com o amadurecimento da idade, ao se tornarem mulheres, elas iriam se aprofundar no assunto, iriam descobrir uma infinidade de outras tantas mulheres que ao longo da História, contribuíram para a independência e a autoafirmação femininas. Talvez esse seja o maior legado das Spice Girls, e não os recordes fantásticos de vendas de discos ou os estádios e arenas apinhados de milhares de fãs alucinados para assistirem a uma apresentação do grupo.

Faixas

1."Wannabe" (Spice Girls / Richard Stannard / Matt Rowe)

2."Say You'll Be There" (Spice Girls / Jon B / Eliot Kennedy)

3."2 Become 1" (Spice Girls / Stannard / Rowe)

4."Love Thing" (Spice Girls / Kennedy / Cary Bayliss)

5. "Last Time Lover" (Spice Girls / Andy Watkins / Paul Wilson)

6."Mama" (Spice Girls / Stannard / Rowe)

7."Who Do You Think You Are" (Spice Girls / Watkins / Wilson)

8."Something Kinda Funny" " (Spice Girls / Watkins / Wilson)

9."Naked" (Spice Girls / Watkins / Wilson)

10."If U Can't Dance" (Spice Girls / Stannard / Rowe)

 

Referências:

Revista Bizz, edição 141, abril/1997, Editora Azul, São Paulo, Brasil

wikipedia.org


Ouça na íntegra o álbum Spice


"Wannabe"
(videoclipe original)

"Say You'll Be There"
(videoclipe original)

"2 Become 1" 
(videoclipe original)

"Mama" 
(videoclipe original)

"Who Do You Think You Are"
(videoclipe original)







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