“Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets” (Polydor, 1972), Mutantes
Por Sidney Falcão
Começo dos
anos 1970. Os Mutantes tropicalistas em formato de trio era coisa do passado. A
banda paulista passava naquele momento por um processo de transformação que
alterará desde a sua formação até a sua orientação musical. A partir do álbum A
Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970), os Mutantes se tornaram
um quinteto ao efetivar o baixista Liminha e o baterista Dinho Leme, que já
atuavam com a banda em shows e gravações, mas apenas como músicos de apoio.
No campo
musical, Mutantes estavam em transição. Saiam do experimentalismo psicodélico
dos tempos tropicalistas para flertar com as novas tendencias do rock que
estavam franca ascensão na época como o hard rock e o rock progressivo. Mesmo
assim, a irreverência e o humor debochado dos tempos tropicalistas ainda se
mantinham presentes nas novas canções da banda.
A
transformação que a banda vivenciava passava também pelo modo de convivência
entre os seus integrantes. Sob total influência da filosofia hippie, os
integrantes dos Mutantes passaram a viver como comunidade em casas da Serra da
Cantareira, em São Paulo, em meio à natureza. A tranquilidade e o bucolismo do lugar
inspiravam a banda a compor novas canções e a ensaiar por horas intermináveis.
Para “expandir a mente” e a criatividade, havia o consumo de LSD dentro da
banda. A busca incessante por parte dos músicos por uma sonoridade mais
sofisticada, era uma clara evidência da influência de bandas estrangeiras de rock
progressivo como Yes e Emerson Lake & Palmer no trabalho dos Mutantes.
A dedicação focada no processo criativo dos membros dos Mutantes, a evolução musical, o público
fiel nos shows da banda e o prestígio perante a imprensa, não se traduziam em
boas vendagens de discos. O álbum Jardim Elétrico, por exemplo,
lançado em março de 1971, embora tivesse uma capa bem ousada e atrativa, e ter
a faixa “Top Top” com boa execução em rádio, foi um fracasso em vendas. Dentro
da gravadora Polydor, o “sinal de alerta” estava aceso para os Mutantes. Até
mesmo o empresário dos Mutantes, Marcos Lázaro, estava mais preocupado em se
dedicar às carreiras de seus outros artistas, como Roberto Carlos e Elis Regina,
que eram muito mais rentáveis. Pelo menos, os Mutantes conseguiram assinar um
contrato com a TV Globo para serem atração fixa no programa Som Livre
Exportação, o que dava alguma visibilidade à banda paulista.
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Os Mutantes ensaiando numa casa de campo na Serra da Cantareira, em 1972. |
Em dezembro
de 1971, Rita Lee e Arnaldo Baptista se casaram. Porém, cometeram um ato no
mínimo curioso. Na volta da lua-de-mel, o casal foi ao programa de TV da
apresentadora Hebe Camargo (1929-2012), e lá rasgaram a certidão de casamento
diante das câmeras.
Ano novo,
álbum novo. Os Mutantes entraram no estúdio RCA-Scatena, em São Paulo, em
janeiro de 1972, para gravar o seu quinto álbum de estúdio, Mutantes e
Seus Cometas no País do Baurets, sob a produção de Arnaldo Baptista.
Se o
processo de gravação ocorreu na mais “santa paz”, o lançamento do novo álbum
travou na Censura. Eram tempos de ditadura militar no Brasil, e qualquer obra
artística tinha que passar crivo da Censura. Nada poderia ofender o regime
ditatorial em vigor no Brasil na época. A música “Cabeludo Patriota” foi
censurada por uma série de fatores, a começar pelo título, que os censores julgavam
ser uma provocação. Ela foi rebatizada para “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”. Outra
mudança foi o verso “o meu cabelo é verde e amarelo”: mudou para “o
meu cabelo é verde e dourado”. A Censura implicou com o verso “a minha
caspa é de purpurina”; a expressão “caspa” foi considerada “plasticamente
feia”. Saiu “caspa” entrou “cara”.
A Censura só
viu a letra, mas não ouviu a gravação. Num ato de rebeldia, ao invés dos
Mutantes regravarem a canção com os versos alterados, a banda decidiu manter a
gravação original, mas inserindo ruídos vocais cobrindo parcialmente as
palavras censuradas. O álbum foi lançado desse jeito, em maio de 1972, sem
nenhum problema.
Com cerca de
dois meses de atraso por causa da Censura, o álbum Mutantes e Seus
Cometas no País do Baurets foi lançado em maio de 1972. O curioso
título é uma mistura de referências como Bill Halley & His Comets (um dos
conjuntos pioneiros do rock’n’roll) e o livro Alice no País das Maravilhas,
de Lewis Carrol (1832-1898). Já a estranha expressão “baurets” era uma gíria que
o cantor Tim Maia (1942-1998) usava para se referir aos cigarros de maconha.
A arte da capa
de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets é do
ilustrador francês Alain Voss (1946-2011), o mesmo artista que criou a capa de Jardim
Elétrico. Na capa de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets aparecem
os cinco integrantes dos Mutantes num visual psicodélico. Rita Lee está no topo
da ilustração, com a asas no lugar dos braços e os seios parecendo nádegas.
Encostada atrás de Rita, está uma figura que parece ser um inseto grande.
Sérgio Dias está ouvindo o som do seu próprio coração através de um fone de
ouvido. Arnaldo Baptista segura um objeto estranho que está ligado a Liminha.
No canto inferior esquerdo, o que parece ser um braço de guitarra ou de baixo
com aparência de cauda de escorpião, surge por trás de Dinho Leme.
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Alain Voss em foto dos anos 2000: autor da arte da capa e da parte interna da capa dupla de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets. |
Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets apresenta os Mutantes num estágio de transição musical, onde são nítidas as influências de hard rock e progressivo. Mas o humor debochado que consagrou o conjunto está presente em algumas faixas.
O álbum começa
com uma música em que os Mutantes prestam um tributo ao rock’n’roll com “Posso Perder
Minha Mulher, Minha Mãe, Desde que Eu Tenha o Rock and Roll”. Gravada ao vivo
no estúdio, esta música traz uma linha melódica inspirada em “Blue Suede
Shoes”, de Carl Perkins (1932-1998), um clássico do rock’n’roll de 1956.
Após a
animação da primeira faixa, vem a balada folk “Vida de Cachorro”, uma canção
que parece ser uma historinha de amor de um casal de cães, onde Rita Lee canta
com uma voz delicada e meiga. Nota-se nessa canção uma influência de
“Blackbird”, dos Beatles. Na faixa “Dune Buggy”, os Mutantes insinuam um
trocadilho de aditivos para carros como STP e MSLD com o alucinógeno LSD.
“Cantor de
Mambo” é um mambo onde os Mutantes fazem uma provocação debochada com o cantor
Sérgio Mendes, que na época, fazia muito sucesso nos Estados Unidos. A música
contém alguns versos em português e espanhol, e uma sonoridade bem inspirada no
trabalho do mexicano Carlos Santana, elementos que dão um toque de latinidade à
faixa.
Fechando o
lado 1, a divertida “Beijo Exagerado” originalmente se chamava “Casa da
Mônica”, e trava sobre um prostíbulo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mas
a letra foi barrada na Censura, que vetou boa parte dos versos, e que por isso
teve que ser alterada. “Beijo Exagerado” remete a “Brown Sugar”, dos Rolling
Stones, do álbum Sticky Fingers (1971). O final de “Beijo
Exagerado” é emendado com uma canção curtíssima, “Todo Mundo Pastou”, que mais
parece uma vinheta e é completamente dispensável.
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Arte de Alain Voss na parte interna da capa dupla de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets. |
Na faixa
seguinte, “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”, os Mutantes mostraram que também
sabiam fazer rock pesado. Destaque fica para a bateria agressiva de Dinho e a
linha de baixo arrasadora de Liminha, que dão musculatura à música. “Rua
Augusta”, grande sucesso de Ronnie Cord (1943-1986) em 1964, ganha uma versão
bastante pessoal dos Mutantes, na qual Rita Lee canta com um tom de voz infantilizado,
se fazendo parecer uma menina.
O humor
debochado cede lugar à seriedade do rock progressivo em “Mutantes e Seus
Cometas no País do Baurets”. A faixa é a mais longa do disco, cerca de dez
minutos de duração, na qual os músicos dos Mutantes aproveitam a ocasião para
mostrar todas as suas habilidades. A música nasceu de um improviso no estúdio,
e foi gravada num só take. Os versos cantados na música são de “Tempo no Tempo”,
uma versão em português feita por Cláudio Dias Baptista (irmão de Arnaldo e
Sérgio) para “Once There Was A Time I Thought”, dos Mamas & The Papas.
“Todo Mundo
Pastor II” encerra o álbum e é uma versão mais longa de “Todo Mundo Pastou”,
que assim como a primeira, é completamente dispensável.
Mutantes
e Seus Cometas no País do Baurets teve uma recepção “morna” por parte da imprensa. A edição
brasileira da revista Rolling Stone, de 4 de julho de 1972, traçou uma
crítica muito ácida a respeito do álbum dos Mutantes, afirmando que o disco
tinha exageros e um humor “ginasiano”. O álbum não foi um grande sucesso
comercial.
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Mutantes em sentido horário: Dinho Leme, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Liminha; ao centro, Rita Lee. |
Assim como
os álbuns da banda, Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets só
viria a ter grande relevância a partir dos anos 1980, quando os Mutantes foram
redescobertos pelas novas gerações. A canção “Balada do Louco” se tornou mais
conhecida pelo grande público através da versão de Ney Matogrosso, que a
regravou em 1986, e foi um grande sucesso das rádios. O hard rock “A Hora e a Vez
do Cabelo Nascer”, ganhou versão heavy metal com o Sepultura, em 1989,
especialmente gravada pela banda mineira para o álbum tributo Sanguinho
Novo... Arnaldo Baptista Revisitado, uma homenagem a Arnaldo Baptista, onde
várias bandas e artistas brasileiros regravaram canções dos Mutantes e da
carreira solo de Arnaldo.
Poucos meses
após o lançamento de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets,
os Mutantes descobriram que em São Paulo, um moderno estúdio de 16 canais havia
sido recém instalado, o Estúdio Eldorado. Um estúdio de 16 canais era uma
novidade no Brasil, e para artistas como os Mutantes que se dedicavam ao
experimentalismo e a arranjos elaborados, um estúdio como esse era como um
“parque de diversões” naquela época. Os membros dos Mutantes tentaram convencer
a Polydor a gravar mais um álbum naquele ano. Mas a gravadora vetou a ideia,
pois a banda já havia lançado um álbum naquele ano. Além do mais, os Mutantes
não eram grandes vendedores de discos, muito pelo contrário, vendiam cada vez
menos discos. Logo, a Polydor não via razão alguma para lançar dois álbuns num
mesmo ano de uma banda que não dava lucro.
Enquanto os
Mutantes estavam mais preocupados nas “viagens” progressivas, a Polydor estava
mais interessada na carreira solo de Rita Lee. Enxergava nela uma artista
comercialmente mais viável do que a banda. Foi então que a Polydor sugeriu aos
Mutantes que eles poderiam gravar um novo álbum naquele estúdio de 16 canais
como queriam, desde que esse novo álbum fosse assinado como de Rita Lee, o que
seria o seu segundo álbum solo. O primeiro foi Build Up, de 1970.
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Sérgio Dias, Rita Lee e Arnaldo Baptista, nos bastidores do show de lançamento de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, em 1972. |
Assim, em setembro de 1972 foi lançado Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, sob a assinatura de Rita Lee, embora que na prática, seria um disco dos Mutantes. O álbum acabaria se tornando o último que a banda gravaria com Rita Lee. No final de 1972, após um desentendimento, Rita Lee saiu dos Mutantes. Sua saída é cercada de informações confusas. Há quem afirme que ela foi expulsa por Arnaldo, há quem afirme que ela saiu da banda por conta própria. A razão de sua saída foi por ela discordar com o direcionamento musical da banda para o rock progressivo.
Em 1973, já
sem Rita Lee e resumidos a um quarteto, os Mutantes gravaram o álbum O A
e o Z, no Estúdio Eldorado, aquele de 16 canais. O material gravado,
totalmente voltado ao rock progressivo, não agradou a gravadora Polydor, que
vetou o lançamento do álbum por não achar comercialmente viável. As gravações
de O A e o Z foram arquivadas e os Mutantes dispensados pela
gravadora. Em 1992, quase vinte anos depois, O A e o Z foi
lançado.
O consumo
contínuo de LSD fez Arnaldo Baptista deixar os Mutantes, em 1973, e logo
iniciar a sua carreira solo. No mesmo ano, Dinho Leme também saiu da banda,
enquanto que em 1974, foi a vez de Liminha. Sérgio Dias prosseguiu no comando
dos Mutantes, que contavam agora com Túlio Mourão, Rui Motta e Antônio Pedro
respectivamente nos lugares de Arnaldo, Dinho e Liminha.
Em 1974, a
banda assinou com a gravadora Som Livre e lançaram o sexto álbum de estúdio, Tudo
Foi Feito pelo Sol, que teve uma vendagem razoável e se tornou ao longo
do tempo um disco clássico do rock progressivo brasileiro. Enquanto os Mutantes
se tornavam uma banda de nicho, Rita Lee iniciava uma vitoriosa carreira solo e
se tornaria uma das cantoras mais populares da música brasileira. Os Mutantes
chegaram ao fim em 1978, e quase trinta anos depois, em 2006, a banda voltou,
tendo apenas Sérgio Dias, Arnaldo e Dinho da formação do início dos anos 1970,
e complementada por músicos contratados. A cantora Zélia Duncan aceitou o
convite para ocupar o lugar de Rita Lee. O grupo passou por novas
reformulações, e restou apenas Sérgio Dias como único membro dos áureos tempos
dos Mutantes.
Faixas
Lado 1
- “Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe, Desde Que Eu Tenha o Rock And Roll” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Liminha)
- “Vida de Cachorro” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
- “Dune Buggy” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias)
- “Cantor de Mambo” (Arnaldo Baptista - Élcio Decário - Rita Lee)
- “Beijo Exagerado” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias) / “Todo Mundo Pastou” (Ismar S. Andrade "Bororó")
Lado 2
- “Balada do Louco” (Arnaldo Baptista - Rita Lee)
- “A Hora e a Vez do Cabelo Nascer” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias - Liminha)
- “Rua Augusta” (Hervé Cordovil)
- “Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets” (Arnaldo Baptista - Rita Lee - Sérgio Dias - Ronaldo Leme - Liminha)
- “Todo Mundo Pastou II” (Ismar S. Andrade "Bororó")
Mutantes: Arnaldo Baptista (teclados e vocais), Rita Lee ( vocais e teclados) Sérgio Dias (guitarras, vocais, cítara, violão de 12 cordas em "Vida de Cachorro"), Liminha (baixo e vocal de apoio) e Dinho Leme(bateria).
Revista
Bizz – Edição 20 - março/1987,
Editora Azul
A Divina
Comédia dos Mutantes / Coleção Ouvido Musical – Carlos Calado, 1995, Editora 34, São Paulo, Brasil.
Discobiografia
Mutante: álbuns que revolucionaram a música brasileira – Chris Fuscaldo - 2ª edição, 2020, Garota
FM Books, Rio de Janeiro, Brasil.
“Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe,
Desde Que Eu Tenha o Rock And Roll”
“Vida de Cachorro”
“Dune Buggy”
“Cantor de Mambo”
“Beijo Exagerado / Todo Mundo Pastou”
“Balada do Louco"
“A Hora e a Vez do Cabelo Nascer”
“Rua Augusta”
“Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets”
“Todo Mundo Pastou II”
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