“Pra Que Chorar” (Philips, 1977), Alcione



Por Sidney Falcão

Durante a década de 1970, o samba viveu uma fase bastante especial. O estilo musical símbolo do Brasil vivia um momento comercial bastante intenso, com vários cantores do estilo vendendo milhares de discos e com canções nas paradas de sucesso. A concorrência não era fácil: Beth Carvalho (1946-2019), Benito di Paula, Martinho da Vila, Originais do Samba, Clara Nunes (1942-1983), Roberto Ribeiro (1940-1996), são alguns dos astros do samba que estavam no auge e figuravam entre os maiores vendedores de discos no Brasil. 

E foi nesse cenário sambista bastante competitivo que Alcione apareceu para todo o Brasil, em meados da década de 1970. Mas até chegar lá, a cantora maranhense percorreu um longo caminho. Nascida em 1947, em São Luíz, estado do Maranhão, Alcione era filha de mãe dona de casa e de pai policial. A futura estrela do samba teve outros nove irmãos, sendo ela a quarta da fila. Aos nove anos, aprendeu a tocar trompete e clarinete com o seu pai, que além de policial, era mestre da banda da Polícia Militar do Maranhão.

Alcione formou-se professora primária, chegando a lecionar numa escola. Mas seu sonho era mesmo ser cantora. Aos 20 anos, Alcione deixou a cidade de São Luíz, e partiu rumo à cidade do Rio de Janeiro para tentar a sorte. No Rio, trabalhou em loja de discos, mas iniciou a caminhada musical naquela cidade cantando à noite das boates e casas noturnas no Beco das Garrafas, em Copacabana. Não demorou muito, e no começo dos anos 1970, já estava participando de concursos de programas de TV como A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti (1923-1986), na TV Tupi, que se destinava a revelar novos talentos.

Alcione em início de carreira, cantando numa casa noturna no Rio de Janeiro, em 1974.

Em 1975, assinou contrato com a gravadora Philips, e lançou o seu primeiro álbum de estúdio, A Voz do Samba, trabalho que emplacou os dois primeiros grandes sucessos do início da carreira de Alcione, “Não Deixe O Samba Morrer” e “O Surdo”. No ano seguinte, saiu o segundo álbum, Morte de Um Poeta, mas que não conseguiu revelar nenhum grande sucesso para as paradas.

O terceiro álbum de Alcione, Pra Que Chorar, foi lançado em 1977. Assim como os dois primeiros anteriores, Pra Que Chorar apresenta uma grande diversidade de compositores dos mais variados lugares do Brasil. Chama atenção a presença de compositores baianos, alguns já haviam fornecido canções para Alcione nos dois discos que antecederam Pra Que Chorar. E não era para menos, afinal, na década de 1970, os sambistas baianos estavam no auge da criatividade, compondo canções fantásticas que despertaram o interesse dos grandes astros nacionais do samba. Sem sombra de dúvidas, foi um momento único em que sambistas baianos das mais diversas gerações estavam criando canções num mesmo período e que viraram grandes sucessos da música brasileira através da criatividade de gente como Batatinha (1924-1997), Edil Pacheco, Riachão (1921-2020), Tom & Dito, Ederaldo Gentil (1947-2012), Nelson Rufino, Antônio Carlos & Jocafi, Panela (?-1999), Vevé Calazans (?-2012), Walter Queiróz, Walmir Lima, Tião Motorista entre tantos outros. 

Produzido por Roberto Santana, o álbum Pra Que Chorar abre com a festiva “Ilha de Maré”, do sambista baiano Walmir Lima. “Ilha de Maré” é um samba com a cara do Recôncavo Baiano, e descreve em seus versos a procissão e a festa da Lavagem das escadarias da Igreja do Bonfim, em Salvador, Bahia.

“Pedra Que Não Cria Limo” é um samba sobre alguém que não consegue se fixar num relacionamento, que não consegue construir uma relação amorosa com outra pessoa e sente uma necessidade incontrolável de trocar de amor com frequência, como quem troca de camisa. O descaso e a desatenção com o outro numa relação de casal estão presentes em “Recusa”, um samba-canção em que Alcione canta de maneira magistral, o sentimento de uma mulher desprezada pelo homem que ama.

Baianas lavando o adro da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador: o 
samba "Ilha de Maré" é sobre a procissão e a festa da Lavagem do Bonfim. 

No seu primeiro disco, A Voz do Samba, de 1975, Alcione gravou “O Surdo”, um samba de Totonho e Paulinho Rezende que trata sobre o surdo, um dos instrumentos mais importantes do samba, e de como esse instrumento sofre pancadas para alegrar o povo. A “resposta” para esse samba veio em 1978, e foi dada pelos compositores Chico da Silva e Venâncio, através de outro samba, “Pandeiro É Meu Nome”, gravado também por Alcione. “Pandeiro É Meu Nome” mostra em seus versos que o pandeiro, companheiro do surdo, “apanha sorrindo para o povo cantar”.

“Solo de Piston” foi composto por Paulinho Rezende e Totonho especialmente para Alcione. Misto de samba e choro, “Solo de Piston” carrega todo um clima de nostalgia, e aborda os tempos de infância de Alcione em São Luiz, cidade-natal da cantora. A música começa com um solo de trompete, também conhecido como piston, instrumento que provavelmente foi tocado por Alcione, e que ela aprendeu a tocar quando era criança.

O lado 1 do disco termina com a faixa que dá nome ao álbum. “Pra Que Chorar” foi composto por Baden Powell (1937-2000) e Vinícius de Moraes (1913-1980), e é um samba-canção que versa sobre recomeçar a vida após o fim de um grande amor: “Pra que chorar / Pra que sofrer / Se há sempre um novo amor / Em cada novo amanhecer”.

“Não Chore, Não” abre o lado 2 do álbum, com seu ritmo alegre e versos com mensagens otimistas: “Pra quê chorar? / A vida é mesmo assim / Não chore não / Bem melhor cantar / Espante o mal / Pra bem longe da ilusão”. A alegria de “Não Chore Não” cede lugar à melancolia de “Eu Vou Deixar”, um samba-canção sobre uma mulher que decide abandonar uma relação onde ela é desprezada pelo homem que ela amava, para seguir um novo rumo na sua vida, buscar a sua felicidade: “Vou descer pra cidade / Encarar o que der e vier / Me vestir de verdade / Mostrar que também sou mulher / Vou tentar na cidade / Mudar pra poder esquecer / Minha outra metade / Que ainda ficou com você”.

Quando Alcione começou a fazer sucesso, ela chamou a atenção não só pelo
seu talento como cantora, mas também pela sua habilidade em tocar trompete.

A próxima faixa é “Feira do Rolo”, do sambista baiano Ederaldo Gentil, um samba sobre a famosa e controversa Feira do Rolo, em Salvador, que existe há décadas, e onde se vendem, compram ou trocam produtos de origem duvidosa. “Correntes de Barbante” é um belo samba-canção, que por meio de versos cheios de metáforas, trata sobre uma mulher que vive relação conjugal opressora, sufocante. No entanto, essa mesma mulher não se dá por vencida, tem plena consciência da sua força e determinação: “Quem é você pra acorrentar / Um só instante / Esse meu braço de aço / Nas suas correntes de barbante”.

O álbum chega ao fim com “Tambor de Crioula”, uma animada canção que presta homenagem ao tambor de crioula, dança típica do estado do Maranhão, uma herança cultural dos negros escravizados trazidos para cá nos tempos do Brasil colonial.

Embora seja um álbum agradável, coeso, Pra Que Chorar não chegou a convencer alguns críticos musicais na época de seu lançamento. Em seu artigo no jornal O Globo, na edição de 6 de novembro de 1977, o crítico musical Sérgio Cabral (pai do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho) afirmou que Alcione era muito melhor que as músicas que estava cantando. Para Cabral, o disco não apresentava nenhum samba que fosse considerado uma obra-prima ou que merecesse estar entre os dez melhores sambas do ano, o que para ele, seria algo obrigatório devido ao status que Alcione havia alcançado naquela época.

Apesar das críticas de Sérgio Cabral, a reação do público foi bastante positiva. O álbum Pra Que Chorar vendeu mais de 400 mil cópias. A faixa “Ilha de Maré” foi um grande sucesso radiofônico, assim como a faixa-título.

Nos álbuns seguintes, Alcione só cresceu. O álbum Alerta Geral, de 1978, “Sufoco”, um samba-canção de Chico da Silva e Antônio José que fez um enorme sucesso na voz poderosa de Alcione, e que foi uma das músicas mais executadas do ano no Brasil, consolidando a cantora como um dos mais importantes nomes da nova geração de cantoras de samba naquela época. Naquele mesmo ano, Alcione recebeu um convite para fazer um dueto com Maria Bethânia na canção “O Meu Amor”, de Chico Buarque, e que entrou no álbum Álibi, lançado por Bethânia.

Faixas

Lado 1

  1. "Ilha da Maré" (Walmir Lima – Lupa)          
  2. "Pedra Que Não Cria Limo" (Vevé Calazans - Nilton Alecrim)        
  3. "Recusa" (Paulo Debétio - Paulinho Rezende)        
  4. "Pandeiro é Meu Nome" (Chico da Silva - Venâncio)          
  5. "Solo de Pistom" (Paulinho Rezende - Totonho)     
  6. "Pra Que Chorar" (Baden Powell - Vinicius de Moraes)  

Lado 2

  1. "Não Chore Não" (Tom - Dito)
  2. "Eu Vou Deixar" (Roberto Corrêa - Sylvio Son)        
  3. "Feira do Rolo" (Ederaldo Gentil)    
  4. "Correntes de Barbante" (Totonho - Paulinho Rezende)
  5. "Tambor de Crioula" ( Júnior - Oberdan – Oliveira) 

 

Referências:

Jornal O Globo – edição de 6 de novembro de 1977, Rio de Janeiro, Brasil.

Revista da Música – outubro/1979, Editora Imprima, São Paulo, Brasil.

Canto de rainhas: o poder das mulheres que escreveram a história do samba – Leandro Bruno, 2ª edição, 2021, Editora Agir, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

“Ilha de Maré”

“Pedra Que Não Cria Limo”

“Recusa”

“Pandeiro É Meu Nome”

“Solo de Piston”

“Pra Que Chorar”

“Não Chore, Não”

“Eu Vou Deixar”

“Feira do Rolo”

“Correntes de Barbante”

“Tambor de Crioula”

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