“Aracy de Almeida Apresenta Sambas de Noel Rosa” (Continental, 1954)



Por Sidney Falcão

Aracy de Almeida entrou para o imaginário brasileiro como aquela jurada rabugenta dos programas de calouros da televisão, mas que todo mundo adorava ver. Porém, o que poucos sabem é que Aracy de Almeida era muito mais do que uma jurada de programa de TV. Até chegar àquela condição, Aracy vinha de uma longa história na música popular brasileira. Por mais de trinta anos, Aracy foi uma talentosa cantora de samba, de voz analisada e bem afinada, mas que também gravou canções de outros estilos como marcha, rumba, bolero, frevo-canção e até baião.

Aracy gravou vários discos, interpretou canções dos mais diversos autores, como Ismael Silva (1905-1978), Custódio Mesquita (1910-1945), Assis Valente (1911-1958), Ary Barroso (1903-1964), Wilson Batista (1913-1968) entre outros. Mas sem sombra de dúvidas, Aracy ficou marcada mesmo como a grande intérprete das canções de Noel Rosa (1910-1937), do qual foi amiga. O próprio Noel afirmou que Aracy era a melhor intérprete das suas canções. 

Filha de pais protestantes, Aracy Teles de Almeida nasceu em 19 de agosto de 1914, no bairro do Encantado, no subúrbio do Rio de Janeiro. Sua iniciação na música foi cantando num coral de uma igreja batista. Mas a carreira profissional acontece em 1933, aos 19 anos, quando foi cantar na Rádio Educadora, no Rio de Janeiro, no programa de Custódio Mesquita. E foi nessa emissora de rádio que Aracy conheceu Noel Rosa, em 1934, e daí nasceu uma grande amizade entre os dois. No mesmo ano, Aracy fez a sua primeira gravação, “Em Plena Folia” (de Julieta de Oliveira), pela gravadora Columbia. Ainda em 1934, gravou “Riso de Criança”, canção que Noel Rosa compôs especialmente para Aracy gravar.

Em 1935, foi contratada pela gravadora Victor, por onde lançou seus discos e também integrou coro nas gravações de músicas de outros artistas. No ano seguinte, gravou pela primeira vez “Palpite Infeliz” e “O X do Problema”, ambas de Noel Rosa. Aracy deixa a Victor em 1942 e assina contrato com a gravadora Odeon, onde prossegue lançando uma infinidade de discos de 78 rpm, trazendo canções dos mais diversos autores e estilos musicais.

A jovem Aracy de Almeida, aos 24 anos, em 1938. 

Após a sua morte, em maio de 1937, Noel Rosa entrou em processo de esquecimento que se acentuou ao longo dos anos 1940. Nesse período, pouca gente gravou as canções de Noel, e Aracy foi uma delas, que em dele havia gravado “Pela Décima Vez”, em 1948, e “João Ninguém”, em 1949. O fechamento dos cassinos no Rio de Janeiro e a decadência dos antigos cabarés da Lapa, mudaram o cenário boêmio carioca. A boemia carioca se deslocou para Copacabana no final dos anos 1940, onde começaram a surgir boates que atraiam um público mais seleto.

E foi uma dessas boates, a Vogue, que entre 1948 e 1942, teve Aracy de Almeida como uma de suas principais atrações. A Vogue era a boate mais sofisticada do Rio de Janeiro naquela época. Era frequentada por um público mais sofisticado, entre intelectuais, políticos, celebridades e endinheirados. E foi para esse tipo de público que Aracy apresentou as canções de Noel Rosa. As temporadas de Aracy cantando as canções Noel Rosa, fez despertar no público um interesse pela obra do “Poeta da Vila Isabel”. Porém, naquele momento, havia poucas canções de Noel Rosa disponíveis em discos nas lojas. Algumas músicas de Noel como “Três Apitos” e “Cor de Cinza”, nunca tinham sido gravadas até então.

Para atender a demanda pela procura de discos com as canções de Noel Rosa, a gravadora Continental decidiu em 1950 produzir um álbum com três discos de 78 rotações por minuto, tendo cada discos duas canções. E para interpretar as canções de Noel, a gravadora contratou Aracy de Almeida. Ao todo foram seis canções: “Palpite Infeliz (Noel Rosa)”, “Conversa de Botequim” (Noel Rosa / Vadico), “Feitiço da Vila” (Noel Rosa / Vadico), “Último Desejo” (Noel Rosa), “Não Tem Tradução” (Noel Rosa) e “O ‘X’ do Problema” (Noel Rosa). Os arranjos das músicas ficaram por conta do maestro e arranjador Radamés Gnatalli (1906-1988). A capa que trazia os três discos foi ilustrada por ninguém menos que Di Cavalcanti (1897-1976), o renomado pintor do modernismo brasileiro, e que era amigo de Aracy. O álbum ainda continha textos do jornalista e produtor musical Lúcio Rangel (1914-1979) e do compositor, jornalista e radialista Fernando Lobo (1915-1996). O projeto era inédito, audacioso e caro para os padrões do Brasil daquele momento. Para se ter uma ideia, na época, um disco de 78 rotações por minuto custava cerca de vinte cruzeiros, enquanto que o álbum com os três discos seria vendido a oitenta cruzeiros. Lançado em dezembro de 1950, o luxuoso álbum com os três discos foi um grande sucesso comercial, apesar do valor alto.

Um exemplar original do álbum lançado pela Continental, no início dos anos 1950,
que trazia três discos de 78 rpm com canções de Noel Rosa
gravadas por Aracy de Almeida.

O sucesso do projeto fez a Continental lançar em 1951, um segundo volume no mesmo esquema com três discos de 78 rotações num mesmo álbum. Dessa vez com as canções “Pra que Mentir” (Noel Rosa – Vadico), “Silêncio de um Minuto” (Noel Rosa), “Feitio de Oração” (Noel Rosa – Vadico), “Três Apitos” (Noel Rosa – Vadico), “Com que Roupa” (Noel Rosa) e “O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa - Kid Pepe).

No mesmo ano de 1951, Aracy de Almeida foi convidada pelo compositor e radialista Almirante (1908-1980), para participar de uma série de 22 programas especiais dedicados a Noel Rosa, intitulado Nos Tempos de Noel Rosa, na Rádio Tupi, do Rio de Janeiro.

Na década de 1950, os primeiros discos em formato LP (long playing) foram laçados no mercado brasileiro. E foi em 1954 que a gravadora Continental lançou o primeiro LP da carreira de Aracy de Almeida, que àquelas alturas, já era uma artista madura, experiente, com quarenta anos de idade e vinte dois anos de carreira. Intitulado Aracy Apresenta Sambas de Noel Rosa, trata-se de um LP lançado em 10 polegadas que na prática, nada mais era do que uma espécie de compilação que trazia oito das quase vinte canções gravadas por Aracy e lançadas naquele projeto especial da Continental em homenagem a Noel Rosa entre 1950 e 1951, agora reunidas num só disco, já que o formato LP cabe mais músicas do que um disco de 78 rpm. A capa é a mesma arte feita por Di Cavalcanti para o projeto especial.

Noel Rosa foi amigo de Aracy de Almeida. Após a sua morte, Aracy se tornaria uma
espécie de "guardiã" de sua obra e responsável pelo resgate de sua memória artística.

Aracy Apresenta Sambas de Noel Rosa, dá ao ouvinte uma percepção melhor e mais completa do trabalho de resgate que Aracy estava fazendo com o repertório de Noel Rosa naquele início dos anos 1950 e que foram reunidas algumas canções neste seu primeiro álbum de carreira. Um destaque que vale ressaltar, é que além da qualidade da interpretação de Aracy, vale destacar a participação do maestro e arranjador Radamés Gnattali na criação dos arranjos para as canções compostas por Noel. E há uma diversidade nos arranjos, indo desde arranjos mais minimalistas com uma discreta acentuação jazzística até arranjos mais robustos e orquestrados, carregados de um naipe de cordas. 

O primeiro álbum da carreira de Aracy traz algumas curiosidades girando em torno dos músicos que acompanharam Aracy nas gravações das canções. Três grupos musicais se alternaram nas gravações com Aracy de Almeida: Francisco Sérgi e Sua Orquestra, Quarteto Continental e Vero e sua Orquestra.

O Quarteto Continental e Vero e Sua Orquestra tinham em comum a presença de Radamés Gnattali. Contratado da gravadora Continental, o maestro Radamés Gnattali criou em 1949 o Quarteto Continental, do qual faziam parte o próprio Radamés Gnattali (piano), Pedro Vidal (contrabaixo), Luciano Perrone (1908-2001, bateria) e José Menezes (1921-2014, guitarra elétrica). E aqui chama atenção da presença da guitarra elétrica, pois o instrumento era uma novidade na música brasileira. O conjunto praticava um tipo de música mais moderna e sofisticada, empregava elementos de jazz na música brasileira e já prenunciava no final dos anos 1940, traços da bossa nova. Mais tarde, esse grupo se tornaria o o Sexteto Radamés Gnattali, com a entrada de Chiquinho do Acordeon (1928-1993, acordeon) e Aída Gnattali (1911-2008, o piano), irmã de Radamés. 

Quanto a Vero e Sua Orquestra, o Vero era o pseudônimo que Radamés Gnattali usava quando gravava músicas populares. Para gravação de músicas eruditas, o maestro assinava o seu próprio nome de batismo.

O músico e arranjador Radamés Gnattali ao piano: uma figura essencial 
na criação dos arranjos para as canções de Noel Rosa gravadas por 
Aracy de Almeida no início dos anos 1950.

Aracy Apresenta Sambas de Noel Rosa começa com “Feitiço da Vila”, uma canção que se tornou um clássico do repertório Noel Rosa, e foi composta por ele com o seu principal parceiro, Osvaldo Gogliano, mais conhecido como Vadico. Gravada em 1950 por Aracy e acompanhada por Francisco Sergi e Sua Orquestra, “Feitiço da Vila” foi uma homenagem de Noel Rosa à Vila Isabel, no Rio de Janeiro, lugar onde Noel viveu. A letra ressalta o amor e devoção que Noel tinha pela Vila Isabel, e a importância que ele acreditava aquele lugar tinha para a formatação do samba como estilo musical relevante para a música popular brasileira: “Lá, em Vila Isabel / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba / São Paulo dá café / Minas dá leite / E a Vila Isabel dá samba”.

“Pra que Mentir” é um samba-canção gravado por Aracy em 1951 com acompanhamento de Vero e Sua Orquestra. Composta por Noel e Vadico, a letra versa sobre desilusão amorosa em que um homem descobre que a mulher que ama o traiu, mas apesar de todas as evidências da traição, ela tenta convencê-lo do contrário.

A melancólica e autobiográfica “Último Desejo” foi escrita por Noel Rosa quando já estava bem debilitado pela tuberculose, e dedicada a Ceci, uma bailarina de cabaré por quem ele era apaixonado e é retratada na letra da canção como a mulher a quem ele pede o seu último desejo antes da morte. “Último Desejo” foi gravada por Aracy de Almeida em 1950 com acompanhamento de Francisco Sergi e Sua Orquestra. A letra é de uma tristeza imensa, e traz versos onde um homem à beira da morte faz uma série de pedidos e confissões em tom de despedida. Os versos finais são dramáticos e confessionais: “Às pessoas que eu detesto/ Diga sempre que eu não presto / Que meu lar é o botequim / Que eu arruinei sua vida / Que eu não mereço a comida / Que você pagou pra mim”.

Fechando o lado A do disco, “Silêncio de Um Minuto”, um samba sobre um amor que acabou com mágoa e ressentimento. Os versos são carregados de muita dramaticidade: “Nosso amor cheio de glória / De prazer e de ilusão / Foi vencido e a vitória / Cabe à tua ingratidão”. “Silêncio de Um Minuto” foi gravada por Aracy em 1951, com o acompanhamento de Vero e Sua Orquestra.

O bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro, no início do século XX. Noel Rosa compôs
"Feitiço da Vila" como uma homenagem ao bairro onde vive e que tanto amou.

O samba-canção “O ‘X’ do Problema” é quem abre o lado B do álbum. Esta canção já havia sido gravada antes pela própria Aracy de Almeida em 1936 através da gravadora Victor. A versão incluída em Aracy Apresenta Sambas de Noel Rosa foi gravada pela cantora em 1950 com Vero e Seu Conjunto. Apesar de ter nascido no bairro do Encantado, a música tem tudo a ver com Aracy. A letra trata sobre uma sambista nascida no bairro do Estácio, considerado o “berço” do samba carioca, e lá foi “diplomada” no samba, e que por isso, jura amor pelo lugar onde nasceu e jamais abandonaria aquele lugar por outro qualquer: “Nasci no Estácio / Não posso mudar minha massa de sangue / Você pode ver que palmeira do mangue / Não vive na areia de Copacabana”.

“Conversa de Botequim” é uma das mais famosas canções da parceria Noel Rosa e Vadico. A letra é interessantíssima, muito bem construída, e trata sobre um cliente folgado, atrevido, que faz uma série de pedidos ao pobre garçom. Embora os pedidos sejam feitos com toda a educação e formalidade, são completamente abusados, como se o garçom fosse o seu empregado e não tivesse outros clientes para atender. O conjunto de versos são bem descritivos e transportam o ouvinte a algum botequim carioca dos anos 1930. A versão gravada por Aracy em 1950, é um “samba-de-breque” bem ao estilo de Moreira da Silva, em que ela canta cheia de malandragem, e com acompanhamento do Quarteto Continental. O destaque fica por conta do toque dedilhado da guitarra elétrica de José Menezes, integrante do Quarteto Continental, que dá um tom jazzístico à canção.

“Não Tem Tradução” é um samba-canção composta Noel em que o autor, já nos anos 1930, denunciava a invasão dos modismos estrangeiros nos costumes do povo brasileiro: “A gíria que o nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou / Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote / E só querendo dançar o fox-trote”. A versão gravada por Aracy e incluída em Aracy Apresenta Sambas de Noel Rosa foi gravada por Aracy em 1950 acompanhada por Vero e sua Orquestra.

O álbum termina com a ótima versão de Aracy para “Palpite Infeliz”, gravada em 1950 e acompanhada pelo Quarteto Continental. Foi composta por Noel Rosa na época em que o compositor travou um duelo com o compositor Wilson Batista, quando os dois trocavam provocações através de músicas. Aracy havia gravado essa música pela primeira vez em 1936 em forma de samba em tom carnavalesco. Mas nesta nova gravação, Aracy canta em forma de um samba bem minimalista, enxuto, proporcionado por pouco instrumentos: piano, guitarra elétrica, contrabaixo e pandeiro. O arranjo enxuto e elegante criado por Radamés Gnattali, possui inclinações jazzísticas, muito por conta da performance do piano executado por Gnattali e pela guitarra de José Menezes. A elegância desta canção gravada por Aracy, já mostra prenúncios do que seria a bossa nova que surgiria anos mais tarde.

Faixas

Lado A

1 - "Feitiço da Vila"  (Noel Rosa/Vadico)

2 - "Pra Que Mentir"  (Noel Rosa/Vadico)

3 - "Último Desejo" (Noel Rosa)

4 - "Silêncio de Um Minuto" (Noel Rosa)


Lado B

5 - "O X do Problema" (Noel Rosa)

6 - "Conversa de Botequim" (Noel Rosa/Vadico)

7 - "Não Tem Tradução" (Noel Rosa)

8 - "Palpite Infeliz" (Noel Rosa)


Aracy de Almeida: vocal

Orquestra da Continental: instrumentos diversos

Quarteto Continental: Radamés Gnattali: piano; Zé Menezes (José Menezes): guitarra elétrica; Pedro Vidal (contrabaixo) e Luciano Perrone (bateria)

Francisco Sergi E Sua Orquestra

 

Referências:

Noel Rosa: uma biografia - João Máximo e Carlos Didier, 1990, Editora Universidade de Brasília / Linha Gráfica, Brasília.

No tempo de Noel Rosa: o nascimento do samba e a era de ouro da música brasileira – Almirante, 3ª edição, 2013, Editora Sonora, Rio de Janeiro.

enciclopedia.itaucultural.org.br

radamesgnattali.com.br



"Feitiço da Vila"


"Pra Que Mentir"


"Último Desejo"


"Silêncio de Um Minuto"


"O 'X' do Problema"


"Conversa de Botequim"


"Não Tem Tradução"


"Palpite Infeliz"


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