“Roberto Carlos” (CBS, 1971), Roberto Carlos
A partir do
álbum O Inimitável (1968), Roberto Carlos iniciou um processo de
mudança na sua orientação musical que redefiniria a sua carreira artística.
Naquele disco, o primeiro após deixar o comando do programa Jovem Guarda,
na TV Record, Roberto começava a deixar para trás as canções ingênuas e o
perfil de astro juvenil para adotar uma linha musical mais adulta e voltada
para canções românticas.
O processo
de mudança estilística vivenciada por Roberto Carlos incluía a aproximação do
cantor com outros estilos musicais. Roberto nutria na época bastante interesse
na música negra americana. Nos seus discos de 1969 e 1970, eram perceptíveis os
elementos de funk, soul e gospel através dos naipes de metais, linhas de baixos
mais acentuadas e o coro muito inspirado nos corais de música gospel americana.
O sucesso da canção gospel “Jesus Cristo”, do álbum de 1970, abriu uma nova
linha de trabalho para Roberto Carlos: o das canções de temática cristã.
Àquela
altura, ao se tornar um cantor mais maduro e romântico, a popularidade de
Roberto Carlos cresceu de maneira fantástica. Em 1970, Roberto alcançou o posto
de cantor mais popular do Brasil, dado ao número de canções nas paradas de
sucesso e ao alto número de vendas dos seus discos.
Mas a
consagração de Roberto Carlos chega em 1971, com o álbum Roberto Carlos,
o que traz o rosto do cantor desenhado na capa. Também chamado de Detalhes,
o álbum de 1971 consolida o processo de transformação que Roberto Carlos havia
iniciado em 1968 com o disco O Inimitável. O álbum de 1971
estabeleceu o padrão de cantor romântico que Roberto almejava e que seria
copiado por vários cantores românticos a partir de então.
Devido ao
sucesso que havia alcançado, tanto em canções nas paradas de sucesso e vendas
de discos, Roberto Carlos tornou-se o artista mais importante da gravadora CBS,
era tratado como um produto diferenciado. Por causa disso, a gravadora decidiu
que o próximo álbum do cantor seria gravado nos estúdios da CBS dos Estados
Unidos. A filial brasileira bancou as gravações do novo álbum na matriz
americana. Apenas duas canções do novo álbum foram gravadas no Brasil, “Amada
Amante” e “Eu Só Tenho Um Caminho”.
Mudança de rota: o álbum O Inimitável (1968) iniciou o processo de reorientação musical de Roberto Carlos em direção ao soul, gospel e à música romântica. |
Após a pré-produção do novo disco em setembro de 1971, nos estúdios da CBS do Rio de Janeiro, Roberto Carlos, a sua banda e o produtor Evandro Ribeiro partiram no mês seguinte para Nova York, onde gravaram nos estúdios da CBS americana o material para o novo álbum. O experiente maestro e arranjador americano Jimmy Wisner (1931-2018) foi responsável pelos arranjos de orquestra no disco de Roberto. Este seria o primeiro de uma série de discos de Roberto gravados nos Estados Unidos e com o apoio de Wisner como arranjador.
Lançado em dezembro
de 1971, Roberto Carlos, o álbum, começa com a antológica
“Detalhes”, a principal canção do disco e um dos maiores sucessos da carreira
de Roberto. Os arranjos de cordas e de metais dão uma beleza incrível à canção,
e mostram o talento e a sensibilidade de Wisner como maestro e arranjador. As
cordas e metais realçam a beleza dos versos da canção que tratam sobre um
grande amor que chegou ao fim, mas que os momentos vividos pelo casal na letra
da canção jamais serão esquecidos, ainda que cada um dos lados siga a sua vida,
vivenciando novas relações e novos amores. Em “Detalhes”, o legendário Altamiro
Carrilho (1924-2012), faz uma participação especial tocando a sua flauta.
Depois do
romantismo de “Detalhes”, o disco segue com a ótima “Como Dois e Dois”, canção
composta por Caetano Veloso especialmente para Roberto Carlos. A canção havia
sido enviada em fita cassete por Caetano Veloso, direto do seu exílio em
Londres, especialmente para Roberto, com o próprio Caetano cantando e tocando
violão. Embora possua versos complexos e enigmáticos, à certa altura, no
entanto, “Como Dois e Dois” possui um trecho que parece ter um sutil teor
político, provocativo, como uma alusão ao momento sombrio em que o Brasil vivia
sob o domínio de uma ditadura: “Tudo vai mal, tudo / Tudo é igual / Quando
eu canto e sou mudo / Mas eu não minto, não minto / Estou longe e perto / Sinto
alegrias, tristezas e brinco”. Seria como se Roberto, o maior cantor do
Brasil, ainda que avesso a tomar posições políticas, fosse nesta canção a voz
de um Caetano exilado no exterior por aquele regime ditatorial. Merece destaque
o belo casamento do andamento blues da canção com o fantástico coro fazendo
vocalizações incríveis de soul music.
O músico, produtor e arranjador americano Jimmy Wisner (1931-2018), responsável pelos arranjos de orquestra dos discos de Roberto Carlos a partir de 1971. |
“A Namorada”, canção de Carlos Colla e Maurício Duboc traz em seus versos a declaração de amor de um homem completamente apaixonado para a sua namorada. Aqui, os arranjos de cordas e os metais empregam grande emoção condizente com os versos da canção.
Com um andamento e arranjos que ficam entre o blues e o jazz, “Você Não Sabe O Que Vai Perder” trata sobre um sujeito cínico e sedutor que tenta convencer a sua namorada de que, apesar das suas aventuras amorosas com outras garotas, ele gosta mesmo é dela. “Você Não Sabe O Que Vai Perder” foi composta por Renato Barros (1943-2020), então líder da banda Renato & Seus Blue Caps, e traz uma linha de baixo fantástica executada pelo irmão de Renato, o baixista Paulo César Barros, que foi integrante da referida banda.
A
autobiográfica “Traumas” traz um trecho que faz de maneira bastante sutil,
alusão ao acidente que Roberto Carlos sofreu na infância, quando parte de sua
perna direita foi amputada: “Delírio de febre que ardia / No meu pequeno
corpo que sofria / Sem nada entender”.
Encerrando o
lado 1 da versão LP do álbum, “Eu Só Tenho Um Caminho”, de Getúlio Cortes, uma
canção que possui uma profunda inspiração gospel, com direito a vocais de
“chamada e resposta”. A letra tem um viés espiritual, religioso, onde o eu
lírico busca um novo rumo na sua vida.
Roberto Carlos em agosto de 1971. |
O lado 2 do álbum abre com a contagiante “Todos Estão Surdos”, um funk soul cheio de balanço, com uma linha de baixo pulsante e envolvente, naipe de metais bem destacados e um coro empolgante. Alegre e cheia de vida, “Todos Estão Surdos” segue a mesma “fórmula” musical de “Jesus Cristo”, sucesso de Roberto de 1970. Na letra, Roberto pede o retorno de Jesus Cristo para pregar a sua palavra para as novas gerações.
“Debaixo dos
Caracóis dos Seus Cabelos” é uma canção que Roberto Carlos e Erasmo Carlos
compuseram após Roberto ter visitado Caetano Veloso em Londres. Roberto
comoveu-se com a tristeza de Caetano de estar distante de seu país, de sua
família e amigos, num exílio forçado pela ditadura militar. A partir dessa
visita, Roberto teve a ideia de compor uma canção em homenagem ao cantor
baiano. Contudo, por cerca de vinte anos, o público e a crítica imaginaram que
“Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” era uma canção de amor, de um homem
falando para a mulher amada. A verdade só veio à tona em 1992, durante uma
apresentação de Caetano Veloso na turnê do álbum Circuladô,
quando o baiano revelou que “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” foi
composta por Roberto e Erasmo em homenagem a ele. A estratégia de manter esse
segredo na época de lançamento da canção foi uma maneira de driblar a censura,
afinal, se Roberto e Erasmo tivessem revelado na época quem era o homenageado,
provavelmente “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” seria vetada.
Caetano Veloso e Sandra Gadelha (à época, esposa de Gilberto Gil) em Londres, em 1970. Roberto Carlos e Erasmo Carlos compuseram "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos" em homenagem a Caetano. |
“Se Eu
Partir”, de Fred Jorge, é uma canção triste que trata sobre a dor da solidão
após o fim de um relacionamento. A orquestra e os vocais de apoio reforçam toda
a carga emocional da canção que é impossível o ouvinte não se sentir
sensibilizado. Enquanto isso, Roberto emprega dramaticidade na sua
interpretação, bem condizente com os versos da canção.
O clima fica
um pouco mais descontraído com “I Love You”, um foxtrote em que Roberto Carlos
canta com uma voz empostada que lembra os cantores dos anos 1940 e 1950. Na
letra, o eu lírico é um homem conservador que para impressionar a mulher amada,
pretende se modernizar usando calça Lee (famosa marca de calça jeans dos
anos 1970), aprender inglês, falar gírias e dançar rock’n’roll. “De Tanto Amor”
foi composta por Roberto e Erasmo, porém gravada pela primeira vez pela cantora
Claudette Soares, ainda em 1971, e só pouco depois pelo próprio Roberto. O tema
da canção é a saudade após o fim de um grande amor, um tema presente em outras
canções do disco.
O álbum começou
com uma grande canção romântica, “Detalhes”, e encerra com outra grande e
memorável canção romântica, “Amada Amante”, um dos maiores sucessos da carreira
de Roberto Carlos. Escrita por Roberto e Erasmo, “Amada Amante”, a princípio,
parece tratar de uma relação extraconjugal. Mas a canção na verdade foi escrita
por Roberto para a sua então esposa Cleonice Rossi (1941-1990), mais conhecida
como Nice. Por ser uma mulher desquitada, Nice não poderia casar-se legalmente
no Brasil. Roberto e Nice casaram-se em 1968, na Bolívia, onde havia a lei do divórcio.
No Brasil, o divórcio só viria a ser aprovado em 1977. Até então, era comum quando
um dos cônjuges era desquitado, o casal procurar algum país vizinho que
permitisse um casamento nessas condições. Roberto e Nice correram o risco do
casamento na Bolívia não ser reconhecido no Brasil. E foi baseado nessa
situação que provavelmente Roberto escreveu a canção, como um desabafo ao não
reconhecimento oficial da sua relação com Nice. É interessante perceber que ao
mesmo tempo, Roberto traça com sutileza, quase imperceptível, uma crítica à
sociedade conservadora e às leis que regiam o matrimônio no Brasil na época: “Esse
amor sem preconceito / Sem saber o que é direito / Faz as suas próprias leis”.
“Amada
Amante” quase foi censurada simplesmente por causa da associação da palavra
“amor” com sexo: “Que manteve acesa a chama / Que não se apagou na cama /
depois que o amor se fez”. O departamento jurídico da CBS entrou com
recurso no órgão da Censura Federal, em Brasília, e conseguiu reverter a
situação. A canção foi liberada desde que houvesse alteração no trecho que
trazia a palavra “cama”. Depois que os versos foram alterados, a canção foi
liberada pela censura com os versos que o público conheceu: “Que manteve
acesa a chama / Da verdade de quem ama / Antes e depois do amor”.
O álbum Roberto
Carlos (1971) foi sucesso de público e de crítica. Das doze faixas do
álbum, pelo menos dez tiveram grande execução em rádio. Faixas como “Detalhes”,
“Amada Amante”, “Como Dois e Dois” e “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”
ultrapassaram a barreira do tempo e entraram no imaginário do povo brasileiro.
Através
deste álbum, Roberto estabeleceu o padrão do cantor romântico brasileiro a ser
seguido, além de consolidar-se como o maior vendedor de discos do mercado
fonográfico brasileiro. Quanto ao álbum em si, é considerado um dos melhores
discos da música brasileira em todos os tempos, e para alguns, o melhor da
carreira de Roberto Carlos.
Faixas
Lado 1
- "Detalhes" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "Como Dois e Dois" (Caetano Veloso)
- "A Namorada" (Maurício Duboc-Carlos Colla)
- "Você Não Sabe o Que Vai Perder" (Renato Barros)
- "Traumas" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "Eu Só Tenho Um Caminho" (Getúlio Côrtes)
Lado 2
- "Todos Estão Surdos" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "Se Eu Partir" (Fred Jorge)
- "I Love You" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "De Tanto Amor" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
- "Amada Amante" (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
Referências:
Roberto Carlos em Detalhes – Paulo César de Araújo, 2006, Editora Planeta, São Paulo, Brasil
g1.globo.com
wikipedia.org
Há 50 anos era lançado o disco "divisor de águas" na carreira do Rei, um grande álbum repleto de grandes canções que se tornaram marcos da música brasileira e da carreira do artista em geral, como "Detalhes", "Como Dois e Dois" (composta por Caetano Veloso), "Traumas", "De Tanto Amor", "Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos" e "Amada Amante", a minha preferida do LP. Porém, o único ponto baixo do repertório deste álbum de 1971 de Roberto é, na minha opinião, "Todos Estão Surdos". Sempre considerei essa uma canção bem boba dele, nunca gostei muito dela, talvez pelo conteúdo de sua letra um pouco, digamos, "agressiva" e protestadora (no sentido do termo). "Todos Estão Surdos" me soa como se Bob Dylan estivesse recriando nesse tempo suas canções de protesto da década de 1960 (só de voz/violão) com uma pegada diferente e mais pesada que não agradaria aos fãs mais tradicionais, e não acho que ela se encaixa bem em um disco que tem canções belíssimas do porte de "Detalhes". No mais, é só isso.
ResponderExcluirEu já vejo pelo contrário, Igor, ela se encaixa bem com o repertório. Talvez lhe cause estranheza pelo fato dela se diferenciar de todas as outras canções de cunho religioso que ele gravou, até mesmo de "Jesus Cristo", de 1970, à qual guarda algumas semelhanças. Pra entender "Todos Estão Surdos", tem que se levar em conta o contexto da época: tínhamos a Guerra do Vietnã, a Guerra Fria (EUA X União Soviética), ditadura militar no Brasil, e outras guerras e conflitos localizados como lá no Oriente Médio... Portanto, o texto que soa um talvez um tanto quanto "agressivo", é bem condizente com o barril de pólvora que vivíamos na época. Não sei Roberto e Erasmo compuseram e pensaram os arranjos da canção baseados em cima disso, e dessa maneira, mas não seria surpresa se fosse.
ExcluirFalou o chefe e o "quase" professor de história aqui do blog... Estudei boa parte desses fatos históricos em minha época estudantil, nunca levei a sério "Todos estão Surdos" em termos de letra, por isso que eu considero o único momento em que o disco de 1971 de RC baixa o nível. Também não gosto muito de "Jesus Cristo" (lançada em 1970) por ser muito repetitiva e cansativa, tal qual "A Montanha" do disco de 1972 de RC (que veio depois deste aqui resenhado). Mas enfim, fazer o que... Viva a diversidade e o gosto pessoal de cada um!
ExcluirVocê deve ser ateu. Por isso não gostou de ouvir a religiosidade de RC em suas canções. Mas como ateu, merece respeito. As canções alusivas ao seu comentário são perfeitas.
ExcluirAlém do mais, falta com o respeito ao contraditório quando ironiza o comentário abalizado de Sidney Falcão.
ResponderExcluirNão faltei com respeito de maneira alguma com o patrão do blog, e se nos meus comentários sobre "Todos Estão Surdos" eu comparei o Roberto com o Dylan é porque isso tem alguma certa lógica em termos de "estilos comparativos" um com o outro. Certo?
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