“Ronnie Von” (Polydor, 1969), Ronnie Von



Por Sidney Falcão 

Ronnie Von é uma das figuras mais injustiçadas e subestimadas da história do rock brasileiro. Ronnie era contemporâneo da turma da Jovem Guarda, mas ao contrário do que muita gente imagina, ele nunca pertenceu àquele grupo. Para boa parte do público mais jovem, Ronnie Von é tão somente aquele “tiozinho” elegante que nas últimas décadas apresenta programa de entrevistas na TV. Para as gerações mais velhas, ele é o cara da canção "A Praça", uma caretice que ele gravou no começo da carreira. Mal sabem que Ronnie tem um passado roqueiro rico, mas que por muito tempo foi completamente ignorado e visto com desprezo pela grande mídia e pela indústria fonográfica. 

Filho do diplomata José Maria Nogueira e de Noely Lindenberg Von Schingen, Ronaldo Lindenberg Von Schilgen Cintra Nogueira, seu nome verdadeiro, nasceu em julho de 1944, em Niterói, Rio de Janeiro. Sua família era conservadora e economicamente poderosa: era dona de um grupo financeiro que englobava banco de investimentos, banco comercial, uma financeira, uma corretora de valores e uma seguradora. O jovem Ronaldo foi criado para administrar todo esse conglomerado familiar. Apaixonado por aviação, cursou entre os 15 e 18 anos a Escola Preparatória de Cadetes do Ar de Barbacena para ser piloto de avião. Após a conclusão do curso, ingressou na Faculdade de Economia para dar continuidade ao destino que era cuidar dos negócios da família. 

Porém, aquele jovem com cara de galã de cinema francês tinha uma outra paixão além da aviação: a música. Era fã de rock’n’roll, em especial, dos Beatles, que naqueles meados dos anos 1960, sacudiam o mundo. Amigo pessoal dos integrantes da banda The Brazilian Bitles, numa noite qualquer de 1965, Ronaldo foi convidado pelos amigos da banda a subir ao palco de uma boate no Beco das Garrafas, o local mais boêmio do Rio de Janeiro na década de 1960, para cantar uma ou duas músicas. Dentre as canções que cantou estava “You’ve Got To Hide Your Love Away”, dos Beatles. Sua performance chamou a atenção do diretor da gravadora Philips na época, João Araújo (pai de Cazuza), ele estava na plateia assitindo. Araújo o convidou para gravar um disco. 

No ano seguinte, em 1966, sob o nome artístico Ronnie Von, ele lançou através do selo Polydor, da Philips, o seu primeiro single com duas canções dos Beatles, “You’ve Got To Hide Your Love Away” e uma versão em português de “Girl”, que virou “Meu Bem”. A canção “Meu Bem” foi um grande sucesso nas programações de rádio. Porém, quem não gostou nada dessa história de carreira artística foi a família de Ronnie. Seus familiares o acusaram de jogar o nome da família na lama. 

O primeiro compacto (single), de Ronnie Von, com duas regravações de duas
canções dos Beatles, "You've Got To Hide Ypur Love Away" e
uma versão em português de "Girl", Meu Bem".


Contrariando a vontade de sua família, Ronnie decidiu assumir a carreira de cantor e mudou-se para São Paulo em busca da realização do seu sonho. Em pouco tempo, já era presença frequente dos programas de TV como o Corte Rayol Show, na TV Record. Em 1966, lança o seu primeiro e homônimo álbum. Nessa época, o grande sucesso da TV brasileira era o programa Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, e onde se apresentavam os maiores astros da música jovem do Brasil. Visando fazer frente ao Jovem Guarda da TV Record, a TV Excelsior planejava contratar Ronnie Von para fazer um programa dedicado ao público jovem. Porém, a TV Record foi mais rápida: contratou Ronnie Von para apresentar um programa só seu. Batizado de O Pequeno Mundo de Ronnie Von, o programa de Ronnie era aos sábados, enquanto que o Jovem Guarda era aos domingos. O nome do programa foi baseado no apelido dado pela apresentadora Hebe Camargo (1929-2012), que chamou Ronnie de “Príncipe”, numa associação ao personagem “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). 

A TV Record não estava tão interessada no Ronnie. A ideia em contratá-lo era apenas para eliminar um concorrente direto para o Jovem Guarda. Apesar de não ter por parte da emissora o mesmo grau de atenção que tinha com o Jovem Guarda, o programa do Ronnie aos poucos foi dando certo, o que desfaz a ideia errônea de que o cantor fez parte do movimento Jovem Guarda. Foi no programa de Ronnie que pela primeira vez os Mutantes se apresentaram na TV. Naquele programa se apresentaram também outros jovens artistas que em pouco tempo se tornariam grandes estrelas do Tropicalismo como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Porém, alguns astros que se apresentavam no Jovem Guarda como Os Vips, Jerry Adriani (1947-2017) e Martinha, também chegaram a cantar no programa de Ronnie. 

Enquanto isso, na música, o grande estouro de Ronnie veio em 1967 com a marcha-rancho “A Praça”, composta por Carlos Imperial (1935-1992), e que se tornaria o maior sucesso da carreira do cantor. Só nas duas primeiras semanas de lançamento, o compacto de “A Praça” vendeu 22 mil cópias. O sucesso da canção só alimentou a “rivalidade” fomentada pela imprensa entre Ronnie Von e Roberto Carlos, o “príncipe” versus o “rei”. No mesmo ano, foram lançados o segundo e terceiro álbuns, ambos com o nome de Ronnie Von. O terceiro álbum traz os Mutantes como banda de apoio de Ronnie Von na maioria das faixas, mais a participação especial de Caetano Veloso na faixa “Pra Chatear”. Esse terceiro disso traz indícios do caminho musical que Ronnie iria tomar no próximo álbum. 

Indícios de novo rumo: em seu terceiro álbum (foto) Ronnie Von contou com
os Mutantes como banda de apoio e uma participação especial de Caetano Veloso.
O álbum mostra que Ronnie Von começava a flertar com a psicodelia. 

Apesar do sucesso, das boas vendagens de seus discos e do carinho das fãs, Ronnie Von não andava nada satisfeito. Percebia que o que se produzia de música pop nacional na época no Brasil - leia-se Jovem Guarda - era muito “certinha” e ingênua demais, enquanto que o rock internacional passava por transformações inovadoras. Estava insatisfeito também com os seus próprios discos que vendiam bem, mas tudo baseado em pop songs “açucaradas” e bobagens cafonas como “A Praça”. Mesmo aqui no Brasil, os tropicalistas fervilhavam de ideias ousadas por volta de 1968, e que nada deviam ao que se produzia de vanguarda na música pop internacional. 

Influenciado pela psicodelia dos Beatles e pela pintura surrealista de Salvador Dali(1904-1989) e de René Magritte (1898-1967), Ronnie nutria o desejo fazer novas experiências na sua música como misturar o erudito e o popular. Mas para pôr em prática a sua ideia, ele precisava de uma oportunidade para promover a ruptura. 

A oportunidade aconteceu a partir de 1968, quando houve a troca de direção na gravadora Philips. Enquanto o novo presidente da gravadora, André Midani, não chegava para assumir o posto, Ronnie aproveitou a ocasião para gravar o discio. Para pôr em prática a sua ideia, Ronnie convocou gente competente como o maestro e arranjador tropicalista Damiano Cozzella (1929-2018) e o jovem produtor Arnaldo Saccomani (1949-2020), que havia trabalhado como assistente de Manuel Barenbein, produtor da maioria dos discos dos artistas tropicalistas. Saccomani ficaria conhecido décadas mais tarde como jurado do programa Ídolos, do SBT. Além de Cozzella e Saccomani, Ronnie contou com o apoio da banda psicodélica B-612 para acompanha-lo nas gravações. Todos eles ajudaram a dar vazão às ideias e "viagens" criativas de Ronnie. 

O som psicodélico dos Beatles e as pinturas surrealistas de Salvador Dali e
René Magritte, influenciaram Ronnie Von a buscar
novas experiências musicais. 

Intitulado apenas como Ronnie Von, o quarto álbum do cantor carioca chegou às lojas por volta de janeiro de 1969, e inaugura a aventura de Ronnie Von na música psicodélica. É um trabalho que destoa completamente dos discos anteriores. A começar pela capa, que aparece Ronnie com o torso nu em pose máscula e sensual, emoldurado numa arte psicodélica. O conteúdo do disco é recheado de liberdade e ousadia musical que tanto Ronnie buscava: arranjos orquestrais elaborados (influência dos Beatles, safra 1966/1967), à base de naipe de metais e de cordas, guitarras com efeitos de fuzz, colagens sonoras, letras surrealistas. 

O álbum começa com Ronnie Von declamando um poema que anuncia a faixa “Meu Novo Cantar”, uma canção cujos versos são bem alusivos ao momento de transformação artística que o cantor estava passando. “Chega de Tudo” trata sobre a urgência da juventude em viver o momento, o aqui e agora: “O ontem não existe / No amanhã depois eu penso / O hoje é tudo, enfim / Pra você e pra mim / Vamos sorrir”. 

A faixa seguinte é sem dúvida, a melhor do álbum, “Espelhos Quebrados”. Começa com um incrível barulho de espelhos se quebrando. Para gravar esse som, levaram espelhos e que foram quebrados em pleno estúdio onde tudo foi gravado. Logo que a quebradeira de espelhos silencia, vem uma pequenina e bela peça sinfônica pop barroca, cuidadosamente criada pelo maestro Damiano Cozzela. Ela serve de pano de fundo para Ronnie cantar a letra composta por Arnaldo Saccomani, cheia de versos surrealistas como “Sinto as nuvens de papel / Hoje um carro sobe ao céu / O sapato é de jornal / Mas o incenso é nacional”. “Espelhos Quebrados” é considerada a “Eleanor Rigby” do rock brasileiro. 

O maestro e arranjador Damiano Cozzella e o produtor
Arnaldo Saccomani: resposáveis por ajudar a dar vazão à
viagem psicodélica de Ronnie Von.

Após “Espelhos Quebrados”, o ouvinte é surpreendido por um jingle publicitário bem parecido com aqueles veiculados em rádio, fazendo propaganda do Bar Íris que realmente existiu em São Paulo nos anos 1960. A brincadeira certamente foi inspirada no The Who, que inseriu falsos jingles entre as faixas do álbum The Who Sell Out (1967), do The Who. O jingle dá início a “Sílvia: 20 Horas, Domingo”, que começa com um som “sujo” de guitarra cheio de efeitos de pedal fuzz, acompanhado por baixo, bateria e naipe de metais. A letra é sobre um rapaz que marcou um encontro com uma garota num domingo, às 20 horas. Depois desse encontro, ele aguarda ansioso para que a semana passe e reencontre a moça no próximo domingo no mesmo horário. 

“Menina de Trança” é uma bela balada romântica sobre o romance de um rapaz com uma moça de tranças. A canção possui uma leveza e doçura nos versos, e uma certa inocência sem ser pueril. Na base instrumental, a flauta doce e o fagote pontuam boa parte da música. 

O lado A termina com “Nada de Novo’ / ‘Lábios que Beijei”, uma faixa que é na prática duas em uma. A primeira parte é um pop psicodélico sobre a vida de alguém que durante o dia é cheio de compromissos profissionais, mas encontra uma válvula de escape à noite, frequentando os bares e casas noturnas para relaxar depois de um dia duro de trabalho. Na reta final, a faixa conclui com Ronnie Von cantando um trecho de “Lábios que Beijei”, sucesso de Orlando Silva em 1937. Ronnie canta com a voz empostada, caricata, com efeitos de estúdio para simular um cantor seresteiro dos anos 1930. 

O lado B do álbum abre com a melancólica “Esperança de Cantar”, que embora escrita por Chil Deberto e Eduardo Araújo, diz muito sobre aquela fase que Ronnie vivenciava quando adotou um novo direcionamento musical. A letra toca nesse assunto, ainda que de maneira sutil, e parece ressaltar as incertezas que essa mudança estaria reservando ao artista: “Eu sigo e canto sem olhar pra trás / Pra não trazer uma tristeza a mais / No meu caminho a tristeza é certa / A sorte incerta e há de se cansar”. 

“Anarquia” começa com uma curiosa conversa telefônica entre Ronnie Von e o maestro Damiano Cozzella sobre a moda. Em “Anarquia”, Ronnie conclama a todos para irem às ruas protestar, fazer uma tremenda anarquia à base de amor e alegria. A letra, influenciada pelos lemas hippies “paz e amor” e “faça amor, não faça guerra”, soa um tanto quanto ingênua demais, num momento em que o mundo naquele final de década de 1960, passava por grandes turbulências, como jovens protestando contra a Guerra do Vietnã e por liberdade expressão, neste último caso, em países que viviam naquele período sob regimes ditatoriais como o Brasil. 

O poder da flor: jovem hippie enfrentando as baionetas da guarda nacional americana 
em protesto contra a Guerra do Vietnã, em 1967. A canção "Anarquia" convocava
os jovens a irem às ruas protestar na base do "paz e amor" hippie.

Misticismo e ficção- científica se misturam em “Mil Novecentos e Além”, cujos versos narram a chegada à Terra do homem de ouro do cinto de couro que veio do além. “Tristeza Num Dia Alegre” possui em sua introdução um incrível e interessantíssimo som que foi conseguido de maneira inusitada: ele inseriu um microfone dentro de um piano cauda aberta, e depois foi batendo com baquetas de tímpano nas cordas e na madeira do piano. Em “Tristeza Num Dia Alegre”, um dia ensolarado e bonito também pode ser um dia triste, principalmente para quem perde um ente querido. 

A tristeza é um tema presente em “Contudo Todavia”, música sobre um indivíduo que parece saber que está no fim da vida, e que antes da sua partida, quita as suas dívidas e faz caridade. A música alterna ritmo percussivo no início e o ritmo de valsa estilizada. “Contudo Todavia” termina ao som de marcha marcial. 

“Canto de Despedida” encerra o álbum em clima de carnaval. A letra, ainda que escrita por Arnaldo Saccomani, parece se referir muito ao próprio Ronnie Von. É sobre um homem que se despede de sua amada e parte para a sua jornada dedicada à música: “É, meu amor / Meu canto é de despedida / O violão já deu saída / Tenho uma canção sentida / Pra cantar noutro lugar”. 

A recepção por boa parte da crítica ao álbum Ronnie Von que inaugura a fase psicodélica do cantor não foi das melhores. Já habituados com as canções “palatáveis” dos discos anteriores e com o ar de “bom moço” do cantor, os críticos reagiram com estranheza àquele álbum. O jornalista e compositor Sérgio Bittencourt (1941-1979), filho do músico Jacob do Bandolim (1918-1969), quebrou o disco de Ronnie em pleno programa de TV do apresentador Flávio Cavalcanti (1923-1986), onde era jurado. 

Comercialmente, o disco não foi bem, vendeu pouco. Assim como críticos musicais, o público não recebeu bem o disco, não estava preparado para aquele novo momento do artista. A faixa “Sílvia: 20 Horas, Domingo”, ainda chegou a ter alguma execução em rádio. 

A experiência psicodélica de Ronnie Von persistiu nos álbuns seguintes, A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais (1969) e Máquina Voadora (1970). O saldo dessa aventura foi que os três álbuns foram um fracasso em vendas, apesar de toda a dedicação de Ronnie Von em querer ousar, em querer criar algo novo e interessante.  As pressões comerciais acabaram desiludindo Ronnie que a partir dos trabalhos posteriores, passou a gravar discos mais comerciais, muito embora ainda existisse entre uma canção e outra, incursões do cantor em experimentar coisas novas, fora do previsível, como a música “Cavaleiro de Aruanda”, composta por Tony Osanah, gravda em 1972, quando ele experimenta gravar uma canção vinculada à musicalidade afro-brasileira e às religiões de matriz africana. 

Após décadas em completo esquecimento, os discos psicodélicos de Ronnie Von foram redescobertos pelas novas gerações no final dos anos 1990, sobretudo pelos colecionadores e fãs de psicodelia, inclusive por estrangeiros. Em 2007, a jornalista Flávia Durante organizou um tributo virtual via internet intitulado Tudo de Novo – Tributo A Ronnie Von, reunindo 30 bandas de todo o Brasil. No mesmo ano, a gravadora Universal Music relançou em versão CD os três álbuns da trilogia psicodélica de Ronnie Von, até então inéditos nesse formato. 

Faixas 

Lado A

1. “Meu Novo Cantar” (Arnaldo Saccomani)

2. “Chega de Tudo” (Arnaldo Saccomani)

3. “Espelhos Quebrados” (Arnaldo Saccomani)

4. “Sílvia: 20 Horas, Domingo” (Tom Gomes – Luís Vagner)

5. “Menina de Tranças” (Hédys – Flávia)

6. a) “Nada de Novo” (João Magalhães – Eneyda)

    b) “Lábios que Beijei” (J. Cascata- Leonel Azevedo)

 

Lado B

7. “Esperança de Cantar” (Eduardo Araújo – Chil Deberto)

8. “Anarquia” (Arnaldo Saccomani)

9. “Mil Novecentos e Além” (Arnaldo Saccomani)

10. “Tristeza num Dia Alegre” (Newton Siqueira Campos – Vicente Paula Sálvia)

11. “Contudo, Todavia” (João Magalhães – Eneyda)

12. “Canto de Despedida” (Arnaldo Saccomani) 

 

Referências:

Revista Bizz – novembro/2000 – Edição 184, Editora Símbolo.

Jornal O Globo – edição 24 de abril de 2007.

lightintheattic.net




“Meu Novo Cantar” 

“Chega de Tudo” 

“Espelhos Quebrados” 

“Sílvia: 20 Horas, Domingo” 

“Menina de Tranças” 

“Nada de Novo”/“Lábios que Beijei” 

“Esperança de Cantar”

 "Anarquia"

“Mil Novecentos e Além”

“Tristeza num Dia Alegre”

“Contudo, Todavia”

“Canto de Despedida”

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