“Do Cóccix Até O Pescoço” (2002), Elza Soares



As gerações mais recentes tomaram conhecimento de Elza Soares através do seu aclamadíssimo álbum A Mulher Do Fim Do Mundo, lançado em 2015, um trabalho inovador e instigante. O álbum apresentou uma cantora que mesmo após ter passado os 80 anos de idade, estava completamente em sintonia com as novas tendências da música pop contemporânea, bem como mostrou uma artista completamente envolvida com temas, infelizmente tão atuais e ainda necessários como racismo, homofobia e violência doméstica.

Contudo, para Elza chegar ao inovador A Mulher Do Fim Do Mundo, não foi algo que veio do nada. É preciso voltar no tempo, até o começo 2002, quando ela havia lançado o seu trigésimo álbum, Do Cóccix Até O Pescoço, no qual a veterana cantora já fazia experimentações musicais, mesclando samba, soul, funk, rap e pop eletrônico.

Até a década de 1970, Elza Soares costumava lançar regularmente um novo álbum anualmente, o que permitia uma presença constante da cantora na grande mídia. Porém, a partir da década seguinte, a carreira de Elza Soares sofre um declínio vertiginoso. Sua vida pessoal atravessava por momentos difíceis: seu casamento conturbado com o ex-jogador de futebol, Garrincha, chegava ao fim em 1982. Um ano depois, Garrinha morre vítima de cirrose hepática. Em 1986, Elza e seu filho Manoel Francisco, fruto da relação da cantora com Garrincha, sofrem um grave acidente de carro numa estrada de Magé para o Rio de Janeiro. A cantora não teve ferimentos graves, mas seu filho não teve a mesma sorte: morreu no acidente aos nove anos de idade. Elza passou por um profundo processo de depressão, fez tratamento, e decidiu morar fora do Brasil por um tempo para só retornar quando se sentisse recuperada emocionalmente. Durante o período que viveu no exterior, morou em alguns países da Europa e nos Estados.

Garrincha e Elza Soares: casamento turbulento.

Tais fatores ajudam entender a discografia de Elza Soares tão escassa nos anos 1980, quando lançou apenas dois álbuns, Somos Todos Iguais (1985) e Voltei (1988), que tiveram pouca repercussão. O único momento em que Elza esteve com um pouco mais em evidência nessa época, foi quando ela recebeu um convite de Caetano Veloso para uma participação especial na canção “Língua”, presente no álbum Velô, lançado pelo cantor baiano em 1984.

Em 1994, após oito anos morando no exterior, Elza votou de vez para o Brasil. Depois de nove sem lançar álbuns, a cantora lançou em 1997 Trajetória, álbum voltado para o samba tradicional, cujo repertório reuniu composições de Chico Buarque, Aldir Blanc, Arlindo Cruz, Nei Lopes, Guinga, João Roberto Kelly, entre outros. Elza foi contemplada com o Prêmio Sharp na categoria "Melhor Cantora de Samba". Lança em 1999, o álbum independente gravado ao vivo Carioca da Gema. Os dois álbuns, no entanto, não chamam a atenção do grande público. No final de 1999, se apresenta ao lado de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Virgínia Rodrigues no show Desde Que O Samba É Samba, no Royal Albert Hall, em Londres.

Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, inicia-se um processo de redescoberta de Elza Soares. Em janeiro de 2000, estreia no Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, o musical Crioula - A Dama do Suingue, espetáculo sobre a vida de Elza Soares, e que trouxe no seu elenco Zezé Polessa, Elisa Lucinda, Tuca Andrade entre outros atores.
Ainda em 2000, Elza Soares estreou o show Dura Na Queda, no Teatro Glória do Rio de Janeiro, e que se desdobou numa turnê pelas principais cidades brasileiras. O título do show foi baseado numa canção homônima composta por Chico Buarque, inspirado numa queda que Elza em 1999, quando caiu do palco, de uma altura de 2 metros, na as de shows Metropolitan, no Rio de Janeiro, e que quase custou a vida cantora. A canção foi incluída no musical Crioula - A Dama do Suingue. O show Dura Na Queda contou uma superprodução que teve a direção de José Miguel Wisnik, produção cenográfica de Gringo Cardia, iluminação de Maneco Quinderé e figurino de Cao Albuquerque. No show, Elza dividiu o palco coma banda carioca Afroreggae. A turnê Dura Na Queda chegou a circular no exterior: Elza se apresentou no Shepherd’s Bush Empire, em Londres, em dezembro de 2000.
Cena do musical Crioula - A Dama do Suingue, estrelada por Zezé Polessa e
baseada na vida de Elza Soares.

Mesmo com os elogios da crítica pela turnê Dura Na Queda e até pelo título que recebeu da rádio e TV BBC, de Londres como “A Cantora do Milênio”, Elza Soares continuava sem gravadora. Se as grandes gravadoras - com algumas das quais Elza já havia trabalhado como a EMI e a Universal – não tinham interesse em Elza Soares, um pequeno selo baiano, a Maianga Discos, abraçou a ideia de lançar um novo álbum da veterana cantora. A produção do álbum ficou a cargo de Alê Siqueira e a direção artística com José Miguel Wisnik, o mesmo que dirigiu a turnê Dura Na Queda.
Lançado em meados de 2002, Do Cóccix Até O Pescoço difere do antecessor álbum de estúdio de Elza, Trajetória, mais voltado ao samba tradicional. Do Cóccix Até O Pescoço era o reflexo do novo momento em que Elza estava vivendo e que ela já vinha apresentando nos shows. Elza se aproximava do samba soul, do funk e até do rap, mostrando-se uma artista aberta a novos experimentos musicais. O fato de estar trabalhando com gente nova, talvez tenha contribuído no processo de renovação da música de Elza.
O álbum contém regravações e canções até então inéditas, como “Dor de Cotovelo” (de Caetano Veloso) e “Hoje é Dia de Festa” (de Jorge Ben Jor) e uma de autoria da própria Elza, em parceria com a atriz Letícia Sabatella, “A Cigarra”.
“Dura Na Queda”, composta por Chico Buarque especialmente para Elza, e presente na turnê que levou o nome da música, é quem abre o Do Cóccix Até O Pescoço. Nas entrelinhas, a letra da canção diz respeito a Elza Soares. Apesar da vida da cantora ter sido muito sofrida desde a infância, a música é alegre. “Vagueia / Devaneia / Já apanhou à beça / Mas para quem sabe olhar / A flor também é / Ferida aberta / E não se vê chora”. Wisnik é quem toca o piano e o percussionista é Marcos Suzano.
“Hoje É dia De Festa”, de Jorge Ben Jor, é um samba funk alegre e festivo, cheio de scratches de hip hop, naipe de metais de funk e uma percussão bem acentuada. A voz de Jorge Ben Jor que aparece inserida em “Hoje É dia De Festa” foi sampleada de uma antiga canção do cantor, “O Namorado Da Viúva”.
Em “Haiti”, regravação de música Caetano Veloso e Gil originalmente gravada por eles para o álbum dupla, Tropicália 2 (1993), Elza manteve a orientação rap da versão original.  No entanto, na versão de Elza, foi inserido uma percussão afro-baiana inspirada na Timbalada. Há também um naipe de metais e scratches.
“Dor De Cotovelo” foi composta por Caetano Veloso especialmente para Elza Soares. É um samba-canção com letra um tanto quanto melancólica, mas a interpretação de Elza não deixa a canção cair no fosso da tristeza. A letra trata dos males do ciúme, capaz de causar dores físicas: “Dói da flor da pele ao pó do osso / Rói do cóccix até o pescoço”. O verso revela de onde foi extraído o título que dá nome ao álbum.
A faixa seguinte, “Bambino”, é um antigo choro composto pelo pianista brasileiro Ernesto Nazareth (1863-1934) no começo do século XX como uma música instrumental. Só veio ganhar letra décadas mais tarde através de José Miguel Wisnik, e gravada desta maneira com Ná Ozzetti em 1999 para o seu álbum Estopim. Elza gravou a sua versão carrega nos seus arranjos um clima nostálgico.
Mais uma regravação presente no álbum é “A Carne”, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelleti. Apesar de ter sido gravada pela primeira vez pela banda Favela Carioca (banda da qual Seu Jorge fazia parte), em 1998 para o primeiro disco do grupo, Moro No Brasil, “A Carne” ficou mais famosa na voz de Elza, que começa com o verso forte “A Carne mais barata do mercado / É a carne negra”. Enquanto a versão original era um reggae, a de Elza virou um rap, na qual a cantora empregou uma forte carga dramática na interpretação, fazendo desta canção uma das mais impactantes sobre racismo já gravadas na música popular brasileira.  
Elza Soares em cena do videoclipe de "A Carne".

“Eu Vou Ficar Aqui”, de Arnaldo Antunes, é uma deliciosa mistura de samba e funk, cujo ritmo dançante faz jus aos versos: “Por isto toquem a música bem alto / Toquem e me façam dançar / (Façam meu corpo dançar) ”.  O ritmo dançante prossegue na faixa seguinte, “Etnocopop”, de Carlinhos Brown, um samba funk com uma percussão pesada que remete ao som da Timbalada, e uma letra de versos estranhos que parecem sobre a perseguição da polícia às ditas minorias: negros, índios e prostitutas.
Outra canção antiga, já gravada e que ganhou um novo formato com Elza soares foi “Fadas”. Composta por Luíz Melodia, “Fadas” foi gravada pela primeira vez pelo próprio Luíz em 1978 num ritmo de choro para o seu álbum Mico De Circo. Com Elza, “Fadas” virou um tango onde a cantora mostra toda a sua versatilidade artística.
“Flores Horizontais” é um poema de Oswald Andrade (1890-1954), e musicado por José Miguel Wisnik. Elza canta acompanhada de um contrabaixo acústico e de um piano.
Uma das melhores músicas do álbum é “A Cigana”, composta por Elza Soares em parceria com a atriz Letícia Sabatella. “A Cigana” é uma música que é um misto de oração com canto de roda de capoeira. Sabatella não só é coautora da música, como também faz uma participação especial cantando na gravação, e de maneira bastante graciosa e agradável. O berimbau pontua a música do início ao fim, levando o ouvinte a imaginar que está em alguma roda de capoeira em Salvador.
A atriz Letícia Sabatella:  parceria autoral e dueto com Elza Soares em "A Cigarra", 

“Quebra Lá Que Eu Quebro Cá”, traz Elza Soares cantando cheia de animação acompanhada apenas do pandeiro do percussionista Marcos Suzano. A faixa é um samba com voz e pandeiro que reúne me forma de pout-pourri várias canções famosas da música popular brasileira como “Salve Mocidade”, “Garota De Ipanema”, “Juventude Transviada”, entre outras.
“Todo Dia” é uma faixa que mistura samba rock e rap, e que traz Elza Soares cantando com a participação especial do rapper ABM Aguiar, autor da música que trata sobre racismo, violência e desigualdade social. No refrão, Elza canta dando ênfase na impostação rouca e cheia de suingue, demonstrando que está bem à vontade e íntima da fusão samba, funk e rap.  
“Façamos” é uma versão em português escrita por Carlos Rennó para “Let’s Do It”, de Cole Porter (1891-1964). Elza canta em dueto com o amigo Chico Buarque, e conta com um arranjo belíssimo e elegante, que mistura um reggae sutil e estilizado com jazz. “Façamos” serviu de tema de abertura da telenovela Desejos de Mulher, de Euclydes Marinho, produzida pela TV Globo em 2002.
Chico Buarque faz dueto com Elza Soares em "Façamos (Vamos Amar)", e teve uma canção sua,
 "Dura Na Queda", gravada pela cantora no disco.

Do Cóccix Até O Pescoço recebeu os melhores elogios da crítica e do público. “A Carne” fez muito sucesso assim como o seu videoclipe. Com a boa receptividade, Elza fez uma turnê pelas principais cidades brasileiras e uma excursão no exterior. Em 2003, o álbum recebeu uma indicação ao Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de MPB”.
Ainda em 2003, Elza lançou um novo álbum de estúdio, Vivo Feliz, pela gravadora Tratore. O álbum é praticamente uma extensão de Do Cóccix Até O Pescoço, só que indo mais à fundo no experimentalismo, fazendo mais uso das batidas eletrônicas, chegando até a flertar com o drum’n’bass e o dub de maneira surpreendente. Quatro anos depois, através do selo Biscoito Fino, Elza lançou o álbum e DVD gravado ao vivo Beba Me, que traz os sucessos antigos e os mais contemporâneos da carreira de Elza Soares.
Todo o experimentalismo empregado em Do Cóccix Até O Pescoço, e radicalizado em Vivo Feliz, desembocou no consagrador A Mulher Do Fim Do Mundo, álbum de 2015, que deu a Elza o Grammy Latino na categoria “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, em 2016.
Faixas
01-“Dura Na Queda” (Chico Buarque)
02-“Hoje Dia De Festa” (Jorge Benjor)
03-“Haiti” (Caetano Veloso - Gilberto Gil)
04-“Dor De Cotovelo” (Caetano Veloso)
05-“Bambino” (Ernesto Nazareth - José Miguel Wisnik)
06-“A Carne” (Seu Jorge - Marcelo Yuka - Wilson Cappellette)
07-“Eu Vou Ficar Aqui” (Arnaldo Antunes)
08-“Etnocopop” (Carlinhos Brown)
09-“Fadas” (Luiz Melodia)
10-“Flores Horizontais” (Oswald De Andrade - José Miguel Wisnik)
11-“A Cigarra” (Elza Soares - Letícia Sabatella)
12- “Quebra Lá Que Eu Quebro Cá” – pout-pourri:
“Não Volto Atrás” (Oswaldo Nunes)
“Samba Crioula” (Elza Soares)
“Salve A Mocidade” (Luiz Reis)
“Garota De Ipanema” (Tom Jobim - Vinícius De Moraes)
“Samba É Bom Assim” (Norival Reis - Hélio Nascimento)
“Fechei A Porta’ (Sebastião Motta - Ferreira Santos)
“O Amanhã” (João Sérgio)
“Juventude Transviada” (Luiz Melodia)
“Cadê O Pandeiro” (Roberto Martins - Walfrido Silva)
13-“Todo Dia” (ABM De Aguiar)
14- “Façamos’ (Vamos Amar) ” (Cole Porter - versão: Carlos Rennó)


Ouça na íntegra o álbum 
Do Cóccix Até O Pescoço



"A Carne" (videoclipe original)





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