“2112” (Mercury Records, 1976), Rush



Por Sidney Falcão

A situação do Rush não era das mais agradáveis depois do lançamento do seu terceiro álbum de estúdio, Caress of Steel, lançado em setembro de 1975. O álbum não foi muito bem recebido pelo público e pela crítica. As vendas de Caress f Steel foram baixas e a turnê promocional do álbum deu mais prejuízo do que lucro. Diante do fracasso das vendas de Caress of Steel, a gravadora Mercury Records exigiu que dos membros do Rush que o próximo álbum da banda fosse mais comercial e que não houvesse experimentalismos e nem faixas longas. A companhia acreditava que o fato de Caress of Steel ter duas faixas longas, como “The Necromancer” (mais de 12 minutos de duração) e “The Fountain of Lamneth” (quase 20 minutos) teriam sido a razão do fracasso comercial daquele álbum. Para se ter uma ideia do descontentamento da Mercury com o Rush, a gravadora estava considerando a possibilidade de demitir a banda, de não a ter mais no seu cast de artistas. No entanto, o empresário do Rush na época, Ray Danniels, conseguiu contornar a situação, e a gravadora decidiu continuar com a banda, desde que o próximo álbum fosse comercial.

Porém, os integrantes do Rush estavam dispostos a arriscar, e decidiram contrariar a Mercury. Por acreditarem no tipo de música que estavam fazendo, não estavam dispostos a ceder às exigências da Mercury Records, ainda que isso pudesse custar a demissão da banda naquela gravadora. Mantiveram para o próximo álbum o mesmo direcionamento musical de Caress of Steel, em que a banda transita entre o hard rock e o rock progressivo, aposta em música longa e dividida em várias partes. Coincidência ou não, o novo álbum, intitulado 2112, foi lançado em 1° de abril de 1976, exatamente no “Dia da Mentira”.

Fracasso comercial de Caress of Steel quase custou a permanência
do Rush na Mercury Records.

2112 é um trabalho que de fato, manteve musicalmente características do álbum antecessor, em que o Rush mescla o peso e a agressividade do hard rock com o experimentalismo e virtuosismo do rock progressivo. Mas se analisarmos um pouco mais a fundo, o Rush conseguiu em 2112 conciliar os seus interesses com os da Mercury Records. Ao mesmo tempo que traz uma faixa longa abordando um determinado tema dividido em várias partes tomando todo o lado 1 do disco, o álbum 2112 traz no seu lado 2 cinco faixas em formato padrão para tocar no rádio, como desejava a gravadora. O álbum foi gravado no Toronto Sound, em Toronto,no Canadá, com Rush e o produtor Terry Brown na produção.

A faixa-título é quem abre o álbum, e teve a sua letra escrita pelo baterista Neil Peart (1952-2020). Inspirada no livro Anthem (Cântico, no Brasil), da escritora, roteirista e filósofa russa, Ayn Rand (1905-1982), lançado em 1938, a música “2112” narra uma história dividida em sete partes sobre uma sociedade dominada pelos Sacerdotes dos Templos Syrinx, onde as vontades e desejos dos cidadãos são controlados por essa irmandade. Como é uma sociedade que funciona na coletividade, regime imposto pelos sacerdotes, é proibido aos cidadãos a individualidade, a liberdade e a criatividade. O planeta em que essa sociedade habita, é vinculado à Estrela Vermelha da Federação Solar, uma organização que exerce poder sobre todos os planetas da galáxia desde o fim de uma grande guerra espacial em 2062, e que a partir de então, teria começado um suposto período de paz. Mas a situação começa a mudar quando um jovem anônimo faz uma descoberta que poderá mudar tudo. 

O livro Anthem, da escritora russa Ayn Rand, foi inspiração para Neil Peart compor "2112".


O símbolo que ilustra a capa do álbum 2112 é um marca que representa a Estrela Vermelha da Federação Solar, e foi criada pelo designer gráfico canadense Hugh Syme. Na contracapa, onde está a foto da bateria de Neil Peart, aparece no fundo escuro, atrás do instrumento, o símbolo da federação galáctica com a figura de um homem nu de costas inserida. Ao longo do tempo, essa marca acabou sendo incorporada como logo do Rush. Um dado curioso é que além de designer gráfico, Hugh Syme participa do álbum também como tecladista em algumas faixas.

 A mini-opera rock espacial “2112” abre o álbum. É dividida em sete partes ao longo dos seus pouco mais de vinte minutos. Musicalmente, a banda alterna vários tipos de andamento, indo do hard rock à balada romântica, passando pelo experimentalismo do rock progressivo.

I-“Overture”, primeira parte da longa faixa, é um hard rock instrumental. Começa com sons eletrônicos que dão um caráter de filme de ficção científica. Os sons foram criados a partir de um sintetizador ARP Odyssey com pedal Echoplex Delay, executados por Hugh Syme, o designer gráfico que criou a capa do álbum 2112 e a logo do Rush na contracapa. Hyme foi o primeiro músico fora do Rush a tocar num disco da banda canadense. Ele ainda faria participação em discos futuros do grupo tocando sintetizadores.

II-“Temples of Syrinx”. Neste hard rock, os sacerdotes dos templos de Syrinx afirmam o seu poder e o controle sobre a vida dos cidadãos, desde o que ouvem até o que veem. Geddy Lee canta de maneira berrada e esganiçada, acompanhado por uma base instrumental pesada e agressiva.

III- “Discovery” começa com um som de água corrente, seguido por delicados acordes de guitarra. Nos versos desta parte, o personagem central e anônimo da história, encontra um instrumento musical antigo, talvez um violão ou uma guitarra. Ele toca o instrumento cujo som o deixa maravilhado. Decide então leva-lo para mostrar aos sacerdotes e compartilhar aquela descoberta com o seu povo.

IV-“Presentation”. O nosso herói leva o instrumento que descobriu para apresentar aos sacerdotes, e para eles toca uma música. A reação dos sacerdotes é de desprezo. Eles acham que aquilo é uma perda de tempo, que a nova realidade não precisava mais de coisas antigas. Nesta parte, merece destaque a maneira como Geddy Lee canta, em que ele faz dois personagens, cantando de maneira calma para representar o personagem protagonista, e aos berros encarnando os sacerdotes ditadores. Nesta parte, o trecho começa lento e termina num ritmo acelerado, com Alex Lifeson fazendo solos alucinantes na sua guitarra elétrica. 

Alex Lifeson (á esquerda), Geddy Lee (ao centro) e Neil Peart (na bateria ao fundo)
 na turnê promocional de 2112, em 1976.


V-“ Oracle: The Dream”. Frustrado após mostrar o instrumento musical aos sacerdotes, o personagem principal da música volta para casa. E no trajeto ele tem uma visão do passado e do que poderá ser o futuro como num sonho. Ele vê o que seria o passado, mãos habilidosas criando trabalhos de arte maravilhosos. A visão lhe mostra também a antiga raça que havia deixado o planeta há muito tempo, mas que um dia irá voltar para reivindicar o seu antigo lar e destruir os templos dos sacerdotes.

VI-“Soliquy”. Ao despertar do sonho que teve, o personagem percebe que a realidade em que vive é cruel, e que não suportará mais viver aquela vida “fria e vazia” naquele mundo. Esta parte da música sugere que o herói da canção, desiludido, teria tirado a própria vida.

VII-“The Grand Finale” é a parte que encerra a primeira e longa faixa do álbum. Esta última parte é um hard rock instrumental que chega ao fim com uma voz robótica anunciando repetidamente: “Atenção todos Planetas da Federação Solar / Atenção todos Planetas da Federação Solar / Atenção todos Planetas da Federação Solar / Nós assumimos o controle / Nós assumimos o controle / Nós assumimos o controle”. O anúncio dá a entender que a raça antiga teria retornado ao seu antigo planeta e destituído os sacerdotes, levando ao ouvinte concluir que o sonho profético do protagonista havia se tornado realidade.

O lado 2 de 2112, onde estão as músicas mais curtas, começa com “A Passage to Bangkok”, um hard rock com os vocais gritados de Geddy Lee. A letra faz um espécie de “roteiro turístico” da maconha, fazendo uma viagem por cidades como Bogotá, Acapulco, Marrocos e Bangkok, que faziam (ou ainda fazem) parte da rota internacional do tráfico da maconha. No entanto, a banda trata do assunto com uma grande sutileza, sem nem mesmo citar o nome da droga, mas fazendo uso apenas de metáforas.

A faixa “The Twilight Zone” foi inspirada numa série americana de TV de mesmo nome produzida pelo canal CBS, e que fez muito sucesso nos anos 1960. Os membros do Rush eram fãs confessos da série. No Brasil, a série ficou conhecida como Além da Imaginação. A letra da música é bastante interessante e faz referência a fatos de alguns episódios da série. Na sequência, vem “Lessons”, música composta por Alex Lifeson, e que durante o seu andamento rítmico, alterna folk rock e hard rock.

Anúncio promocional do álbum 2112, em 1976. À esquerda, a imagem que
se tornou a logo do Rush.


O clima fica mais leve e calmo com a balada romântica “Tears”, uma canção que possui uma linda e delicada linha melódica. Geddy Lee canta de maneira doce e tranquila, e mostra que nem de longe parece o mesmo vocalista de voz esganiçada dos hard rocks do Rush. Merece destaque nesta música o som imponente do mellotron tocado por Hugh Syme, que é também o autor da capa de 2112. Na faixa, o instrumento simula sons de cordas e de sopros.

Finalizando o álbum, “Something for Nothing”, que embora seja um hard rock, começa com um som de violão de doze cordas. Em seguida, a delicadeza sonora cede espaço ao peso do hard rock que acompanha os vocais esgoelados de Geddy Lee. A letra celebra a força de vontade do ser humano e o direito do indivíduo ser dono do seu próprio destino.

2112 foi uma aposta arriscada do Rush, pois ignorou a exigência da Mercury Records que não queria mais um álbum com música longa. Se o álbum fracassasse nas vendas, significaria que a trajetória do Rush naquela gravadora chegaria ao fim. Porém, o álbum foi bem recebido pelo público, e por incrível que pareça, justamente a faixa mais longa e que dá nome ao disco, foi a mais aclamada. As vendas do álbum dispararam, e em 1977, 2112 chegou à marca de 500 mil cópias nos Estados Unidos, onde a banda ganhou disco de ouro. Dezenove anos depois do lançamento de 2112, em 1995, o Rush recebeu disco de platina triplo por 2112 ter alcançado a marca de 3 milhões de cópias vendidas no mercado americano.

As boas vendas de 2112 deram crédito ao Rush dentro da Mercury Records, a tal ponto de em setembro de 1976, a gravadora lançar um álbum duplo gravado ao vivo, All The World A Stage, que trouxe um registro de um show no Massey Hall, em Toronto, no Canadá. A apresentação fez parte da turnê do álbum 2112, que havia começado fevereiro de 1976 (dois meses antes do lançamento do álbum) e que se encerrou em junho de 1977. Aquela turnê passou pelos Estados Unidos, Canadá, e levou o Rush pela primeira vez à Europa.

O sucesso de 2112 deu projeção mundial ao Rush. Abriu uma sequência de álbuns importantes na discografia da banda muito bem avaliados pelo público e pela crítica, e que atingiu o ápice com Moving Pictures, em 1981, o álbum mais vendido da carreira do trio canadense.

 

Faixas

Todas as letras por Neil Peart, exceto onde indicado; todas as músicas por Geddy Lee e Alex Lifeson, exceto onde indicado.

Lado 1

1. "2112" - 20:34

I. "Overture" - 4:32

II. "Temples of Syrinx" - 2:13

III. "Discovery" - 3:29

IV. "Presentation" - 3:42

V. "Oracle: The Dream" - 2:00

VI. "Soliloquy" - 2:21

VII. "The Grand Finale" - 2:14

 

Lado 2

1."A Passage to Bangkok" - 3:34

2."The Twilight Zone" - 3:17

3."Lessons" (Letra: Lifeson) - 3:51

4."Tears" (Letra: Lee) - 3:31

5."Something for Nothing" (Música: Lee) - 3:59

 

Créditos

Rush: Geddy Lee (vocais e baixo elétrico), Alex Lifeson (guitarra, violão), Neil Peart (bateria, percussão)

Músico adicional: Hugh Syme – ARP Odyssey na introdução de "2112", mellotron em "Tears"


Referências:

Rush: the illustrated history, Martin Popoff, 2013, Voyageur Press

rush.com

Wikipedia



Ouça na íntegra o álbum 2112



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