“Pearl” (Columbia, 1971), Janis Joplin
Por Sidney Falcão
No final de
1969, Janis Joplin já era a grande estrela feminina do rock mundial. O seu
primeiro álbum solo, I Got Dem Ol 'Kozmic Blues Again Mama!.
Apesar da fama alcançada, a vida pessoal de Janis Joplin não ia nada bem. O
vício da cantora em álcool e heroína se agravava cada vez mais, a tal ponto de
não só estar afetando a sua saúde como também a sua carreira profissional. Janis
fez uma apresentação abaixo da média no Festival de Woodstock, em agosto
daquele ano. Em novembro, foi convidada para fazer um dueto com Tina Turner num
show em Nova York, e a sua performance foi simplesmente constrangedora. A crise
se estabeleceu e a banda de apoio de Janis, a Kozmic Blues Band, se dissolveu
em janeiro de 1970.
Numa
tentativa de se recuperar da sua dependência química, Janis Joplin decidiu
passar as férias no Brasil, acompanhada da sua amiga e figurinista Linda
Gravenites. A escolha pelo Brasil se deu após a cantora assistir ao filme Orfeu Negro, uma produção
ítalo-franco-brasileira dirigida por Marcel Camus, rodada no Rio de Janeiro em
1959. Janis e sua amiga chegaram ao Brasil em fevereiro de 1970, a tempo de
assistir ao carnaval do Rio de Janeiro. E foi na praia de Copacabana que Janis
conheceu aquele que foi o grande amor de sua vida, David Niehaus, um jovem americano
adorava viajar pelo mundo a fora, e que naquele momento estava de passagem pelo
Brasil. Os dois engataram um romance que marcaria a vida de Janis.
Janis Joplin se divertindo no Carnaval do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1970. |
Enquanto Linda retornava para os Estados Unidos, Janis decidiu permanecer por mais algum tempo no Brasil na companhia do novo namorado. Janis e David decidiram aproveitar esse tempo e viajar para Salvador, onde a cantora se encantou com a cidade e a cultura afro-baiana. De Salvador, juntamente com os novos amigos que fizeram na capital baiana, Janis e David seguiram pelo litoral norte em direção à então paradisíaca Arembepe, e lá visitaram a recém-formada aldeia hippie que se tornaria famosa mais tarde.
Enquanto
esteve no Brasil, Janis conseguiu se manter longe da heroína, e o apoio de
David Niehaus foi fundamental. A dedicação um ao outro fez nascer uma paixão
muito forte entre os dois. Após quase dois meses no Brasil, Janis retornou para
os Estados Unidos. Niehaus ainda ficou no país para resolver problemas de
visto, mas foi ao encontro de Janis na Califórnia logo que deixou o Brasil.
Contudo, as recaídas de Janis com a heroína nos Estados Unidos acabaram minando
a relação do casal, motivando David a terminar tudo. Embora apaixonados, cada
um decidiu seguir o seu caminho: Janis a carreira artística e David as viagens
ao redor do mundo. Ainda assim, mantiveram algum contato nos meses que se
seguiram.
A separação
e a solidão, acabaram motivando Janis a focar na sua carreira. Por volta de
abril de 1970, montou uma nova banda de apoio, a The Full Tilt Boogie Band,
formada por John Tilt (guitarra), Brad Campbell (baixo), Richard Bell (piano), Ken
Pearson (órgão) e Clark Pierson (bateria). Não demorou muito, Janis já estava
ensaiando com sua nova banda de apoio. O ambiente leve e descontraído com os
membros da nova banda, fizeram Janis ficar cada vez mais entusiasmada.
Janis Joplin e David Niehaus : uma paixão que nasceu no Brasil. |
Em maio,
Janis fez os primeiros shows com a The Full Tilt Boogie Band. No mês seguinte,
Janis e banda, participaram da curiosa turnê All-Star Festival Express, uma
excursão de trem pelo Canadá da qual também participaram Buddy Guy, Grateful
Dead, The Band, Tem Years After, Flying Burrito Brothers entre outros.
Com a ajuda de seu gerente de turnê, John Cooke, Janis conseguiu um produtor para o novo álbum que ela estava pretendendo gravar. O produtor era Paul Rothchild, profissional que já havia trabalhado nos discos do The Doors. Era experiente, e ideal para ajudar Janis Joplin a alcançar os seus objetivos. As gravações do novo álbum ocorreram entre setembro e começo de outubro de 1970, no Sunset Sound Recorders, em Hollywood, na Califórnia, um estúdio que o produtor Paul Rothchild conhecia muito bem, pois lá ele produziu os dois primeiros álbuns dos Doors, como o autointitulado álbum de estreia da banda e Strange Days, ambos lançados em 1967.
Janis Joplin na praia do Rio Vermelho, em Salvador, com amigos que fez na Bahia, em fevereiro de 1970. Ao fundo, distante, se vê a parte de trás da Igreja de Nossa Senhora de Sant'ana. |
Nesse meio tempo, Janis estava passando por tratamento para cuidar do seu vício em drogas. Estava “limpa”, mais disposta, mais motivada, o que só contribuiu para sentir-se mais focada na sua carreira artística. Contudo, ela não conseguiu livrar-se do álcool, continuava bebendo, porém, com menos intensidade já que em excesso, isso poderia prejudicar a sua voz num momento em que estava em fase de gravação do novo álbum. Além disso, não queria contrariar o trato que tinha com o exigente produtor Paul Rothchild. Para aceitar ser seu produtor, Rothchild havia perguntado a Janis o que ela queria ser dali a trinta anos, e ela respondeu: “Como a maior cantora de blues do mundo, a Bessie Smith”. Foi por causa dessa resposta que ele aceitou o convite e prometeu ajudá-la a alcançar esse objetivo. E era justamente por causa disso que Janis não queria decepcioná-lo. Queria manter-se disciplinada e a mais focada possível. Janis era pontual nos horários de gravação, e quando ocorria de chegar atrasada, era no máximo de trinta minutos.
Janis Joplin e o produtor Paul Rothchild. |
Em 1º de
outubro fez o que acabou se tornando a sua última sessão de gravação. Janis
gravou naquele dia a faixa “Mercedes-Benz” e uma canção em homenagem ao
aniversário de John Lennon, que no próximo dia 9 de outubro, na semana seguinte
fará trinta anos de idade. Outros artistas também estariam gravando canções em
homenagem ao colega aniversariante.
Dois dias
depois, no dia 3 de outubro, Janis ouve no estúdio Sunset Sound a base
instrumental de “Buried Alive In The Blues” gravada pela sua banda de apoio, e
após a audição, ela deu a sua aprovação. Agendou para gravar os vocais dessa
música no dia seguinte. Deixou o estúdio à noite, por volta das 23 horas, com
dois dos músicos da banda, o pianista Richard Bell e o organista Ken Pearson, e
foram ao bar Barney’s Beanery. À meia noite, deixaram o bar e foram para o
Landmark Hotel (atualmente Highland Gardens Hotel), onde Janis e os músicos da banda estavam hospedados.
No dia
seguinte, 4 de outubro, um domingo, passadas dezoito horas, Paul Rothchild
estranhou o longo atraso de Janis Joplin. Foram feitos vários telefonemas para
a suíte em que Janis estava hospedada, mas ela não atendia. Atendendo o pedido
de Rothchild, o gerente de turnê, John Cooke, foi até o hotel, e com a
permissão da portaria, pegou uma chave e conseguiu entrar no quarto de Janis, e
lá encontrou o corpo da cantora, caído entre a mesa da cabeceira e a cama.
Leito de morte: o atual Highland Gardens Hotel era o Landmark Hotel, onde Janis Joplin morreu, em outubro de 1970. |
Segundo a autópsia, Janis morreu de overdose de heroína, só que numa versão dez vezes mais forte do que a que ela costumava usar. A autópsia revelou que Janis estava há cerca de um mês sem tomar metadona, o que acabou fazendo com que a cantora tivesse uma recaída. Foram encontradas maracas recentes de agulha no braço esquerdo da cantora, comprovando que Janis havia voltado a usar heroína há poucas semanas. Naquela mesma noite fatídica de Janis, mais outras oito pessoas morreram de overdose de heroína, provavelmente da mesma que matou a cantora texana. A conclusão que se chegou foi que Janis não sabia que aquela heroína que ela injetou possuía um alto grau de pureza, fora do comum, tornando a droga muito mais letal.
Em 7 de
outubro, os pais de Janis realizaram o funeral privado no Westwood Village
Memorial Park Cemetery, em Los Angeles. Conforme o desejo de Janis, seu corpo
foi cremado e as cinzas espalhadas através de um avião que sobrevoou a costa do
condado de Marin, na Califórnia. Semanas depois, um outro desejo de Janis foi realizado:
ela deixou três mil dólares no testamento especialmente para serem gastos pelos
seus amigos na organização de uma festa em sua memória, e que contou com a
apresentação de amigos músicos, como os membros da Big Brother & The
Holding Company, a banda que revelou Janis Joplin ao mundo.
Janis deixou no seu testamento três mil dólares para que amigos organizassem uma festa em sua memória. |
Intitulado Pearl ("pérola" em português), que era também o apelido de Janis,
o tão esperado álbum de cantora texana foi lançado postumamente em 11 de janeiro de
1971, três meses após a sua morte. Baseado num repertório apoiado no rock,
blues-rock, e canções com influências de soul e country music, Pearl
apresenta uma produção mais “polida”, mais refinada se comparada com os álbuns
anteriores. A produção conduzida por Paul Rothchild e uma banda de alto nível
como a The Full Tilt Boogie Band, valorizaram Janis Joplin como intérprete. Janis
está cantando na sua plenitude, expondo toda a sua carga emocional, ao mesmo
tempo que conserva uma interpretação equilibrada, ajustada.
Tudo isso
não deixa de ser um mérito de Rothchild, que havia prometido ajudar Janis a ser
uma grande cantora de blues como ela desejava ser. Talento para isso, Janis
tinha. Mas um produtor experiente e disciplinador, capaz de orientar e extrair
o melhor do potencial do artista, faz uma grande diferença. E Rothchild tinha
essa capacidade.
O álbum
começa com “Move Over”, um rock pesado, beirando o hard rock, escrito pela
própria Janis Joplin inspirada no seu grande amor, David Niehaus. A letra é
sobre uma mulher apaixonada, que questiona o homem que ama ter terminado tudo,
mas que permanece rodeando-a.
A balada
“Cry Baby” foi originalmente gravada por Garnett Mimms & The Enchanters, em
1963. Enquanto a versão original é uma soul music bem-comportada, a versão de
Janis ganhou um arranjo mais blues rock e uma interpretação vocal da cantora
com um forte apelo dramático. Outro detalhe que que difere a versão de Janis da
versão original, foram algumas alterações na letra deram um caráter pessoal à
versão da cantora americana, e que fazem uma conexão direta ao seu amado David
Niehaus, como nestes versos: “You might
find out later that the road'll end in Detroit / Honey, the road'll even end in
Kathmandu / É o canto de uma mulher desesperadamente apaixonada”. (“Você pode descobrir mais tarde que a
estrada vai terminar em Detroit / Querido, a estrada poderá até terminar em
Kathmandu”). Esses versos não estão na versão original, e deixam evidentes
que eles fazem referência a David Niehaus e seu espírito aventureiro, um homem
do mundo.
"Cry Baby" fez sucesso em 1963 com o Garnett Mimms & The Enchanters (foto) e foi regravada em 1970 por Janis Joplin para o álbum Pearl. |
As dores da
paixão prosseguem na faixa seguinte, “A Woman Left Lonely”, em mais uma
interpretação emocionante de Janis Joplin que canta sobre uma mulher abandonada
pelo homem que ama, mas que ainda guarda uma inútil esperança de tê-lo de
volta. Destaque para a performance de Ken Pearson no órgão Hammond.
Depois de
duas canções dilacerantes, o clima fica um pouco mais animado com “Half Moon” e
sua deliciosa linha percussiva. Embora fale de amor, o tema é abordado de
maneira leve. A canção foi composta a pedido de Janis por um casal de amigos, o
músico John Hall e a jornalista Johanna Hall. John fez a melodia e Johanna a
letra.
Fechando o
lado 1 de Pearl, “Buried Alive In The Blues”, única faixa instrumental do
álbum. Era a música em que Janis havia aprovado a base instrumental na véspera
de sua morte, e iria gravar no dia seguinte. E no dia que ia gravar, ela
morreu. Na finalização da produção do álbum, após a morte de Janis, foi
cogitada a possibilidade do compositor da música, Nick Gravenites, gravar o
vocal. Mas a ideia foi totalmente vetada, e foi decidido manter a música
instrumental, sem vocal.
The Full Tilt Boogie Band foi a última banda de apoio de Janis Joplin. |
O lado 2 abre com “My Baby”, faixa que possui um andamento bastante interessante, que traz o piano e a guitarra do blues rock mesclado com o compasso rítmico de valsa. A letra trata sobre uma mulher que se sente confiante e segura com o homem que ama ao seu lado. Aqui, a alusão a David Niehaus é também evidente. Durante o período em que estiveram juntos, Janis manteve-se longe da heroína, e o apoio de David foi bastante importante.
“Me and
Bobby McGee” é outro cover presente no álbum. Composta pelo cantor e compositor
Kris Kristofferson, a música foi gravada pela primeira vez pelo cantor de
country music Roger Miller, em 1969. Num espaço de um ano, outros tantos
artistas a regravaram. Mas foi a versão de Janis Joplin a que ficou mais
famosa. Embora tivesse se notabilizado no blues rock, aqui Janis transitou com
tranquilidade pelo country rock.
Kris Kristofferson, autor de "Me and Bobby McGee", que ganhou uma versão definitiva de Janis Joplin. |
Em “Mercedez
Benz”, Janis solta a sua voz à cappela,
cantando de maneira bastante humorada, em que pede a Deus para ele comprar para
ela um carro Mercedes-Benz, uma TV a cores e uma “noite na cidade”. “Trust Me”
versa sobre uma mulher que pede paciência ao homem que ela ama, até ela
sentir-se segura e preparada para se envolver com ele.
Pearl termina em grande estilo com a ótima
“Get It While You Can”, uma comovente balada blues rock em que Janis aconselha ao
ouvinte a aproveitar ao máximo os momentos com alguém que lhe dá amor e
carinho, “aproveitar enquanto pode”. E mais uma vez, a alusão ao romance de
Janis e David Niehaus é inevitável. Embora não tenha sido escrita por Janis, a
letra tem tudo a ver com a história de amor da cantora e Niehaus que ela
conheceu no Brasil.
Evidente que
a morte de Janis Joplin gerou uma grande comoção, e isso influenciou de alguma
forma o desempenho comercial de Pearl, que alcançou a marca de três
milhões de cópias vendidas somente nos Estados Unidos, tornando-se o álbum mais
vendido da discografia de Janis. O álbum ficou em 1º lugar na parada da Billboard 200, nos Estados Unidos, por
nove semanas. Enquanto que o single de “Me and Bob McGee”, figurou em 1º lugar
na Billboard 100, nos Estados Unidos,
em março de 1971.
Janis Joplin
viveu pouco, apenas 27 anos de existência. Cantava como um vulcão prestes a
entrar em erupção com a sua voz rouca e rasgada, mas que sabia soar doce e
suave quando necessário. Branca, Janis encarnou de maneira intensa e sem
limites, toda a carga dramática das grandes divas negras do blues e do jazz,
como Bessie Smith (sua grande inspiração), Billie Holliday e Big Mama Thornton.
Talvez por isso, foi até semelhante a elas no momento da morte. Sua carreira
artística foi curtíssima, mas o suficiente para cravar o seu nome na história
da música popular mundial, e se tornar a maior voz feminina do rock em todos os
tempos, e ser uma referência importante para gerações de cantoras que surgiram
após a sua passagem meteórica neste mundo.
Faixas
Lado 1
- "Move Over (Janis Joplin)"
- "Cry Baby (N. Meade - B. Russel)"
- "A Woman Left Lonely (D. Penn - S. Oldham)"
- "Half Moon (J. Hall)"
- "Buried Alive in the Blues (N. Gravenites)"
Lado 2
- "My Baby (J. Ragovoy - M. Shuman)"
- "Me and Bobby McGee (K. Kristofferson - F. Foster)"
- "Mercedes Benz (J. Joplin - M. Mclure)"
- "Trust Me (B. Womack)"
- "Get It While You Can (J. Ragavoy - M. Shuman)"
Janis Joplin (vocal, violão (em "Me
and Bobby McGee"),
Full Tilt Boogie Band: John Till (guitarra elétrica), Richard Bell (piano), Ken Pearson (órgão Hammond), Brad Campbell (baixo) e Clark Pierson (bateria)
Referências:
Revista Bizz –
setembro /1985 – Edição 02, Editora Abril)
Revista Bizz –
outubro /1997 – Edição 147, Editora Azul)
Janis: Her Life and Music - Holly George-Warren, 2019, Simon & Schuster
janisjoplin.com
rollingstone.com
rollingstone.uol.com.br
Apesar de preferir a crueza dos discos anteriores, acho Pearl um álbum excelente. Dá pra perceber o encaminhando de Janis para um aperfeiçoamento técnico necessário para a conservação de sua potência vocal.
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