“Correndo O Risco” (Warner, 1986), Camisa de Vênus


O biênio 1984/1985 foi bastante positivo para a banda Camisa de Vênus. Em 1984, o quinteto baiano assinou com a gravadora RGE, e naquele mesmo ano lançaram Batalhões de Estranhos, segundo álbum de estúdio do grupo e que emplacou os hits “Eu Não Matei Joana D’Arc”, “Hoje” e “Lena” que deram ao Camisa de Vênus visibilidade na grande mídia. O bom desempenho comercial de Batalhões de Estranhos garantiu ao Camisa de Vênus um ano de 1985 bastante proveitoso com a banda passando a ter frequência garantida nas rádios e nos programas de TV, além é claro, de tocar para plateias cada vez mais lotadas.

Logo no início de 1986, após um show no Parque Lage, no Rio de Janeiro, o Camisa de Vênus recebeu em seu camarim a visita de uma figura que daria um novo rumo na já próspera carreira do quinteto. A figura em questão era André Midani, então diretor da gravadora da Warner, que nos anos 1960, conduziu a gravadora Philips e revelou novos talentos que se tornariam gigantes da MPB como Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Mutantes, entre outros artistas notáveis. Midani conhecia a “má fama” do Camisa de Vênus, de ser uma banda desbocada e rebelde, mas mesmo assim mostrava-se interessado no trabalho do grupo e na sua performance arrasadora no palco. Estava disposto a levar aquele “insulto” (como ele mesmo qualificou a banda) para a sua gravadora.  André Midani fez uma proposta que Marcelo Nova e seus companheiros não puderam recusar. Aceitaram.

Como devia ainda um álbum à RGE, previsto no contrato com aquela gravadora, a saida mas rápida para cumprir o trato antes de deixar a RGE e partir para a nova companhia era gravar um álbum ao vivo. Em 8 de março de 1986, sob a produção do produtor Pena Schimidt, o show do Camisa de Vênus no Caiçara Music Hall, em Santos, São Paulo, foi todo gravado ao vivo. O material gravado gerou o álbum ao vivo, lançado em meados do mesmo ano de 1986. Das dez faixas, oito foram censuradas por causa dos palavrões. Mesmo assim, Viva conseguiu a proeza de vender mais de 180 mil cópias, cativando o público com uma sonoridade crua e agressiva, sem nenhum tratamento de pós-produção em estúdio, mantendo as imperfeições de áudio do palco.

Camisa de Vênus no show no Caiçara Music Hall, em Santos, em março de 1986,
onde foi gravado ao vivo o álbum Viva.

De contrato assinado com a Warner, o Camisa de Vênus entrou em estúdio em agosto de 1986 para gravar o seu terceiro álbum de estúdio, o primeiro pela nova gravadora. Com produção de Pena Schimidt, as gravações do novo álbum do Camisa ocorreram no estúdio RAC, em São Paulo, e foram concluídas em setembro do mesmo ano.

Intitulado Correndo O Risco, o álbum que marcou a estreia do Camisa de Vênus na Warner foi lançado em 7 de novembro de 1986. O lançamento do novo disco causou um certo mal estar entre o Camisa de Vênus e a parcela mais radical dos seus fãs que viu na ida do quinteto para uma grande gravadora uma “traição”, já que a banda teve as suas origens no punk e negava o mercantilismo musical.

Por outro lado, uma outra parcela dos fãs não deu importância a esses detalhes e adoraram o álbum. Correndo O Risco é um álbum muito bem produzido e apresenta um Camisa de Vênus mais maduro e diversificado musicalmente, diversificação essa que já era percebida desde o segundo álbum, onde experimentou com o pop, a new wave e reggae. No novo álbum, a banda flerta com o blues, o rockabilly, o country e até com a música erudita. As guitarras soam melhor e mais calibradas em Correndo O Risco, diferente da sonoridade fraca que possuíam nos dois primeiros álbuns de estúdio da banda. O som da banda está mais vigoroso, Marcelo Nova canta melhor do que nunca.

Camisa de Vênus numa pausa das gravações de Correndo o Risco para uma sessão de fotos.
Em pé, da esquerda para a direita: Robério Santana e Gustavo Mullem. Sentados, da esquerda para a direita:
Karl Hummel, Aldo Machado e Marcelo Nova..

Correndo O Risco começa com uma viagem no tempo através do rockabilly “Simca Chambord”, nome de um carro que marcou época na indústria automobilística brasileira. Na música, o carro antológico serve de fio condutor para o Camisa de Vênus contar um pouco de uma passagem da História do Brasil, entre a prosperidade do governo do presidente João Goulart e o golpe que ele sofreu quando foi derrubado do poder pelos militares em 1964, e mergulhou o país em vinte anos de ditadura militar.

“Mão Católica” é uma crítica direta e sem rodeios à Igreja Católica, que para expandir o Cristianismo pelo mundo ao longo da História, usou o artifício da culpa como instrumento de repressão e dominação de seus fieis: “Nascer com o mal na alma / Pro batismo libertar / Carregar a cruz de toda culpa / E coloca-la no altar / Domingo tem a missa obrigatória / Ajoelhar perante a santa inquisição / Pras bruxas temos a fogueira / Pros santos nós temos o perdão”.

O blues “Morte Ao Anoitecer” possui uma letra mórbida e soturna, que mais parece de canção de alguma banda gótica. Em “Deus Me Dê Grana”, o Camisa mostra o que sabe fazer bem: crítica social com humor. A letra fala se um sujeito que desempregado que pede dinheiro a Deus para saldar as suas dívidas.

Simca Chambord 1963: homenageado pelo Camisa de Vênus com uma música que leva o nome do carro.

A faixa seguinte é a regravação de “Ouro de Tolo”, sucesso de Raul Seixas nos anos 1970. Diferente da versão original, mais voltada para o folk rock, o Camisa injetou mais eletricidade com uma versão rock e deu uma “atualizada” na letra: sai o Corcel 73 da versão original, entra o Monza 86; cruzados ao invés de cruzeiros; vídeo game no lugar do tobogã.

O medo, a angústia e a insegurança no mundo contemporâneo são temas presentes em “Só O Fim”, canção que se tornou um dos grandes sucessos da carreira do Camisa de Vênus. A música possui uma estrutura melódica curiosa. No trecho do refrão, remete e muito a “Gimme Shelter”, enquanto que o restante da canção lembra “Time Waits For No One”, ambas as músicas dos Rolling Stones, respectivamente lançadas em 1969 e 1974.

A sexista e debochada “O Que É Que Eu Tenho Que Fazer?”, é outra faixa do álbum que é a cara do Camisa de Vênus. Na letra Marcelo Nova é capaz de fazer qualquer loucura para ter momentos de sexo com a garota que tanto deseja: “Posso lhe dar calor, e mais se você quiser / Me diga como você gosta, eu quero é ter você, mulher / Posso ser masoquista ou da polícia, não faz mal / Poso até de Rock Star, um símbolo sexual”.

“Tudo Ou Nada” faz referência ao mundo competitivo, materialista, consumista e superficial em que vivemos: “O que parecia tudo, agora é nada / Sem nada nós queremos tudo / Contudo, parece que já não sabemos / De que vale tudo ou nada”.

Raul Seixas teve a sua canção "Ouro de Tolo" regravada pelo Camisa de Vênus 
para o álbum Correndo O Risco. 


A grande surpresa do álbum foi deixada para o fim, a longa e épica “A Ferro E Fogo”. O vocalista Marcelo Nova é acompanhado por uma orquestra sinfônica formada por 26 músicos e um coral de oito vozes, sob a regência do maestro Armando Ferrante Júnior. “A Ferro E Fogo” narra o desejo incontrolável de um grupo de homens em navegar os sete mares, sem temer os romanos e seus galeões ou mesmo as tempestades. “A Ferro E Fogo” surpreende não só por ser uma sinfonia num disco de uma banda que até pouco tempo tinha fama punk, como pela qualidade narrativa da letra, comprovando a capacidade do Camisa de Vênus de escrever canções falando desde sexo da maneira mais “chula” até canções de temáticas existencialistas ou mesmo épicas remetem à Odisseia, de Homero.   

Apesar das acusações vociferadas pelos fãs mais radicais do Camisa de que seus membros eram “traidores” ao assinarem contrato com a Warner, Correndo O Risco agradou o público que comprou mais de 300 mil cópias, fazendo do álbum o mais vendido da discografia da banda baiana. “Só O Fim”, “Deus Me Dê Grana” e “Simca Chambord” tocaram bastante no rádio e ganharam videoclipe. A banda seguiu em turnê nacional.

Com a regravação de “Ouro de Tolo” feita pelo Camisa de Vênus, houve uma aproximação da banda baiana com Raul Seixas, também baiano, e ícone do rock brasileiro. Essa aproximação resultaria num convite para Raul fazer uma participação especial no álbum seguinte do Camisa, Duplo Sentido (1987), na faixa “Muita Estrela, Pouca Constelação”. Isso se desdobraria depois numa parceria entre Marcelo Nova e Raul Seixas após o fim do Camisa, rendendo numa grande turnê pelo Brasil e num álbum de estúdio, A Panela do Diabo, lançado em 1989, e que seria o último trabalho em disco de Raul. 

Faixas
  1. “Simca Chambord” (Marcelo Nova - Gustavo Mullem - Karl Hummel - Miguel Cordeiro)
  2. “Mão Católica”
  3. “Morte Ao Anoitecer” (Marcelo Nova - Gustavo Mullem - Karl Hummel)              
  4. “Deus Me Dê Grana”     
  5. “Ouro De Tolo” (Raul Seixas)     
  6. “Só o Fim” (Marcelo Nova - Gustavo Mullem - Karl Hummel)      
  7. “O Que É Que Eu Tenho de Fazer?” (Marcelo Nova - Robério Santana)  
  8. “Tudo Ou Nada”
  9. “A Ferro E Fogo”

Todas faixas são de autoria de Marcelo Nova, Karl Hummel e Gustavo Mullem, exceto as indicadas.

Camisa de Vênus: Marcelo Nova(vocais), Gustavo Mullem (guitarra solo), Karl Franz Hummel (guitarra base), Robério Santana (baixo) e Aldo Machado (bateria).


"Simca Chambord"

"Mão Católica"

"Morte Ao Anoitecer"

"Deus Me Dê Grana"

"Ouro de Tolo"

"Só O Fim"

"O Que É Que Eu Tenho de Fazer"

"Tudo Ou Nada"

"A Ferro E Fogo"


"Só O Fim" (videoclipe original)



"Deus me Dê Grana"  (videoclipe original)



"Simca Chambord" (videoclipe original)




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