“Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira” (Som Livre, 1979), Moraes Moreira



Por Sidney Falcão

O encanto da convivência em comunidade dos Novos Baianos havia acabado para Moraes Moreira (1947-2020) em meados dos anos 1970. A banda vivia como uma trupe hippie num sítio em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde tudo era dividido coletivamente. Poderia ser mágico para quem era solteiro, mas não estava se tornado um tormento para Moraes que tinha esposa e dois filhos para sustentar. Se já não bastasse a carreira da banda ser mal gerenciada naquele momento, Moraes ainda tinha que aguentar marmanjo fazendo mingau para saciar a fome da larica com o leite das crianças. Cansado da situação, Moraes decidiu deixar os Novos Baianos em 1974, e partir em carreira solo, visando ter mais liberdade na carreira artística e dar uma vida melhor para a sua família.

Ao deixar os Novos Baianos, Moraes começou a desenvolver uma parceria com a turma do Trio Elétrico Dodô & Osmar, com quem gravou o álbum Jubileu de Prata (1974). Nasce então uma amizade entre Moraes e o guitarrista Armandinho Macedo, filho de Osmar Macedo (1923-1997), um dos inventores do trio elétrico. Até 1975, os trios elétricos animavam os carnavais baianos apenas com musicais instrumentais, não haviam cantores. Moraes se tornou o primeiro cantor de trio elétrico no carnaval de 1975, em Salvador, ao se apresentar com o Trio Elétrico Dodô & Osmar. A partir de então, até 1980, Moraes gravou com o Trio Elétrico Dodô & Osmar mais seis álbuns em paralelo com a sua carreira solo.

Foi em 1975 que Moraes Moreira lançou através da gravadora Som Livre, o seu primeiro e autointitulado álbum solo. Nesse seu trabalho, Moraes foi acompanhado de de Armandinho Macedo (guitarra), Dadi Carvalho (baixo) – que havia recém deixado os Novos Baianos – e Mu Carvalho (teclados), irmão de Dadi, e o baterista Gustavo Schroeter, curiosamente, o núcleo que formaria dois anos depois a banda A Cor do Som. Armandinho passaria dividir a carreira entre os trabalhos com A Cor do Som e com o Trio Elétrico Dodô & Osmar.

O primeiro grande sucesso da carreira solo de Moraes Moreira foi “Pombo Correio”, música do seu segundo álbum solo, Cara e Coração, de 1976. Foi feita a partir de uma outra música, “Double Morse”, uma antiga música instrumental do Trio Elétrico Dodô & Osmar, de 1952. Em 1976, Moraes fez a letra para essa música e nomeou-a “Pombo Correio”. A música fez um enorme sucesso, e o fato de ter entrado na trilha sonora da novela Sem Lenço, Sem Documento, da TV Globo, em 1977, contribuiu muito para alavancar a carreira de Moraes, e deu visibilidade nacional ao Trio Elétrico Dodô & Osmar, autor da música original. Seguiu-se o terceiro álbum solo, Alto Falante (1978), cuja faixa título, Moraes fez homenagem aos serviços de alto falante da sua cidade natal, Ituaçu, na Bahia, muito úteis na época de sua infância, quando pouquíssimas pessoas tinham condições de comprar um aparelho de rádio. Eram muito comuns no resto do interior do Nordeste nos anos 1940 até os anos 1960 aproximadamente.

Capa do primeiro e autointitulado álbum solo de Moraes Moreira, lançado em 1975.

Mas a consagração veio com o quarto álbum solo, Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira, considerado por boa parte da crítica, o melhor álbum da carreira solo de Moraes Moreira. O álbum foi gravado nos estúdios SIGLA, da gravadora Som Livre, no Rio de Janeiro, com uma produção muito bem conduzida pelo produtor Guto Graça Mello. Para gravar Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira, Moraes Moreira cercou-se de músicos talentosíssimos, alguns deles, seus ex-companheiros de Novos Baianos como o guitarrista Pepeu Gomes, o baixista Dadi Carvalho (que naquele momento já integrava a banda A Cor do Som), o baterista Jorginho Gomes, e os percussionistas Charles Chalita e Baixinho. Moraes também contou com as participações especiais de Oswaldinho do Acordeon e da banda A Cor do Som.

Assim como os álbuns que gravou com os Novos Baianos, bem como os seus trabalhos solos antecessores, Moraes Moreira se mostra em Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira um artista completamente adepto da diversidade musical, da comunhão entre a música popular brasileira (samba, xote e frevo) com as referências da música internacional (rock e reggae).

Mas Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira trouxe um elemento novo que o diferencia dos álbuns anteriores do cantor baiano: o ijexá. O ritmo musical, originado na África e que na Bahia teve como abrigo os terreiros de candomblé, ganhou as ruas de Salvador através blocos de afoxé durante os carnavais baianos ao longo do século XX. O bloco Filhos de Gandhy foi o maior disseminador do ijexá. No seu álbum Refavela (1977), Gilberto Gil experimentou o ijexá através da faixa “Patuscada de Gandhy”. Mas enquanto Gil experimenta o ijexá em seu estado bruto, Moraes experimenta esse gênero num estado mais “diluído”, mais estilizado, misturado com um caldo sonoro pop.

O álbum Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira trouxe como novidade
ao trabalho de Moraes Moreira o ijexá, ritmo tocado por blocos
como Filhos de Gandhy (foto), nos carnavais de Salvador. 

O disco começa com a música que dá nome ao álbum. “Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira” é um samba que nasceu quando Moraes Moreira e João Gilberto (1931-2019) caminhavam numa madrugada no Rio de Janeiro. Ao avistar no raiar do dia, uma linda e imponente mulata descendo o morro onde morava para ir trabalhar, João Gilberto disse: “ - Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira!”. A frase ficou gravada da mente de Moraes Moreira que percebeu que aquilo renderia uma boa canção. Ao lado do seu ex-colega de Novos Baianos, Pepeu Gomes, Moraes compôs a música que se tornou um dos maiores sucessos do álbum. A letra faz referência ao povo brasileiro das camadas populares, sobretudo, as mulheres chefe de família, que criam seus filhos sozinhas, que acordam cedo para trabalhar e garantir o sustento da casa.

A faixa seguinte é a divertida “Pelas Capitais”, um frevo animado que faz um passeio pelas capitais do Brasil. “Eu Sou O Carnaval” é o primeiro ijexá presente no álbum, onde há uma interessante alternância de solos da guitarra de Pepeu Gomes e da sanfona de Oswaldinho do Acordeon, enquanto que Charles, Baixinho e Luciano fazem o pano de fundo percussivo da música. No seu álbum Viva Dodô & Osmar, de 1980, o Trio Dodô & Osmar gravou uma versão de “Eu Sou O Carnaval”, que funde frevo e ijexá, e traz Moraes Moreira nos vocais.

“O Prometeu” é um reggae estilizado em que Moraes é acompanhado pela A Cor do Som, e que conta com um belo naipe de cordas (violinos, violas e cellos) que dá um toque refinado à faixa que é essencialmente pop. Moraes e A Cor do Som se encontram novamente em “Coração Nativo”, que apesar de ser um xote, não tem sanfona. Ao invés disso, há um grande destaque para o bandolim de Armandinho, que também gravou a guitarra dessa música.

A Cor do Som foi banda de acompanhamento em algumas faixas
de  Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira. 

O lado 1 de Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira termina com “Som Moleque”, em que Moraes é acompanhado pelos seus ex-companheiros de Novos Baianos: Pepeu Gomes na guitarra, Dadi no baixo, Jorginho Gomes na bateria e Baixinho nas congas. O ritmo percussivo e pulsante da música contrasta com a delicadeza do naipe de cordas.

Dando início ao lado 2 do álbum, “Valentão” faz Moraes Moreira reencontrar-se com as suas raízes nordestinas, quando na infância, aprendeu a tocar sanfona, no interior da Bahia. “Valentão” conta a história de um sanfoneiro que não tinha medo de nada, e que matou um viajante numa festa em uma pequena cidade do sertão nordestino. Nesta faixa, Oswaldinho do Acordeon faz uma participação especial com a sua sanfona. Uma curiosidade nesta música é que o fato narrado teria sido verídico. Segundo entrevistas dadas pelo próprio Moraes Moreira, esse sanfoneiro valentão existiu na cidade em que ele nasceu. Foi esse mesmo sanfoneiro quem teria ensinado Moraes a tocar sanfona quando era criança.

“Chão da Praça” é um interessantíssimo misto de ijexá e rock, com participação de Pepeu Gomes nos solos de guitarra. A música parece simular uma espécie de encontro entre Jimi Hendrix e os Filhos de Gandhy no carnaval de Salvador. Essa música já tinha sido gravada antes pelo Trio Elétrico Dodô & Osmar no álbum Ligação, lançado no final de 1978, numa versão frevo arrasadora, com vocais do próprio Moraes Moreira e Armandinho fazendo solos de guitarra demolidores. Essa versão foi o grande sucesso do carnaval de 1979, em Salvador.

“Feito Muhammed Ali” traz de novo Moraes e A Cor do Som juntos. A faixa possui uma bela sobreposição de solos de guitarra de Armandinho. Em “Choro Pequenino” Moraes mostra o seu lado de intérprete, quando ele canta totalmente alinhado ao ritmo pulsante e envolvente da percussão da música. Nesta faixa, Armandinho mostra toda a sua habilidade no bandolim, instrumento que ele domina tão bem quanto a guitarra elétrica. “Assim Pintou Moçambique” é outro ijexá presente em Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira, e é ele quem fecha o álbum.

Detalhe da contracapa de  Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira. 

Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira foi um trabalho consagrador na carreira de Moraes Moreira, um divisor de águas. “Eu Sou O Carnaval”, “Chão da Praça”, “Pelas Capitais” e “Assim Pintou Moçambique” foram as faixas mais tocadas do álbum no rádio. Foi o último álbum de Moraes Moreira pela Som Livre. Em 1980, ele assinou contrato com a Ariola, gravadora alemã que estava se instalando no Brasil. Além de Moraes Moreira, outros artistas de peso forma contratados, dentre eles Alceu Valença, Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Kleiton & Kledir, Marina Lima, MPB-4, Toquinho & Vinícius entre outros. Naquele mesmo ano de 1980, Moraes lançou pela Ariola, Bazar Brasileiro, outro elogiado e importante álbum do cantor, e que deu continuidade ao que foi desenvolvimento musicalmente em Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira.

Tendo como ponto de partida Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira, a presença de ritmos afro-brasileiros nos discos de Moraes Moreira se tornou mais frequente. A cada disco, Moraes mostra uma profundidade e envolvimento maior com esses ritmos, sempre conectados com o carnaval, levando o trabalho do artista a ser uma das principais influências para o surgimento da axé music a partir de meados dos anos 1980.

Faixas

Lado 1

  1. “Lá Vem O Brasil Descendo A Ladeira” (Pepeu Gomes - Moraes Moreira)
  2. “Pelas Capitais” (Jorge Mautner - Moraes Moreira)
  3. “Eu Sou O Carnaval” (Antônio Rizério - Moraes Moreira)
  4. “O Prometeu” (Moraes Moreira - Antônio Cícero)
  5. “Coração Nativo” (Fausto Nilo – Armandinho - Moraes Moreira)
  6. “Som Moleque” (Fausto Nilo - Moraes Moreira) 

Lado 2

  1. “Valentão” (Oswaldinho do Acordeon - Moraes Moreira)
  2. “Chão Da Praça” (Fausto Nilo - Moraes Moreira)
  3. “Feito Murammad Ali” (Abel Silva - Moraes Moreira)
  4. “Choro Pequenino” (Moraes Moreira)
  5. “Assim Pintou Moçambique” (Antônio Rizério - Moraes Moreira)

Ouça na íntegra o álbum Lá Vem O Brasil 
Descendo A Ladeira

"Chão da Praça" (versão frevo)
 Trio Elétrico Armandinho, Dodô & Osmar, 
participação Moraes Moreira (1978)







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