“Acabou Chorare” (Som Livre, 1972), Novos Baianos
Por Sidney Falcão
Imagine
combinar a guitarra elétrica distorcida de Jimi Hendrix (1942-1970) com o
bandolim de Jacob do Bandolim (1918-1969), o molejo do samba com a energia do
rock. Tais combinações até o começo dos anos 1970 parecia ser inimaginável até
os Novos Baianos lançarem em 1972, o seu segundo álbum, o antológico Acabou
Chorare.
Moraes
Moreira (voz e violão), Baby Consuelo (voz e afochê), Paulinho Boca de Cantor
(voz e pandeiro) e Luiz Galvão (letras) formaram o grupo que se tornaria os
Novos Baianos, em Salvador, Bahia, em 1969. Em agosto do mesmo ano, o grupo fez
a sua primeira apresentação para um grande público no espetáculo Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio,
no Teatro Vila Velha, em Salvador. O quarteto teve como banda de apoio, Os
Leif’s, formada por Pepeu Gomes (guitarra solo), Lico (guitarra base, Carlinhos
Gomes (baixo) e Jorginho Gomes (bateria). Desse encontro, nasceu o romance
entre Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que acabaram se casando e tendo vário
filhos.
A banda Os
Leif’s foi a mesma que acompanhou Caetano Veloso e Gilberto Gil no show de
despedida dos dois tropicalistas antes do exílio em Londres, realizado no Teatro
Castro Alves, em Salvador, em julho de 1969. O show foi gravado e lançado em
disco em 1972.
Em novembro
de 1969, os Novos Baianos participaram do 5º Festival da TV Record, em São
Paulo, onde defenderam a canção “De Vera”. Por incrível que pareça, como
conjunto musical, Moraes, Baby, Paulinho e Galvão, ainda não possuíam um nome.
No momento em que estavam prestes a se apresentarem no palco, como o grupo não
tinha nome, nos bastidores, o coordenador do festival gritou: “Chama aí esses
novos baianos!”. A expressão “novos baianos” se deve ao fato que até aquele
momento, os tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, já eram os
baianos consagrados daquela geração, enquanto que Moraes, Baby, Paulinho e
Galvão eram os novatos, uma novidade. O quarteto acabou assumindo o nome Novos
Baianos.
A
participação dos Novos Baianos na quinta edição do Festival da TV Record foi
breve, foram logo eliminados. Contudo, lançaram no mesmo ano pela gravadora
RGE, o primeiro single que incluiu duas canções, “Colégio de Aplicação” e “De
Vera”. No ano seguinte, lançam o primeiro álbum, É Ferro Na Boneca. O
título vem de um bordão usado pelo consagrado radialista baiano, França Teixeira
(1944-2013), “Ferro na boneca, minha cara e minha nobre família baiana! ”. Os
Leif’s serviram como banda de apoio dos Novos Baianos nas faixas “Ferro Na
Boneca”, “Eu De Adjetivos”, “Curto De Véu E Grinalda”, “Juventude Sexta E
Feira” e “De Vera”.
É Ferro Na Boneca, álbum de estreia dos Novos Baianos, lançado em 1970. |
Os Novos
Baianos decidem migrar para o Rio de Janeiro, onde vão morar num apartamento no
bairro de Botafogo. Porém, naquele momento, os Novos Baianos não se resumiam
apenas a Moraes, Baby, Paulinho e Galvão. O grupo havia se tornado uma espécie
de comunidade hippie, no qual, além do quarteto inicial, estava incluído uma
nova banda de apoio dos Novos Baianos, que contava agora Pepeu Gomes (guitarra
e violão), Dadi Carvalho (baixo), Jorginho Gomes (bateria e cavaquinho), Baixinho
(percussão e bateria) e Bolacha (percussão) que atendia pelo singelo nome A Cor
do Som. Somados a eles, estavam namoradas de alguns membros dos Novos Baianos e
amigos. O apartamento de quatro cômodos virou uma “babel hippie”.
Foi durante
a morada no apartamento em Botafogo que os Novos Baianos passariam por uma
transformação que mudaria sensivelmente a orientação musical do conjunto. E
essa transformação se deve a um artista: João Gilberto. Assim como Luiz Galvão,
João Gilberto nasceu em Juazeiro, cidade ao norte da Bahia. Os dois já se conheciam,
e como a trupe baiana estava morando no Rio, e João estava no Brasil após um
tempo morando no México com a filha e esposa, as visitas do mestre da bossa
nova ao apartamento dos Novos Baianos se tornaram constantes.
Nessas
visitas constantes, a música era o assunto principal nas rodas de conversa. E
foi durante essas conversas que João Gilberto apresentou àquele bando de
cabeludos, artistas consagrados do samba como Noel Rosa, Ary Barbosa, Assis
Valente dentre outros. João incentivava ao grupo a ideia da mistura de
referências musicais, da fusão do som do rock com a tradição da música
brasileira. Tal ideia mudaria para sempre a música dos Novos Baianos.
João Gilberto: ícone da bossa-nova e "guru" dos Novos Baianos. |
A morada no
apartamento de Botafogo tornou-se insustentável, e os Novos Baianos foram morar
no sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Espaçoso e
bucólico, o sítio era o lugar ideal para modo de vida comunitário dos Novos
Baianos. Tudo era dividido, até mesmo o pouco dinheiro que dispunham, que era
colocado numa sacola atrás da porta da cozinha. A música e o futebol eram a
rotina dos Novos Baianos. Ensaiavam e compunham pela manhã, e no final da
tarde, jogavam futebol. Os amigos artistas como Gal Costa e o próprio João
Gilberto, continuavam visitando os Novos Baianos na nova morada.
Numa dessas
visitas ao sítio dos Novos Baianos, João Gilberto levou a sua filha, Bebel
Gilberto, então com seis anos de idade, e que mais tarde tornou-se cantora.
Brincando e correndo no chão batido do sítio, Bebel acabou caindo. A queda
atraiu a atenção dos adultos que foram acudir a criança, que logo se refez do
susto e disse “Acabou chorare, papai! ”. Como João Gilberto e sua então esposa,
a cantora Miúcha, haviam recém mudado para o Brasil, a criança ainda não
dominava o português. Porém, a frase acabaria virando uma canção e título de um
dos mais aclamados discos da história da música popular brasileira em todos os
tempos: Acabou Chorare.
Um outro
João também acreditou no potencial musical dos Novos Baianos, João Araújo,
diretor da gravadora Som Livre, pai de Cazuza, que futuramente se tornaria
vocalista do Barão Vermelho nos anos 1980 e uma das maiores estrelas da
história do rock brasileiro. Araújo resolveu apostar naquele bando de
cabeludos: os Novos Baianos assinaram contrato com a gravadora Som Livre
através da qual iriam lançar o segundo álbum. Recém-criada, a Som Livre ainda
não possuía um estúdio próprio de gravação, logo, os Novos Baianos foram gravar
o seu novo álbum no Somil, um estúdio de quatro canais, no Rio de Janeiro,
especializado em gravação de áudio para cinema.
Mais do que um conjunto musical, os Novos Baianos haviam se tornado uma comunidade hippie. |
Produzido
por Eustáquio Sena e João Araújo, Acabou Chorare mostra não só uma
mudança incrível na orientação musical dos Novos Baianos como também uma grande
evolução da banda baiana em comparação ao primeiro álbum. O som coeso e muito
bem elaborado é resultado de muito ensaio e dedicação por parte dos músicos,
que quando foram ao estúdio para gravar o álbum, já estavam bem “afiados”. Em Acabou
Chorare, os Novos Baianos mostram que seguiram à risca os ensinamentos
do mestre João Gilberto, ao olharem para as próprias raízes musicais e conectar
essas referências à música popular contemporânea. O que se ouve em Acabou
Chorare é uma fusão de samba, rock, MPB, baião, choro, além da
convivência harmônica entre a guitarra elétrica, baixo e bateria com cavaquinho,
percussão, violão e craviola. Moraes Moreira e Pepeu Gomes ficaram responsáveis
com a criação dos arranjos das faixas do álbum.
Dentre todas
as faixas, apenas “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente (1911-1958), é a única
que não foi composta pelos Novos Baianos. É justamente “Brasil Pandeiro” quem
abre Acabou
Chorare. O samba foi composto por Assis Valente para Carmen Miranda
gravar, mas ela não gostou, preferindo gravar uma outra canção,
“Recenseamento”. O grupo Anjos do Inferno foi quem acabou gravando “Brasil
Pandeiro” em 1941. No entanto, trinta e um anos depois, o samba composto por
Valente e que exalta o Brasil, a sua cultura e seu povo, ganhou uma versão definitiva
com os Novo Baianos no álbum Acabou Chorare.
Baiano de Santo Amaro da Purificação, Assis Valente é o autor de "Brasil Pandeiro". |
“Preta
Pretinha”, a faixa seguinte, nasceu de uma desilusão amorosa de Luiz Galvão,
quando conheceu uma garota em Niterói. Ela prometeu que iria morar com ele no
apartamento junto à turma dos Novos Baianos, em Botafogo. Mas quando já estavam
na barca que faz o trajeto Niterói – Rio de Janeiro, a tal garota desistiu da
ideia, preferindo voltar para sua cidade natal e reatar o romance com o antigo
namorado. Apesar de tratar-se de uma canção sobre o caso amoroso de Galvão,
quem canta “Preta Pretinha” é Moraes Moreira, que faz a introdução com seu
violão. Mais adiante, Pepeu Gomes mostra toda a sua habilidade nos solos de
bandolim. A canção tem pouco mais de seis minutos, e carrega todo um clima de
saudosismo.
Um solo de
guitarra elétrica afiado e arrasador dá início a “Tinindo Trincando”, que conta
com Baby Consuelo no vocal principal, que canta cheia de ritmo e graciosidade,
em completa sintonia com a sessão percussiva da música. Em “Tinindo Trincando”,
os Novos Baianos alternam durante a execução da música, rock e baião, o que
mostra o quanto Moraes Moreira e Pepeu Gomes eram bastante talentosos na
criação dos arranjos das canções dos Novos Baianos.
Com Paulinho
Boca de Cantor no vocal principal, “Swing de Campo Grande” é um samba animado que
faz referência ao Carnaval, a festa mais popular do Brasil. Campo Grande é a
grande praça de Salvador, que durante o carnaval soteropolitano, é o ponto de
partida do Circuito Osmar Macedo, onde os blocos carnavalescos e
trios-elétricos começam os seus desfiles na área central da capital baiana.
Após a
animação de “Swing de Campo Grande”, a faixa seguinte, “Acabou Chorare”, que
fecha o lado A da versão LP do álbum. A canção traz um clima calmo e intimista
ao ouvinte com Moraes Moreira em voz e violão. É a canção mais bonita do álbum.
Aqui, nota-se a influência de João Gilberto no violão executado por Moraes.
Esta é a canção cujo título foi baseado frase dita por Bebel Gilberto aos seis
anos de idade (“Acabou chorare, papai!”) para não preocupar seu pai, João
Gilberto, que aflito socorrê-la. Com um arranjo simples, mas bonito e acalentador,
“Acabou Chorare” mais parece uma canção de ninar, feita na medida certa para
uma criança. Pepeu Gomes encerra a canção com um lindo solo de craviola.
O lado B do
álbum começa com a metafórica “Mistério do Planeta”, na voz de Paulinho Boca de
Cantor. É provavelmente a música com a letra mais complexa dos Novos Baianos.
“A Menina Dança” foi composta por Galvão e Moraes especialmente para Baby
Consuelo, que canta com toda a sua graça. Numa entrevista em 2010 para a edição
brasileira da revista Rolling Stone,
Baby afirmou que o verso “Quando cheguei
tudo estava virado”, referia-se ao fato de que à época, em meio às grandes
cantoras brasileiras daquele momento como Elis Regina e Gal Costa, ela
despontava como uma grande promessa, uma novidade. Seu marido, Pepeu Gomes,
ratifica o seu talento como guitarrista com seus incríveis solos de guitarra.
Jimi Hendrix (esquerda) e Jacob do Bandolim (centro): as grandes influências do guitarrista Pepeu Gomes. |
“Besta É Tu”
é mais um samba presente no álbum Acabou Chorare. Com Moraes Moreira
na voz principal, “Besta É Tu” é uma ode à liberdade, prega que devemos
aproveitar o máximo possível as coisas mais simples da vida, como por exemplo,
assistir a uma partida de futebol no Maracanã ou apreciar uma bela morena
passando na rua.
Única faixa
instrumental do álbum Acabou Chorare, “Um Bilhete Pra
Didi” é uma bem-sucedida mistura de rock com baião. A grande surpresa nesta
faixa é Jorginho Gomes, o autor dela, que além de baterista, mostra as suas
habilidades no cavaquinho. Na primeira metade da música, Jorginho faz solos no
seu cavaquinho muito bem executados. A partir da segunda metade da música,
quando ela ganha um ritmo mais acelerado, é Pepeu Gomes quem se destaca fazendo
solos ágeis com a sua guitarra dando a estética rock ao baião. É interessante
perceber que se trata de um baião feito com baixo, bateria e guitarra, três
instrumentos comuns do rock, mais um cavaquinho. No entanto, os Novos Baianos
não usaram a sanfona, instrumento tradicional do baião. O triângulo, tocado por
Baby Consuelo, é o único instrumento comum do baião presente nesta versão
roqueira do gênero musical do nordeste brasileiro.
Fechando o
álbum, uma reprise de “Preta Pretinha”, numa edição mais curta (pouco mais de
três minutos), feita para ser executada nas emissoras de rádio. Curiosamente,
diferente do que imaginava a gravadora, a versão mais longa de “Preta Pretinha”
foi a mais veiculada nas rádios de todo o Brasil na época.
Logo que foi
lançado, Acabou Chorare não foi uma grande unanimidade da crítica. No
entanto, o álbum foi conquistando a opinião do público e da crítica
gradativamente. A faixa “Preta Pretinha” foi um grande sucesso nas rádios de
norte a sul do Brasil, ajudando a impulsionar as vendas de Acabou Chorare que
alcançou a marca de 150 mil cópias, o que fez do álbum um dos mais vendidos do
ano de 1972 no país. “Brasil Pandeiro”, “Tinindo Trincando” e “Besta É Tu”
foram as outras músicas do álbum que também caíram no gosto do público.
O sucesso de
Acabou
Chorare não se restringiu ao campo musical. A capa do álbum recebeu na
época o prêmio de melhor produção gráfica do ano. O trabalho da arte gráfica e
a fotografia são de autoria de Antônio Luiz Martins. A imagem da capa mostra
uma mesa de madeira feita por Pepeu Gomes, com pratos, talheres, panelas
farinha espalhados sobre ela.
Ao longo do
tempo, Acabou Chorare alcançou um status
elevadíssimo dentro da música brasileira. Tornou-se um dos álbuns mais
influentes da música popular brasileira, uma referência para os mais diversos
artistas e tendência que se propuseram a fazer fusões entre a música da
tradição popular do Brasil e a música pop internacional. A axé music e o mangue
beat seriam exemplos de movimentos recentes da música brasileira contemporânea que
tiveram os Novos Baianos e seu Acabou Chorare como uma de suas
referências.
A partir dos
anos 1990, desde que a imprensa musical começou a formular as listas dos
maiores discos da música brasileira de todos os tempos, Acabou Chorare é uma
presença constante em todos as elas. Em 2007, Acabou Chorare figurou em
1º lugar na lista dos 100 Maiores Discos
da Música Brasileira da edição brasileira da revista Rolling Stone.
Faixas
Lado A
- "Brasil Pandeiro" (Assis Valente)
- "Preta Pretinha" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "Tinindo Trincando" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "Swing de Campo Grande" (Paulinho Boca de Cantor - Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "Acabou Chorare" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
Lado B
- "Mistério do Planeta" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "A Menina Dança" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "Besta É Tu" (Pepeu Gomes - Moraes Moreira - Luiz Galvão)
- "Um Bilhete para Didi" (Jorginho Gomes)
- "Preta, Pretinha" (reprise) (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
Novos Baianos: Moraes Moreira (vocais
e violão), Baby Consuelo (vocais, afochê, triângulo e maracas), Paulinho Boca
de Cantor (vocais e pandeiro), Luiz Galvão (letras), Bolacha (bongôs). Banda A
Cor do Som: Pepeu Gomes (guitarra elétrica, violão e craviola), Dadi (baixo), Jorginho
(bateria, cavaquinho e bongô) e Baixinho (bumbo e bongôs).
Ouça na íntegra o álbum Acabou Chorare
"A Menina Dança" (videoclipe original)
"Mistério do Planeta" (videoclipe original)
"Brasil Pandeiro" (video)
"Preta Pretinha" (video)
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